CAPÍTULO III
O FOGO DE DEMOONV’UUR
Desde a infância, Caleb tinha as noites de sono povoadas por terríveis pesadelos. Era comum acordar sentindo no rosto as mãos da avó, que tentava acalmá-lo abafando seus gritos em um abraço acolhedor.
Com o tempo, à medida que crescia e deixava a infância para trás, os pesadelos, dos quais nunca era capaz de lembrar, foram deixando de figurar em sua vida, restando apenas as lembranças da avó, sempre alerta, dedicada e a postos para cuidar de seus temores, mas nada pelo que já havia passado poderia prepará-lo para o que estava prestes a vivenciar.
Caleb abriu os olhos descobrindo-se em uma caverna escura e úmida. Sombras vivas dançavam na parede ao fundo do corredor, embaladas por chamas bruxuleantes escondidas na curva à direita, o único caminho a seguir.
Ele caminhou com passos lentos e temerosos, absurdamente ciente de estar sonhando, o que era espantoso, tendo em vista a palpável realidade. O chão frio sob os pés descalços, o cheiro das pedras e do musgo que crescia nas reentrâncias das paredes, tudo captado por seus sentidos com ainda mais vivacidade do que quando acordado.
Dividido entre medo, curiosidade e ansiedade, seguiu em frente. Chegou até o limite da curva e espiou de canto de olho, deparando-se com uma cena inquietante que o fez se arrepiar. Havia um homem ajoelhado diante de um altar entalhado na parede de pedras, de costas para o jovem. Trajava uma túnica negra. No chão jazia um bezerro morto, a cabeça separada do corpo, deitada sobre uma poça do próprio sangue.
O homem sussurrava palavras indistintas que reverberavam no ar, como se ganhassem vida após serem pronunciadas. Pareciam emitidas não apenas por uma pessoa, mas por uma legião sussurrante de ecos tenebrosos, vindos de gargantas invisíveis.
Caleb notou que, depositado sobre o altar, além das muitas velas negras, havia um enorme crânio, quase três vezes maior do que o de um ser humano, e com formas impossíveis de associar a qualquer animal que ele conhecesse.
O monge de vestes negras pôs-se de pé e voltou seu olhar diretamente na direção de Caleb. O jovem sabia, instintivamente, que não precisava se esconder. O monge o ignorou e se voltou para o bezerro decapitado. Pegou um pincel, o encharcou com o sangue do animal e começou a desenhar um símbolo no chão, pintando o piso com o vermelho-escuro, quase negro. Primeiro fez um círculo, e dentro dele, uma estrela de sete pontas. Terminado o trabalho de exímia simetria, caminhou até o altar e pegou o crânio monstruoso que possuía uma enorme boca aberta, como quem sorri mesmo após a morte, e o depositou no centro da estrela.
Encorajado pela certeza de estar sonhando, Caleb deu alguns passos vacilantes para frente. À medida que se aproximava, as feições do monge se desvencilhavam das sombras e revelavam um rosto magro e aquilino. Uma longa cicatriz marcava-lhe a face de fora a fora, começando junto ao couro cabeludo, descendo sobre o olho e chegando até a bochecha pálida. Caleb ficou estarrecido diante da horrenda visão. A cicatriz não era a principal atração daquele bizarro show de horrores em forma de face. O nariz, completamente retorcido e marcado por uma terrível queimadura, disputava ferrenhamente seu espaço no mosaico grotesco. Os olhos afundavam em órbitas escuras e esqueléticas, deixando transparecer apenas um leve brilho no fundo das cavidades sombrias, como tochas acesas no fundo de uma caverna.
O homem voltou a entoar seus cânticos, completamente alheio ao jovem. Seguia ajoelhado frente ao desenho funesto, em cujo centro repousava a descomunal caveira. Seu tom agora era suplicante.
Caleb sentiu o corpo arrepiar. As chamas das tochas e velas tremeluziam como nunca, como se embaladas pela voz da invisível legião sussurrante. O fogo dançava ao sabor da música sombria de palavras indistintas, entoadas febrilmente pelo monge, que se colocou de pé e disse, na língua comum, com as vozes malignas a lhe acompanhar em coro:
— Ó Senhor, eu o invoco! Leviatã, rei dos reis, deus dos deuses, eu o invoco! Clamo por tua presença!
Caleb sentiu um repentino frio penetrar-lhe o corpo, atravessando roupas e pele. Chegava a doer, como se agulhas lhe espetassem diretamente nos ossos. Ajoelhou abraçando o próprio corpo, numa tentativa instintiva de se aquecer. Mas o verdadeiro terror, a implacável sensação de medo irrevogável, só despertou por completo quando ele percebeu a sombra negra e densa que brotava do centro da estrela de sangue, então soube de imediato, no fundo de seu coração, que aquilo era algo imensamente maligno e poderoso.
Desejou com toda sua força poder abrir os olhos e acordar. Piscou várias vezes. Baixou as pálpebras com força e as abriu novamente, mas para seu desespero, ainda continuava a testemunhar o tenebroso espetáculo.
A coisa que emergia do chão a princípio lhe parecia algum tipo de fumaça, mas pela forma como se movimentava, girando em torno de si mesma e expandindo-se em todas as direções, como se uma centena de garras tentassem se libertar do negro tecido etéreo que a aprisionava, causavam a clara sensação de que seja lá o que fosse aquilo, era algo aterrorizante e inacreditavelmente... vivo.
A bruma negra continuava a brotar, emergindo das fissuras do chão. O que antes era uma confusão de movimentos irregulares, projetando-se em todas as direções, agora começava a ganhar forma, enquanto o monge continuava a entoar seus gritos cada vez mais acalorados e exultantes, enlouquecidos. Os olhos brilhando com intensidade dentro das cavidades profundas e escuras.
— Venha, Senhor das Trevas, eu o aguardo! Venha para este mundo que lhe pertence! Volte para nós! Venha para nos governar!
Como se em resposta aos pedidos acalorados, a bruma negra começou a ganhar forma humanoide, desenhando braços, pernas e tronco. Hediondos olhos amarelos se destacaram onde deveria haver uma cabeça. Eles voltaram-se diretamente para Caleb, e uma recém-formada boca de etéreos dentes serrilhados sorriu para ele. Encarar aquele olhar foi como encarar a própria morte. Caleb sentiu o corpo cair, completamente sem forças.
Antes de bater no chão, ele acordou sob a tenda na floresta, deitado ao lado de seus amigos, mas algo estava terrivelmente errado. O cantar das corujas e o som harmonioso da vida noturna da floresta fora substituído por gritos exasperados, vindos de todos os lados. Esfregou os olhos atordoado e encontrou correria e desordem. Homens caindo ao chão, e sangue, muito sangue.
Para onde quer que olhasse, tudo o que via era o mais completo caos.
***
Caleb desperdiçou preciosos segundos tentando entender o que acontecia. A mente ainda se desprendia do terrível pesadelo para ser absorvida pela fatal realidade. Finalmente compreendeu que homens armados, provavelmente saqueadores, atacavam o acampamento.
Por todos os lados via homens e mulheres caindo perante os golpes de machados, lanças e espadas. Os ataques eram vorazes e brutais. Não poupavam aqueles que, assim como Caleb, ainda despertavam sonolentos tentando entender o que acontecia.
O céu ainda estava escuro, salpicado de estrelas silenciosas. A grande fogueira continuava a queimar, porém crepitando com menos intensidade, testemunhando com a claridade de suas chamas o massacre que acontecia ao seu redor.
— Luther — gritou, debruçando-se sobre o amigo, que abriu os olhos de imediato —, estamos sendo atacados!
Repetiu o processo com Saul e Bailey. Seus gritos chamaram a atenção de dois saqueadores que se voltaram para eles, ambos armados de afiadas espadas curtas, e vestidos com roupas escuras e coletes de couro batido.
Caleb se jogou para dentro da carroça e pegou duas espadas rústicas, feitas de metal pobre e pouco afiado, de aparência nada ameaçadora. Jogou uma para Luther, que ainda lutava para entender o que estava acontecendo, mas o calor da batalha ao seu redor rapidamente o tirou do torpor. Os resquícios do sono substituídos pela adrenalina.
Os dois tomaram frente na batalha, enquanto Saul e Bailey seguiram em busca de armas. Os saqueadores caíram sobre eles com ataques selvagens, surpreendendo os jovens que nunca estiveram em uma batalha de verdade, nada além de suas brincadeiras com espadas de madeira. As curtas cimitarras, de pontas curvas, desenvolviam arcos menores, porém eram mais rápidas do que as espadas dos jovens, que se defendiam com dificuldade, manejando as armas pesadas e sem equilíbrio. Arremedos grosseiros do que deveria ser uma espada de verdade.
Luther conseguiu se defender das estocadas e aproveitou uma brecha para contra-atacar. Assim que entendeu o padrão de ataques do inimigo, a luta tornou-se equilibrada. Girou a espada habilmente e desferiu um golpe de cima para baixo, que foi defendido, mas o peso maior de sua espada obrigou o homem de dentes podres a recuar em um passo vacilante. O rapaz aproveitou e cravou-lhe a espada na cintura. A lâmina mal feita penetrou apenas o suficiente para tirá-lo do combate, mas não sem que ele desferisse um último golpe desesperado. O ataque desequilibrado desenhou um longo arranhão no ombro de Luther.
A poucos metros dali, Caleb era duramente encurralado pelo outro saqueador, um homem forte que usava tapa-olho sobre a vista esquerda. A cada estocada a espada tremia nas mãos do jovem, que não conseguia reagir, pressionado ao extremo pelo lutador experiente que não lhe dava brechas.
Enquanto esperava encolhido em sua defensiva por mais um ataque da impetuosa cimitarra, Caleb não foi capaz de prever o chute no peito que o derrubou. A espada arrancada de suas mãos. Estava completamente indefeso.
— Morra garoto! — bradou o homem na língua comum do reino, com forte sotaque sulista.
Caleb viu a cimitarra desenhar um arco em sua direção. Apenas fechou os olhos. Então era assim que iria morrer. Nada de vida longa e tranquila na fazenda.
Quando abriu novamente os olhos, a arma havia parado a meio caminho. Ele viu seu dono tombar de lado, desfalecido, a cabeça trespassada por um machado de cortar lenha, firmemente seguro nas mãos de Saul. Nas roupas do lenhador, que estendia uma das mãos ajudando Caleb a se colocar de pé, havia sangue e miolos.
— Fiquem perto uns dos outros — gritou Saul para Luther e Bailey, que também portava uma das espadas rústicas produzidas no vilarejo das montanhas, onde nunca se faziam necessárias.
A falta de experiência dos camponeses justificava o massacre. Eram fazendeiros, pessoas pacíficas; não guerreiros, bárbaros que pudessem justificar a habilidade de manejar qualquer tipo de arma.
Os quatro seguiram em frente, mas logo se viram rodeados por mais agressores. Não conseguiam contar quantos eram. A desvantagem era ampla. O chão jazia salpicado de corpos, a grande maioria era de amigos e companheiros de toda uma vida. Homens, mulheres e até mesmo os rapazotes que os acompanhavam, recém-saídos da infância, todos misturados em um mar de sangue e membros decepados, que ainda frescos, conservavam movimentos espasmódicos.
Não houve tempo para lamentos. A tormenta de espadas logo se abateu sobre eles, fazendo com que o grupo, que lutava para se manter unido, acabasse por se dispersar. Saul lutava contra dois homens ao mesmo tempo, repelindo todos os ataques que podia. Bailey foi encurralado por outros dois. Logo sucumbiu bem diante dos olhos de Caleb, que viu a ponta de uma espada trespassar-lhe o peito, como se feito de manteiga.
Mediante a queda do amigo, o desespero começou a crescer dentro de Caleb. Parecia-lhe absurdo pensar que naquele momento, com sua própria vida sob o fio da navalha, em um mar de caos e sangue, tudo o que ele conseguia pensar era que Bailey não se levantaria nunca mais. Seu sorriso sempre sincero jamais seria emitido novamente, e suas histórias, aquelas que todos esperavam dele, não voltariam a ecoar ao redor das fogueiras ou entre as paredes do aconchegante salão de festas de Colinas Altas.
Até então Caleb nunca tinha visto alguém morrer, exceto os avós, que faleceram de maneira natural e tranquila, deitados em suas camas, com a sugestão de um sorriso no rosto. Morreram dormindo e deixaram este mundo sem dor alguma, contraste que tornava aquela barbárie ainda mais chocante, fazendo brotar no jovem um calor desconhecido, uma centelha alimentada por seu medo e revolta.
Luther se saía bem mesmo contra dois oponentes, que percebendo sua habilidade tornaram-se mais cautelosos, rodeando o rapaz e alternando entre um ataque e outro, tentando cansá-lo.
Caleb enfrentava um homem magro e ágil, que dava estocadas longas com seu braço esguio, mas que eram defendidas com menos dificuldade do que os ataques do adversário anterior. Este, menos experiente, se expunha mais aos contra-ataques do jovem, que começava a ganhar terreno com golpes firmes de sua espada mal feita.
Conseguiu abrir caminho para um ataque definitivo. Tinha a arma pronta para o golpe final quando sentiu uma pontada aguda na coxa. Olhou para baixo e viu a ponta de uma flecha despontando em sua perna, atravessada cruelmente. Caiu dobrando-se sobre o joelho, dominado pela dor, o sangue escorrendo pela perna da calça.
Deitado no chão, Caleb viu Saul ser derrotado. Os dois adversários eram demais, mesmo para ele. Com requintes de intensa crueldade, trespassaram seu corpo várias vezes, e, por fim, lhe cortaram a cabeça, que rolou por mais de um metro no solo já lavrado pelo sangue.
— Nãããããããooooooo! — gritou Caleb.
Ele mordeu a língua e sentiu o gosto ferruginoso do próprio sangue. Em seu interior, o que antes era apenas uma pequena centelha, tornou-se uma caldeira prestes a explodir. Caleb sentia, que assim como um dragão das histórias contadas pelo avô, poderia cuspir fogo pela boca e derreter seus inimigos até não restar nada além de cinzas.
Luther, despertado pelo grito do amigo, correu em sua direção abandonando o combate contra os dois saqueadores e aparando o golpe mortal que Caleb receberia. Pegando o inimigo desprevenido, ceifou o braço armado pela cimitarra e ficou em guarda próximo a Caleb, que chorava as mortes de Saul e Bailey. O fogo em seu interior abrandado pela presença do amigo, que se postava destemidamente à sua frente, pronto para defendê-lo... pronto para morrer a seu lado.
Os saqueadores começaram a se agrupar em torno dos jovens. Moviam-se despreocupadamente, caçoando do próprio companheiro que perdeu o braço. Um deles deu fim à agonia do homem, empalando sua garganta.
Os bandidos riam e zombavam, afinal, não havia mais ninguém de pé além dos dois jovens. Presas assustadas diante do enorme número de predadores vorazes.
— Luther, se você correr agora ainda pode escapar — sussurrou Caleb.
— Eu jamais deixaria você para trás.
— Com minha perna assim não vou conseguir, mas você ainda pode. Você tem que ir. Tem que fugir agora e se esconder na floresta! — Caleb ficou surpreso ao erguer os olhos em direção ao amigo e descobrir que o seu desespero não era refletido nas feições de Luther. Sabia que o amigo tentava parecer forte por ele e para ele.
— Eu não vou a lugar algum.
— O que acham de mantermos esses dois vivos para nos divertirmos mais tarde — bradou um dos saqueadores, o rosto parcialmente iluminado pela fogueira e pelos raios lunares que penetravam a clareira.
—Imbecil! Nesse caso deveria ter deixado vivas as mulheres — recebeu vários risos de aprovação, enquanto o outro ganhou t***s na cabeça.
— Chega dessa conversa inútil, vamos cortar logo essas cabeças para podermos dividir os espólios — um homem de nariz aquilino e traços magros tomou a frente dos demais, a cimitarra em suas mãos, já muito banhada de sangue, era apontada de forma ameaçadora, mas ele parou quando ouviu a voz rouca que chamou a atenção de todos.
— Saiam da frente — os saqueadores abriram caminho para um velho de cabelos grisalhos. Ele se apoiava em um cajado de madeira retorcida e escura, incrustado com uma pedra vermelha que brilhava sutilmente, refletindo a luz da fogueira. Vestia uma túnica verde com símbolos estranhos, sobre os ombros debruçava-se uma manta vermelho-sangue.
— Antes de matá-los drenem um pouco de sangue e tragam para mim — disse após inspecionar com olhar perscrutador os dois jovens, detendo-se por um tempo maior em Caleb, como se olhasse através dele. Por fim, se afastou com uma expressão sombria e indecifrável, desaparecendo em meio a seus seguidores.
Dois dos bandidos se colocaram à frente. As afiadas cimitarras balançando de um lado para outro. Sorrisos ávidos e maliciosos estavam estampados em suas faces, marcadas pela necessidade eminente de sangue.
O primeiro se precipitou para cima de Luther, que chegou a erguer a espada em defesa, mas o golpe parou a meio caminho. A ponta de uma lança despontou no centro da barriga daquele homem, que largou a espada com dedos trêmulos e olhou para o projétil atravessado onde deveria estar seu umbigo. Em meio à dor, nem conseguiu notar que não se tratava de uma lança comum, feita de aço ou madeira. O projétil era feito de terra endurecida.
Outras lanças começaram a chover sobre os homens, que iniciaram uma debandada geral e desorganizada, dispersando-se em diversas direções. Àquela altura, já haviam percebido que algo tão temível só poderia ser obra de um mago.
— Não corram, malditos! — protestou o velho — Não corram! É apenas um homem.
Dito isso, apontou o rubi de seu cajado para um lugar na densa mata.
— Saia agora, revele-se! — ordenou.
Uma ventania se precipitou ao seu redor, formando uma torrente poderosa que se abateu sobre as árvores e arbustos para onde ele apontava o cajado. Uma das carroças, que estava próxima ao local, foi arremessada para dentro da floresta fazendo voar sacos de grãos e ervas.
Tal ventania poderia ter arrancado completamente do solo uma casa de madeira, mas não afetou nem um pouco o homem que caminhava para dentro da clareira, envolto em uma aura esférica violácea que apenas o outro mago era capaz de ver. O tamanho de sua aura e a intensidade de seu brilho revelavam a dimensão grandiosa de seu poder.
O velho mago hesitou. Sem perceber, tinha recuado vários passos mediante a visão do homem que usava um capuz caído sobre o rosto, roupas negras e puídas que balançavam com o vento. Em sua mão repousava um cajado de ébano liso, tão negro quanto suas roupas.
O simples contemplar de uma aura tão poderosa, fez com que um verdadeiro terror se instalasse no rosto velho e cheio de rugas do mago renegado. Suas grossas sobrancelhas brancas erguiam-se em um ângulo quase impossível.
O recém-chegado caminhou com passos firmes ignorando o vento, enquanto as árvores ao seu redor se inclinavam em ângulos absurdos mediante o ataque tempestuoso.
Desafiado, o renegado usou todo seu o poder, até sentir sua aura — também violeta, porém quase apagada — exaurir-se a ponto de se tornar apenas um fino brilho opaco. Os fortes ventos começaram a se condensar e compactar, ganhando o formato de estrelas, que giravam em grande velocidade, flutuando à frente do velho. Com um movimento do cajado, ele fez as estrelas de vento cortarem o ar vertiginosamente, zunindo em direção ao inimigo. Mas o mago negro, ainda em sua postura tranquila, ergueu o cajado e um escudo de terra se projetou do chão, bloqueando todos os ataques frontais e explodindo em um manto de poeira.
— Acha que isso vai me deter? — gritou o velho. O medo afugentado pela ira de ser desacreditado tão facilmente pelo inimigo arrogante. Ele girou o cajado dando outro rumo para os ataques. As lâminas afiadas de vento, que emitiam um chiado agudo mediante a absurda velocidade de rotação, agora circulavam a barreira de pedras e terra, e atacavam de todos os lados ao mesmo tempo. Não haveria para onde fugir.
O mago negro simplesmente balançou a cabeça, como se estivesse decepcionado ou entediado. Ele permitiu que sua muralha de pedra e areia se desfizesse, voltando ao solo. Não seria necessária. Sua aura era tão poderosa, que todos os ataques foram dissolvidos quando se chocaram contra a esfera de energia. O vento brutal se transformou em brisa. O murmúrio ululante das lâminas se transformou no assobio manso de uma brisa refrescante para o horror de seu invocador, que incrédulo e visivelmente exaurido, deixou o cajado cair das mãos trêmulas pelo esforço.
— Luther! — gritou Caleb, pedindo por socorro.
O rapaz, distraído com a impressionante batalha dos magos, não notou o amigo ser arrastado para dentro da floresta pelas fortes mãos de dois saqueadores.
Luther os seguiu, entrando na mata após abater um dos bandidos que também tinha ficado hipnotizado pela batalha.
Alcançou-os alguns metros depois. Os homens largaram Caleb, que não conseguia se mover devido à dor e a abundante perda de sangue do ferimento na perna, e foram para cima de Luther com armas em punho. O rapaz se defendeu como pôde, mas eram ambos lutadores experientes e logo quebraram sua postura defensiva. Ele foi subjugado e colocado de joelhos.
O saqueador de dentes podres estava pronto para decapitar Luther.
— Você matou um dos meus irmãos, agora vai pagar!
Caleb olhava a cena, mas a absorvia de maneira abstrata. Não havia floresta, chão ou céu, apenas a ameaça mortal que pairava sobre Luther. Sua mente vagueava por campos escuros, beirando as portas da inconsciência. Tombado de lado, viu o homem preparar o golpe. Divisou o momento em que perderia seu melhor amigo, a quem considerava sua única família.
Quando seus olhos encontraram o olhar suplicante de Luther, gritando algo que ele não podia ouvir, assim como todo o resto dos sons do mundo, que se calara subitamente, aquela mesma centelha voltou a se avivar em seu interior. Desta vez muito mais intensa, explosiva, queimando-o por dentro, como se carregasse no peito o próprio sol, dissipando a escuridão que cercava sua mente e sua visão.
O jovem foi envolvido por uma aura de intenso vermelho, que queimava como o fogo da forja mais ardente. Algo dentro dele sabia exatamente o que fazer. Sabia para onde canalizar aquela força monstruosa. Dominado pelo instinto, disse palavras que subiram por sua garganta e irromperam pela boca. Sussurros desconcertantes e incompreensíveis, palavras que em instantes ele já teria esquecido, restando apenas uma: DemoonV’uur — uma palavra antiga e poderosa.
Houve, então, uma explosão bem à sua frente.
Os homens, petrificados, contemplaram a aparição do ser de longos chifres e olhos vermelhos, recém-emergido das chamas.
A criatura com quase três metros de altura era beijada pelo fogo, completamente envolta por ele. Cada um de seus pelos queimava com chamas vermelhas e azuis que distorciam o ar ao seu redor, mediante o calor que dele emanava. Seus pés eram cascos que afundavam no chão sob o peso do ser flamejante.
Ele caminhou lentamente até os homens trêmulos e imobilizados pelo medo. Um deles urinou nas calças assim que a criatura urrou. A voz gutural e macabra vinha do interior de uma terrível boca de dentes serrilhados, vários deles se precipitando para fora na face cheia de pelos ígneos. Por onde passava, deixava um rastro de terra esturricada e uma língua de fogo ainda beijando o chão, marcando seu caminho.
Impotentes, os homens apenas observavam o demônio de fogo se aproximar. Os olhos arregalados, ameaçando saltar das órbitas. A urina descendo quente pelas calças. O calor tornava-se insuportável. Nenhuma certeza era maior do que a de que morrerem ali.
A criatura saltou sobre os saqueadores, com seus chifres desenhando no ar um arco de fogo e fumaça, e os envolveu em um abraço ardente. Não houve tempo para gritos, o calor era tão intenso que boa parte dos corpos derreteu antes mesmo de serem incendiados.
Tão rápido quanto começou, o espetáculo alucinante teve fim, deixando apenas uma massa disforme de corpos unidos em uma só poça de restos mortais carbonizados e derretidos, onde tudo que se podia identificar eram algumas pontas de ossos.
A criatura infernal desapareceu dentro de uma nova explosão de fogo.
Luther, que igualmente aterrorizado havia se arrastado para o mais longe que pôde, correu até o amigo após o desaparecimento do ser místico. Na tentativa de acordar Caleb, ouviu uma voz baixa, sussurrante.
— Não adianta, ele não vai acordar.
Olhou para trás e viu o mago negro, cujo rosto estava envolto na escuridão do capuz.
As luzes do dia começavam a vencer a penumbra noturna, a tímida luz da aurora derrotava a noite, no entanto, ao redor do mago, as sombras pareciam relutantes em partir.
— Quem é você? — os olhos de Luther varriam o chão em busca da espada.
O mago não respondeu. Seu olhar voltado apenas para o desacordado Caleb e para os últimos resquícios da aura vermelha que emanava brandamente de seu corpo, até se extinguir por completo.
CAPÍTULO IVO DILEMA DO PRÍNCIPEJeremy acordou em meio aos luxuosos lençóis de seda que envolviam seu corpo e o de sua esposa, com a maciez que apenas os tecidos mais caros, produzidos pelas mãos mais hábeis, eram capazes de proporcionar. A claridade que entrava pelas janelas amplas delatava o alvorecer de um novo e belo dia.A mão de Beatriz pesava-lhe sobre o peito. Ele se desvencilhou do abraço da esposa de maneira sutil, fazendo o possível para não acordá-la. Caminhou até a janela e se pôs a observar as ruas da capital, Tessália. Conhecida como a “joia maior do reino”, era o legado conquistado por seu avô e agora governado por seu pai, o rei Alexander Stonehand.Jeremy era o único herdeiro, e a cada vez que olhava por aquela janela, enxergava o peso da responsabilidade de que algum dia seria ele a governar.Quando ocupasse o trono, as vidas de cada uma daquelas pessoas lá embaixo, estariam sob a tutela de seus julgamentos e decisões. Vidas que lhe pertenceriam e pelas quais preci
CAPÍTULO VFRENTE A FRENTEVovô, por favor — Caleb tinha nove anos, estava sentado entre os avós no banco suspenso por correntes que ficava na varanda de casa. Observava maravilhado o espetáculo do pôr do sol que se espremia entre as montanhas, cujos picos cobertos de gelo, aos olhos infantis, pareciam pães polvilhados de açúcar.Ele encarava o avô com pequeninos olhos suplicantes.— Por favor, fale mais sobre ele.Enquanto crescia, tornava-se mais curioso em relação aos pais que não chegara a conhecer. A mãe tinha morrido no parto, em alguma cidade distante. O pai, que o levara para ser criado pelos avós, morreu em circunstâncias das quais Jacob e Rosie jamais falavam.— Você me lembra muito o seu pai – disse Rosie, com seu olhar sempre bondoso.— Rosie! — exclamou Jacob em tom de repreensão.— O garoto merece, não seja tão rabugento.Voltou para o neto os gentis e inesquecíveis olhos azuis.— Seu pai foi uma criança muito esperta e inteligente, assim como você. Quando tinha sua idad
CAPÍTULO VIA CAÇADAFloresta da PassagemTerras Baixas de StonehandAprimeira flecha sibilou no ar para fincar-se errante no tronco de uma árvore. O cervo, assustado com o barulho, ergueu a cabeça antes de saltitar, desaparecendo no mato alto.— Vossa Graça, o senhor é mesmo péssimo na arquearia — constatou Maurice Chamarrubra, o jovem filho do Duque da Passagem, ao passar correndo pelo conde Barteaux Highmoutain com seu próprio arco em punho.— Cada homem é dotado de diferentes talentos, meu querido primo. A grande comitiva do conde, formada por alguns soldados vigilantes e muitos membros da nobreza, avançava pela floresta. Além de arcos e aljavas, a maioria também portava odres de vinho e cerveja para completar a diversão. As famosas caçadas organizadas pela família Highmoutain eram tradição secular, e nem mesmo o conflito separatista que eclodia no norte do continente os impediu de promover o esperado evento, que premiava o campeão com troféu, ouro e novas canções criadas pelos m
CAPÍTULO VIISOMBRAS DO PASSADOAs crianças nadavam sob a cachoeira de águas cristalinas. A menina de cabelos castanhos tinha nove anos e não desgrudava do irmão, um garoto robusto e alto para seus onze anos.Saíram da água apenas porque já não podiam ignorar a fome. Perderam a noção do tempo em meio às brincadeiras. A mãe tinha sido clara: “Voltem antes do almoço”, como dizia sempre.— Venha, precisamos voltar — o garoto estendeu uma das mãos e a ajudou a sair da água. Com a outra, colocou uma flor sobre a orelha da irmã, uma orquídea azul que crescera solitária à beira da água.— Obrigada — admirava-se constantemente com o carinho de Damian.***Os assassinos emergiram na borda da floresta de Costaverde. Do alto da colina, tinham plena visão do interior da propriedade de Dom Omar. A chuva ainda caía incessante quando observavam a pouca movimentação dos guardas nas ameias. Preguiçosos por causa do aguaceiro, estes preocupavam-se muito mais em se manter secos e aquecidos do que em vig
CAPÍTULO VIIIO BRADO DOS SEPARATISTASJeremy subia as ladeiras em direção ao castelo ainda entorpecido pelos acontecimentos na loja de Melinda. A decisão que mudaria sua vida, tomada mediante a necessidade abrasadora de viver ao lado da mulher que amava.A sensação do sexo exaltado ainda era latente na pele. Os corpos misturados, fundidos sobre o balcão da loja. Derrubando esculturas, livros de contas e tudo mais que estivesse ao alcance de mãos e pernas. Movimentos frenéticos e desgovernados, urgência característica das profundas paixões proibidas.Quando avistou o gigante de pedra que era o castelo real, protegido pela enorme e sempre vigilante muralha, Jeremy sentiu a confiança minar. As dúvidas abateram-se sobre ele, eclipsando a projeção da vida feliz com Melinda. O calor provocado pelo sexo extinguia-se. Quanto mais próximo da muralha, mais se sentia como um traidor. O castelo o encarava de maneira acusadora. Cada janela parecia o olhar de um rosto reprovador. Cada porta, uma b
CAPÍTULO IXNOVAS ANTIGAS DESCOBERTASTerras Baixas de StonehandCidade portuária de CapitaniaEle caminhava pelo píer na madrugada soturna. O corpo enrolado em uma manta longa que lhe cobria da cabeça aos pés. O pano velho e rasgado escondia-lhe o rosto, deixando flutuar na brisa apenas uma mecha dos cabelos negros.A madeira do atracadouro seguia vários metros para dentro do mar. Entre as tábuas, era possível ver uma mancha escura e incomum, que seguia fielmente os passos do caminhante noturno. Centenas de peixes espremendo-se para acompanhar a sombra do homem, hipnotizados por sua presença.Se alguém estivesse a observá-lo, seria fácil confundir o caminhante com um fantasma descarnado, remanescente das muitas batalhas de séculos atrás, quando os Três Ducados e as Terras Baixas do Império entravam em conflitos constantes.Ele parou, observando o mar. Olhava para sudoeste, em direção à tormenta distante que castigava com relâmpagos incessantes o tapete de águas negras. O cheiro da ma
CAPÍTULO XPRIMEIROS PASSOS, LONGA JORNADAOs últimos dias na vida de Caleb pareciam-lhe pertencer à outra pessoa. Mal podia acreditar que estava abandonando as Colinas Altas em direção a um destino incerto em Tessália, a distante capital do reino, para ser avaliado por magos tão sombrios quanto Vikram. Até mesmo o seu cavalo parecia aborrecido com a cavalgada, balançando a cabeça e relinchando constantemente.Ele sabia que Luther não estava melhor. A ligação do amigo com o pai era profunda. Laços que se estreitaram após Herbie perder a esposa anos atrás, vítima de uma doença do inverno. Desde então, o líder do vilarejo e mentor de seus conterrâneos passara a ocupar na vida do filho o lugar deixado pela mãe.A dor de Luther era evidente para Caleb, bastava olhar para ele: a postura encurvada sobre o cavalo e o olhar distante, exclusivo daqueles que sofrem das doenças da alma. O jovem, antes tão falante, viajava calado. Passava a maior parte do tempo imerso e ausente.Vikram juntava-se
CAPÍTULO XIRASGANDO O CÉUContinente de AsgardO verão asgardiano trazia consigo apenas um ligeiro esgar de calor. Bem como a primavera promovia o desabrochar apenas das flores mais fortes, que no outono se tornariam quebradiças e cairiam derrotadas de forma cruel. Já o inverno, sempre dolorosamente rigoroso, era quem separava e exaltava os fortes, trajando adequadamente os mais fracos com os trajes negros da morte ou brancos do gelo.Baldur mirava seu olhar nos últimos raios preguiçosos do sol que se despedia no horizonte a oeste. À sua frente, a colina gelada inclinava-se rumo ao céu, onde as estrelas, sempre vigilantes, brilhavam timidamente.Seus pés afundavam no gelo até as canelas, mas mesmo em desequilíbrio, ele sequer ameaçava largar o odre de pele de lobo, onde o hidromel dançava conforme seu avanço trôpego.A cabeleira ruiva e desgrenhada era a única proteção de sua cabeça contra os ventos gélidos, que assobiavam vindos de todas as direções, entoando canções quase perceptív