Capítulo 2 - O contrato

CAPÍTULO II

O CONTRATO

Continente dos Três Ducados

O homem cruzava as ruas de Dama de Pedra como se levado pelo vento. Ele podia sentir no ar o cheiro úmido que antecedia as últimas chuvas de verão. A noite cobria a velha cidade com um manto espesso. A lua quase não brilhava no céu, encoberta pelas pesadas nuvens de tempestade, resumindo-se a uma auréola opaca por trás do véu de sombras.

Dama de Pedra era a maior cidade do ducado de Costaverde, governado pelo duque Olho de Águia Willow. A cidade era enorme, cheia de bairros onde era fácil se perder devido às casas altas e vielas estreitas, que se aglomeravam formando labirintos onde o céu se resumia a uma estreita faixa escura, limitada pelos telhados de madeira ou telhas arredondadas de argila negra.

O homem que desafiava a noite e seus perigos era nada mais que um vulto, misturando-se às sombras frias das casas. Seus passos não produziam som. Sua silhueta era engolida pela escuridão. Seu cheiro era nulo. Ele praticamente não existia, até que se permitisse o contrário.

Um sentimento crescente de urgência o embalava, ditando o ritmo veloz de seus passos mudos. Precisava confrontá-la. Não podia permitir que a loucura e a imprudência daquela mulher o colocasse em risco. Amaldiçoada seja, pensava enquanto lançava-se pelas esquinas e curvas estreitas. Depois de passar incólume pela perigosa região, onde eram comuns assaltos e assassinatos, finalmente chegou a seu destino, a estalagem Dragão de Prata. Um dos poucos lugares em Dama de Pedra onde era possível beber, com a certeza de que sua caneca não era ninho de alguma ratazana de esgoto, e onde as camas tinham a menor contagem de pulgas. Sobre a porta, a tabuleta do dragão prateado balançava com o vento uivante.

O homem cruzou a soleira ignorando a clientela diminuta daquela noite, que se resumia a um velho dormindo abraçado a uma garrafa de rum, e um casal que se esfregava voluptuosamente em um dos cantos escuros. Não se podia esperar muito, afinal, era o exato meio da semana.

Foi direto aos estalajadeiros, que conversavam alegremente entre si, um reflexo da noite com pouco movimento. Quando colocaram os olhos no recém-chegado, levantaram-se de imediato, fitando-o com um medo profundo, embrulhado em respeito e enlaçado por calafrios que atingiam diretamente na espinha.

Ele trajava calças e camisas azul-escuras, escondidas sob uma capa acinzentada que se tornava negra quando não estava sob a luz das velas. No ombro esquerdo caía uma ombreira de couro batido e metal temperado, parte característica da armadura leve e silenciosa que consistia em um peitoral pequeno na altura do coração e manoplas também feitas de metal revestido em couro. De dentro da escuridão de seu capuz ele fitou os atendentes, que desviaram imediatamente o olhar, incapazes de sustentar tamanha frieza.

— Ela está aqui? — sussurrou para os dois.

— Sim… senhor — gaguejou um deles, rapaz atarracado e magro. Lembrava um espantalho. O rosto cheio de sardas —, mas ela deu ordens...

—Ela ordenou que não fosse incomodada... senhor — completou o segundo jovem, ligeiramente mais corajoso.

O recém-chegado devolveu-lhes um olhar álgido como a morte, emoldurado em uma dura expressão de desagrado, suficiente para fazê-los vomitar as palavras em uma incontrolável torrente defensiva.

— Senhor, ela foi bem clara. Disse que nos mataria se alguém a interrompesse, por favor, não faça isso — implorou o sardento. Seu medo era palpável.

— Não se preocupe, ela não mata se não for paga pra isso, quase nunca...

Ignorando os rapazes amedrontados, seguiu para a escadaria que levava ao segundo andar. A madeira, que comumente rangia reclamando do peso dos clientes de sempre, não emitiu um só ruído sob os passos treinados do assassino. Ele se deslocava com graça, quase flutuando.

Havia oito portas no andar de cima, quatro em cada lado do corredor. Não teve dúvidas, deixou-se guiar pelos gemidos e gritos exaltados de prazer que vinham do último quarto à esquerda.

O assassino abriu a porta deparando-se com um emaranhado de corpos nus, esfregando-se sofregamente em êxtase profundo. Um homem e três mulheres dividiam a cama. O cheiro de sexo e suor exalava pelo quarto, mediante a orgia que se desenrolava. Era difícil discernir onde terminava um corpo e onde começava outro, tamanho empenho em provocar prazer.

— A festa acabou — decretou sacando suas armas.

As mortais adagas de três pontas, chamadas Sai, brilhavam refletindo as luzes das velas espalhadas pelo quarto.

— Vocês têm cinco segundos para deixar este aposento — ameaçou sem erguer a voz.

O homem nu, alto e forte como um touro era o mais apressado. Ele se desvencilhou da orgia, pegou as calças e saiu em disparada. Evitou olhar para o assassino, como se fosse um monstro prestes a devorá-lo. Tropeçou corredor afora, lutando para vestir as calças. Seu membro, que há poucos segundos estava duro como pedra, agora se dependurava murcho e encolhido, mediante a sensação de perigo. A expressão aterrorizada era de quem reconhecia aquele homem e o que ele representava — um assassino da Lótus Negra.

As duas mulheres saíram cheias de sorrisos, os corpos curvilíneos a bailar insinuantes desconhecendo o perigo, mas o assassino se manteve estático. Os olhos fixos na mulher que permanecera na cama, nua e com olhar divertido.

Ele bateu a porta com força, fazendo-a tremer.

— Levante o capuz e deixe-me ver se os rumores são verdadeiros, se realmente não há desejo nesses belos olhos castanhos — a voz feminina soou tão doce quanto os mais perigosos venenos. Uma sereia que atrai os homens para a morte.

— Precisamos ter uma conversa, Maia — declarou o assassino, desviando o olhar do corpo nu e suado pelo sexo.

— É apenas isso que você quer de mim, uma conversa? — indagou correndo as mãos pelo próprio corpo, passeando entre os seios pequenos e firmes, atravessando a planície branca que era sua barriga e chegando até entre as pernas. — Não há mais nada aqui que você deseje?

O assassino pegou uma camisa que estava no chão e atirou sobre o corpo de Maia, cobrindo-lhe a tatuagem que ia da parte superior do braço esquerdo até o pescoço. Uma lótus negra, símbolo da guilda de assassinos a qual emprestava o nome.

— Vista isso — exigiu com seriedade absoluta.

— Você estragou minha diversão — retrucou a moça. Maia levantou-se da cama desistindo do sorriso convidativo e vestiu a camisa, que ficou grande demais para ela. Com as pernas desnudas, rodou pelo quarto procurando por calças.

— Esta roupa não é minha, na verdade nem sei de quem é — disse despretensiosamente.

— Cubra-se logo, temos muito que conversar.

Depois de vestir calças de couro negro, sentou na poltrona e abriu a caixa que estava sobre a mesa. Retirou dali uma erva verde esturricada e um fino papel com o qual enrolou o cigarro, acendendo sua ponta. Tragou profundamente e soltou fumaça pelas narinas e pela boca.

— Somente tragando um desses é possível aguentar as suas baboseiras, Kel’Enner. Vamos logo com isso. Diga o que é tão importante a ponto de você vir aqui para interromper a minha foda — o cheiro da erva já dominava o ambiente.

O assassino, que até então se mantinha impassível como uma estátua, levantou o capuz revelando um rosto moreno, com a barda fina bem desenhada. Os cabelos eram curtos, negros e bem cuidados. O olhar de íris cor de mel era misterioso, incisivo, e ao mesmo tempo tranquilo. Uma mescla que confundia e causava a estranha sensação de conformismo que se sente ao compreender que não há mais nada a fazer, a não ser, esperar pela morte.

— Você sabe por que estou aqui? – perguntou inabalável.

— Ainda não consigo ler mentes, ainda – irônica, ela tragou mais uma vez. Maia não tinha mais do que um metro e sessenta. Os cabelos castanhos, quase loiros e de pontas repicadas, caíam volumosos até os seios. O rosto era belo e delicado, feições no limite entre o infante e o sexy, característica útil para a assassina, que fazia do jogo da sedução uma arma fatal.

— As ordens eram claras, eliminar o alvo e retornar para Stonehand, mas você aceitou um novo contrato sem o consentimento da guilda. Por acaso enlouqueceu? — Kel’Enner, pela primeira vez, emanava seriedade e preocupação, a testa enrugada.

— Então é disso que se trata. Você estragou minha foda porque está com inveja do contrato vantajoso que consegui.

— Deixe de estupidez! Você conhece as regras, um contrato precisa de aprovação! Sabe o que Gladius poderá fazer quando voltarmos? Que tipo de punição receberemos? Além do mais, se você falhar... — ele deixou as palavras se perderem, até reencontrá-las numa nova linha de raciocínio —, você não merece usar essa tatuagem e quando você falhar, vou me certificar de ser o escolhido para arrancá-la da sua pele.

A dura expressão de desagrado do assassino fez Maia abandonar sua postura descontraída. Ela se levantou da cadeira e caminhou até Kel’Enner. Parou a centímetros de distância. O ar expelido por suas respirações entrelaçava-se quente, embora a garota fosse quinze centímetros mais baixa.

— Você não passa de um cachorrinho de estimação — com o indicador, dava estocadas no peito do assassino. — Tenho pena de você. Diga-me, há quanto tempo deixou de ser um assassino voraz para se tornar o garoto de recados do Gladius?

— Eu não estou brincando, precisamos resolver isso imediatamente. Há muito em jogo — ele lutava para se manter controlado diante do diabrete em perigosas formas de mulher.

Maia tomou-lhe a mão que ainda segurava a adaga e a guiou até o próprio peito, fazendo a lâmina deslizar entre os seios, que despontavam enrijecidos sob a blusa.

— Estou curiosa para saber. Você ainda sente prazer ao penetrar suas vítimas? A sensação é tão inebriante, tão... doce e excitante — respirou profundamente e fechou os olhos. — Ver o metal entrar limpo, sem máculas, para retornar banhado de sangue vermelho vivo. Não, esses prazeres não são para simples cães como você, um garoto de recados. Aposto que já não sente o sangue se agitar sob a pele, e tampouco... entre as pernas — sussurrou a última parte maliciosamente, junto à orelha de Kel’Enner.

O assassino se recompôs. Afastou a mulher ganhando espaço, como se precisasse dele para respirar. O sorriso dela era sua derrota.

— Se tivesse tirado as roupas e entrado na pequena diversão que preparei, ao invés de ficar parado aí bancando o histérico, talvez eu lhe desse ouvidos, mas você não deve ter um pau entre as pernas. Não posso respeitar um homem assim. O que você é, um eunuco? — provocou Maia novamente, descontraída, já de costas, procurando suas botas sob a cama.

Ela não sentiu a aproximação do assassino. Não ouviu seus passos nem sentiu seu cheiro, tampouco o deslocamento de ar. Quando deu por si, ele já estava sobre ela. A mão poderosa agarrando e torcendo seu pulso. Os dedos cravados profundamente na pele branca. Por instinto e reflexo, ela girou o braço num movimento experiente, tentando se soltar, mas Kel’Enner, conhecedor daquela ação, imediatamente a absorveu e impediu, mantendo o aperto firme e doloroso. Ele puxou Maia para junto de si e a encarou nos olhos.

— Não me teste, garota. Você não passa de uma criança e não faz a menor ideia do que sou capaz. Eu já matava pessoas quando você era apenas um bebê. Estas lâminas fizeram rios de sangue jorrar caudalosos por este mundo amaldiçoado, lavrando o solo com morte e dor — as palavras tinham a frieza das paredes de gelo eterno de Asgard.

— Agora coloque uma coisa nessa sua cabeça oca. Aceitar aquele contrato, por si só, já a colocou em risco, não apenas por ser uma missão extremamente perigosa para uma única pessoa, mas porque você não sabe nada sobre o contratante ou sobre o alvo. E as leis da Lótus Negra são claras. Se já houver planos que desconhecemos para este contratante, estamos mortos. Se a vítima já tiver algum dia contratado a Lótus, não poderá ser um alvo, sendo assim, estamos mortos. Ou se simplesmente não for da vontade de Gladius que trabalhemos para esse contratante, adivinhe, neste exato momento, somos dois defuntos conversando.

— Me solte — exigiu Maia, mas o aperto se intensificou ainda mais.

— No entanto, tendo em vista que você já aceitou o contrato, o pior seria abandoná-lo, manchando o nome da Guilda, então irei com você para me certificar de que consiga cumpri-lo. Talvez assim ainda exista a  chance de não termos nossas cabeças separadas do corpo.

A assassina finalmente conseguiu se soltar. Ela observou a compleição física de Kel’Enner, que não parecia ser tão forte sob aquelas roupas. Aquilo realmente a supreendeu. Inconscientemente, Maia alisava o pulso dolorido, enquanto imaginava o que mais podia esperar daquele homem.

— Desde que você não me atrapalhe...

— Prepare-se para partir — disse ele abruptamente, impedindo outra dose de sarcasmo —, vou esperar lá embaixo, resolveremos isso ainda hoje.

Maia ficou só, a fitar o quarto vazio e o braço que ainda doía pelo aperto de aço. Estava furiosa, e ao mesmo tempo surpresa com a postura do parceiro. Tinham trabalhado juntos apenas duas vezes antes daquela viagem e Kel’Enner sempre fora taciturno, falava pouco, apenas o necessário. Ela percebeu que realmente não sabia praticamente nada sobre ele. Costumeiramente, após concluir os trabalhos, o assassino se refugiava em seu próprio mundo, trancava-se no quarto e raramente lhe dirigia a palavra, enquanto Maia aproveitava cada segundo livre para se entregar à bebida e as orgias. Não podiam ser mais diferentes. Aquela faceta bruta e enraivecida do parceiro era algo novo, e sobretudo muito excitante, a ponto de a assassina permitir que um sorriso maroto percorresse seus lábios.

Kel’Enner desceu as escadas e encontrou a estalagem vazia, exceto por um dos irmãos que limpava o balcão com um pano velho e puído. Ao perceber a presença do assassino, pediu licença e se dirigiu apressado para dentro da cozinha.

O único som que se ouvia era o ribombar dos trovões, cujos relâmpagos iluminavam a taverna através das janelas entreabertas. Kel’Enner se aproximou de uma delas. Sabia que a tempestade seria uma aliada importante para o trabalho que tinham a fazer, abafando ruídos e apagando rastros. Tornando-os invisíveis.

Pôs-se a pensar sobre o contrato e as circunstâncias que o geraram. Os Três Ducados era um continente independente. Os três grandes duques, barões e grandes comerciantes tinham muitos negócios com a coroa, mas as leis de Stonehand não operavam ali, o que lhes permitia o livre comércio de escravos.

A escravidão nos Três Ducados representava uma grande parcela no movimento da economia. Como mão de obra barata ou insumo para venda e troca, os escravos eram uma segunda moeda, que ao invés de trabalhada em ouro, prata, ou cobre, era cunhada em ossos e carne.

Em geral, os navios dos senhores de escravos aportavam na costa do continente de Gaia, das Penínsulas Urdu e de várias outras ilhas menores ignorando apenas Atlântida, cujas cidades portuárias e costas litorâneas eram defendidas por uma enormidade de muros e canhões, e Tormenta, cujos perigos místicos consistiam na existência de diversas raças não humanas.

Os grupos treinados de guerreiros cruéis ceifavam a liberdade das tribos costeiras levando homens, mulheres e crianças como escravos. Alguns povos, visando evitar o derramamento de sangue, ofereciam de bom grado seus prisioneiros, os infratores de suas leis e ainda algum pagamento em pedras preciosas e especiarias, evitando que pessoas importantes para sua comunidade fossem levadas.

O grande mercado escravagista dos Três Ducados era um negócio próspero e com altas margens de lucro.

O contrato aceito por Maia tramava a morte de Don Omar Fuerte, dono de um negócio que prosperava a passos largos, ganhando terreno e respeito. O pedido fora feito por um rival, o conde Boa Morte Lucca.

A Lótus Negra possuía uma enorme e intrincada rede de informações composta por todo tipo de pessoas, de nobres a ladrões de rua, de guardas palacianos a taverneiros, prostitutas e menestréis. Poucos eram os boatos e informações que não chegavam aos ouvidos de seus assassinos. Kel’Enner, por acaso, sabia que Don Omar tinha adotado uma prática condenável naquele negócio. Seus navios, armados como galeões de guerra, rondavam a grande Bahia das Orcas sob bandeira e cores de Stonehand, com a Mão de Pedra do rei Alexander balançando ao vento. Os navios utilizados para o comércio  escravista eram pegos desprevenidos, já que Stonehand tinha um tratado de paz vigente com os Três Ducados, tornando-se alvos fáceis. Suas cargas eram roubadas e os navios afundados, o que era um grande negócio, afinal, era muito mais fácil e barato equipar um barco de guerra e vencer uma batalha naval contra um inimigo despreparado do que fazer uma incursão em terras distantes, com nativos aptos a se defenderem em seu próprio território.

Mas recentemente, o conde Boa Morte Lucca, homem velho e calejado naquele negócio, justamente suspeitando daquele boato, enviou junto de seu comboio uma galé, navio pequeno, rápido e apto a fugir de emboscadas. O relato do capitão confirmou o ardil de Don Omar e, Boa Morte, ao invés de levar formalmente a denúncia aos três duques, o que geraria uma investigação lenta, seguida de punição que provavelmente não envolveria sangue e sim pagamento de soldos, decidiu que a Lotus Negra poderia lidar com a situação de maneira mais satisfatória. Para sua sorte, dois dos melhores assassinos da guilda tinham cruzado recentemente o mar e vagavam por suas terras. Ele viu a oportunidade e aproveitou-a, oferecendo o trabalho a Maia.

— Você não é tão boa quanto pensa, eu ouvi você — Kel’Enner ainda olhava a rua escura através dos vidros sujos.

— Você não me ouviu. Está blefando. Eu poderia tê-lo matado se quisesse — soou a voz de Maia às suas costas.

— Você permitiu ranger o sexto degrau da escada e sua capa roçou ruidosamente contra o balcão do bar. Eu poderia ser arrancado do sono profundo com isso. Ainda há muito para você aprender.

Ele se virou fitando a mulher. Trajavam roupas parecidas — calças e camisas de um azul tão escuro que parecia negro sob a pouca iluminação. Manoplas de metal fino e resistente, revestidas de couro. Botas de cano alto e ombreiras que se escondiam sob a manta negra.

— Estou feliz pela oportunidade de ver de perto as suas habilidades, assim, quando precisar ceifar a sua vida, não haverá problemas — Kel’Enner mostrou o metal cintilante da adaga escondido sob sua capa, apontando para trás, pronto para atacar. A prova definitiva de que tinha percebido a aproximação.

— Essa foi, definitivamente, uma das coisas mais românticas que já ouvi — sorriu Maia com a malícia de sempre, olhando para a lâmina desembainhada.

A chuva desabou de uma só vez, fustigando as paredes da taverna e escorrendo em cascata pelos vidros. Os telhados das casas começaram rapidamente a formar pequenas cachoeiras.

— Vamos. Devemos agir rápido e terminar com isso antes do nascer do sol.

Kel’Enner sentiu a mão de Maia segurando seu braço, impedindo seu movimento. A força da moça de estrutura física tão diminuta o surpreendeu, mas as sombras que dançavam em seu rosto logo esconderam qualquer sinal de perturbação.

— Não se esqueça de que este contrato é meu. Você irá apenas observar.

— Irei garantir que você não falhe, talvez assim ainda haja uma pequena chance de não sofrermos uma punição demasiado severa — arrancou o braço do aperto de Maia e abriu a porta.

A chuva os agrediu antes mesmo que colocassem os pés para fora. O vento cantava enlouquecido uma furiosa canção, enquanto os dois assassinos se lançavam pelas ruas desertas e escuras.

Correram por dentro do gueto de Dama de Pedra, pelas ruelas e becos estreitos. Maia à frente, se esforçando na tentativa de deixar Kel’Enner para trás, certa de que poderia despistá-lo se quisesse, ou precisasse, mas ele continuava em seus calcanhares. Nos olhares relanceados, ela não discernia nele qualquer sinal de cansaço.

Chegaram aos bairros de ruas mais amplas, onde os lampiões dependurados em postes tinham suas luzes engolidas pelo breu da noite sem lua. Seguiram dali para os limites da cidade, em direção aos grandes muros que a protegiam, vigilantes paredes maciças de pedra com dez metros de altura.

Os assassinos escalaram as paredes como aranhas, sem a menor dificuldade. Mãos nuas contra as pedras, encontrando reentrâncias que se tornavam escorregadias por causa do temporal e do lodo que havia se formado ao longo dos anos, mas nada capaz de deter, ou atrasar o seu avanço. Não tinham outra opção já que os portões da cidade eram fechados ao anoitecer. Tempos violentos graças às insurgências dos escravos fugidos, que se organizavam em bandos cada vez maiores.

De cima da muralha, por entre a chuva que mais parecia um véu, os assassinos contemplaram as terras do Ducado de Costaverde, imersas na cálida paz que apenas a noite era capaz de trazer. A cidade fora construída estrategicamente na parte mais alta da planície. A posição privilegiada poderia fazer a diferença contra um exército inimigo. Kel’Enner e Maia fitaram seu longínquo objetivo, onde uma luz brilhava distante, provavelmente uma forja, já que nenhuma fogueira, por maior que fosse, resistiria àquele temporal.

Relâmpagos iluminavam constantemente o céu, desenhando teias prateadas que iluminavam o firmamento. Maia considerava aquele um dos mais belos espetáculos da natureza, mas não dividiu o pensamento com Kel’Enner. Ela simplesmente saltou para o vazio, aterrissando com segurança sobre um monte de palha que jazia encostado no muro. Kel’Enner saltou logo em seguida, rolando imediatamente pelo chão como um felino.

Eles correram até a vila que ficava a quinhentos metros de Dama de Pedra. O lugarejo era composto por menos de cem casas, entre elas havia um posto comercial chamado Búfalo Negro, um estabelecimento onde era possível viabilizar negócios que precisassem fugir dos muitos olhos vigilantes do duque Willow.

As ruas do vilarejo, diferente do chão calçado de Dama de Pedra, eram de terra batida e vermelha que àquela altura, estava salpicada de enormes poças lamacentas. Kel’Enner imaginou que seja lá qual fosse o deus que estivesse chorando, levaria muito tempo para recompor-se de tamanho derramamento de lágrimas, culminando em um outono seco e quente.

Caminharam pelas ruas largas e desertas. Uma ou outra das casas feitas de madeira tinha alguma luz acesa em seu interior.

Seguiram pela rua principal até a praça, onde a fonte com chafariz transbordava mediante a quantidade massiva de chuva. De lá, seguiram para o estábulo que ficava na parte de trás da Bufalo Negro e fazia parte do posto comercial. O lugar alugava e vendia animais para os viajantes.

Ignoraram a entrada principal e seguiram para uma porta lateral, por onde entraram após Kel’Enner manejar na fechadura uma chave negra.

— Achei que não vinha mais — soou uma voz no interior do estábulo.

— Preciso de dois cavalos — disse Kel’Enner para o anfitrião —, os mais ágeis que tiver.        

— Um deles já está pronto — o homem se revelou, descendo por uma escada nos fundos do lugar, usava chapéu de palha e uma camisa velha de botões aberta no peito, ele claramente esperava apenas por Maia —, irei preparar o outro.

— Seja breve — exigiu Kel’Enner. Maia deixou o corpo descansar, apoiando-se em uma das vigas com os braços cruzados. O parceiro, após avaliar o trabalho com os cavalos, passou a observá-la com um olhar frio. Kel’Enner tentava entender como ela podia ter sido tão estúpida para aceitar aquele trabalho sem a aprovação da guilda. Já Maia respondia-lhe com olhares diversos, onde a curiosidade era a tônica.

— Terminei, os animais estão prontos. — anunciou o homem alguns minutos depois.

— Ótimo. Agora saia do caminho.

— Espere, espere, por favor, eu gostaria de saber — ele hesitava, o olhar inseguro —, quando minha dívida estará paga.

Kel’Enner devolveu ao homem um olhar fulminante, fazendo com que ele se encolhesse dentro das roupas.

— Quero dizer... eu, bem... — gaguejou —, venho trabalhando há muito tempo para vocês e acho que...

— Sua dívida estará paga quando Gladius achar que está — aquela declaração pôs fim à conversa.

***

Marco, o dono do estábulo, fora no passado um homem de posses razoáveis, mas durante um conflito entre os Ducados de Costaverde e Campofirme anos atrás, teve suas terras invadidas e pilhadas. Rebanhos e colheitas foram tomados pelos exércitos, mas o golpe derradeiro fora o estupro e assassinato de sua esposa.

O fazendeiro, desnorteado e sem chão, procurou pela Lotus Negra e assinou o contrato, validando-o com seu próprio sangue, mesmo sabendo que não possuía as moedas de prata referentes ao pagamento.

O serviço foi feito com rapidez e precisão. A esposa foi vingada sob requintados meios de crueldade. Os dois homens que a estupraram foram encontrados mortos. Seus órgãos genitais dilacerados decoravam suas próprias bocas, mastigados.

A terceira visita do assassino seria o próprio Marco, que se lembrava de estar sentado na varanda de casa, uma montanha de destroços e fuligem. Um emaranhado de lembranças destruídas e sonhos perdidos, incendiada pelos invasores.

— Finalmente você veio, eu o estava esperando. Não tenho como pagar... dê logo um fim nisso — implorou Marco, que não conseguia mais enxergar sentido em uma vida onde não existisse sua adorada esposa.

O recém-chegado trajava roupas negras e caminhava com elegância. Ele se aproximou e falou numa voz arrastada que Marco jamais esqueceria.

— Você conhece a lei da Lótus Negra. Se não puder pagar com prata, pagará com a própria vida — decretou o assassino.

Ele sacou uma adaga, cujo punho possuía uma safira incrustada e se preparou para o ataque. Seria rápido e limpo, como sempre. Ao contrário da maioria de seus companheiros, aquele homem não era sádico, não via alegria em provocar a dor, apenas fazia o que tinha que fazer. Cumpria seu trabalho sem delongas.

Com um olhar cansado e indiferente, avançou para o ataque. Os longos cabelos negros, presos em uma trança, chicotearam o ar com o movimento súbito e veloz. Foi quando uma voz cruzou a noite e com seu timbre pesado e rouco, impediu o golpe no último instante. Marco jamais se esqueceria daquele homem, e do momento exato no qual ele simplesmente surgiu ao seu lado, imperceptível, como se vindo do nada.

Aquele era Gladius, o líder da guilda de assassinos. Era negro como a noite, em seus dois metros de altura. Brincos de argolas penduravam-se nas orelhas, outros, menores perfuravam a pele ao longo de toda a extensão de sua sobrancelha esquerda. A luz da lua refletia na pele de ébano como na superfície de um lago, na escuridão soturna da meia-noite. Os braços eram fortes. A compleição física invejável se destacava sob as roupas de cor grafite, mas era seu olhar que capturava a atenção e se destacava com méritos dignos de um capítulo à parte. Íris e pupila pouco se diferenciavam. Ambas de um negrume tão poderoso que era possível sentir-se tragado. Causavam a mesma sensação de flutuar que se tem ao contemplar a infinidade do céu noturno. Eram olhos de quem flertava com a morte, como se tivessem com ela uma longa e íntima relação.

— Ainda não — disse Gladius.

— Ele não pode pagar — retrucou o outro —, nossa lei é clara.

— Não se precipite, querido Delfos — a voz rouca e grave, por si só, deixaria um homem nervoso —, Marco pode nos ser mais valioso vivo.

— Mas Gladius...

Bastou um olhar imponente do rei dos assassinos para que Delfos se calasse devolvendo a lâmina à bainha. O gigante sentou-se ao lado de Marco na escada chamuscada, ombro a ombro, como se fossem dois amigos próximos em uma conversa amena sob o belo céu estrelado, após um longo dia de trabalho nos campos.

— Eu o admiro pelo que fez — a voz de Gladius tinha um tom relaxado — desde o princípio você sabia que não poderia pagar. Seu plano era obter vingança em troca da própria vida. É preciso coragem para algo assim. Bardos poderiam cantar sobre sua história. Poetas declamariam versos tediosos que eu seria obrigado a ouvir enquanto estivesse bebendo em uma espelunca qualquer, mas isso não vai acontecer.

— Como Delfos bem disse, essa é a lei do nosso clã – prosseguiu o líder dos assassinos —, mas eu sou a lei em carne e osso. Ela flui e se molda através de minhas palavras.

Gladius retirou do cinto uma pequena bolsa de moedas, de onde se ouviu um leve retinir metálico.

— Essas moedas foram encontradas com os homens que mataram sua mulher. Você as utilizará para refazer a vida. Construirá aqui um estábulo, pois o que preciso nessa região não é mais um cadáver, e sim de cavalos. Quero animais velozes, confiáveis e de pelo escuro. O negócio e os lucros serão inteiramente seus, mas quando meus homens baterem em sua porta, você os ajudará com tudo o que precisarem. Seguiremos assim até eu julgar que sua dívida está paga, então você será livre novamente; mas até lá, não se engane, você pertence a mim.

Gladius ergueu a bolsa esperando que o hesitante fazendeiro a tomasse, mas ele seguia imobilizado pela desconfiança.

— Claro que há outra opção. Você pode simplesmente morrer aqui e agora. Eu não me importaria, creio que Delfos também não, mas acho que não seria a melhor saída para nenhum de nós — sorriu mostrando os dentes muito brancos, os lábios desenhando uma expressão tão carismática quanto a de um rei amado por seu povo.

Marco pegou o saco de moedas e tem estado preso a ele desde então.

***

Kel’Enner e Maia deixaram o estábulo exigindo o máximo dos cavalos — dois belos animais negros, fortes e ágeis que percorreram a planície acidentada trotando vigorosamente, até as bordas da grande floresta de Costaverde.

O terreno a partir dali subia ligeiramente íngreme. Não era o caminho mais rápido para o forte de Don Omar, mas a altura do terreno lhes proporcionaria o ângulo ideal de visão para que pudessem planejar o ataque.

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