CAPÍTULO XXHABITANDO AS SOMBRASLúcifer lembrava-se daquela caverna. Rememorava na própria carne a dor de caminhar entre os corpos mutilados de seus leais companheiros. O sangue media-se por poças rasas, onde penas angelicais tinham sua alvura conspurcada, boiando no líquido escarlate.Ele correu pelo interior da caverna com sua espada em mãos. Vingadora Dourada emitia brilho próprio, fruto do ouro celestial, iluminando seu caminho. Estrela da Manhã seguia possuído pela ira e pelo desejo flamejante de vingar seus irmãos. Muitos dos mortos ainda agarravam-se às espadas, como se determinados a manter-se em eterna vigília.Nas profundas entranhas do lugar, sentado sobre uma pilha de corpos, mordiscando uma parte irreconhecível do que um dia fora uma criatura celeste, estava o terror que derrotara a todos. Um ser enorme, de cascos, chifres retorcidos e asas de morcego. Um forte cheiro de enxofre misturava-se ao odor fétido dos cadáveres que atraíam moscas.***Lúcifer abriu os olhos. Aco
CAPÍTULO XXIO QUE A NOITE TRAZEra pouco mais de meio-dia. O sol, que escolhia cuidadosamente os dias outonais pros quais daria o ar de sua graça, tinha resolvido, como um sinal da boa vontade de Odin, acompanhar Baldur e seus homens, que seguiam a meio galope, poupando os cavalos. Embora acostumados a longas jornadas, os animais teriam muitas milhas pela frente nos próximos dias, seguindo de vila em vila para convocar os chefes dos Clãs Invernais das Montanhas.O outono chegara a Asgard como uma força viva, implacável. Anunciando a plenos pulmões que o inverno que o seguia nos calcanhares prometia ser terrível. Seus tributos seriam pagos com frio, fome e morte, como poucas vezes ao longo da história.Baldur era acompanhado por doze guerreiros, seus melhores homens, e entre eles, Aegir, um amigo de infância ao qual confiaria a própria vida.— Enviou mesmo Edda para a toca dos leões? Que excelente marido você é, meu amigo — Aegir cavalgava imponente ao lado de Baldur.— Edda tornou-se
CAPÍTULO XXIITRANÇANDO OS FIOSAluxuosa liteira usada pela princesa Beatriz Sombradourada viajava sem sacolejos. Os homens que a carregavam, fortes e disciplinados, davam seu suor em troca de proporcionar uma viagem agradável, mas com as cortinas fechadas, o calor rodopiava dentro da cabine sem ter por onde escapar, preço pago pela vontade da princesa em passar incólume, como uma nobre qualquer a pagar pelo caro serviço de transporte.A guarda pessoal de Beatriz seguia a certa distância, disfarçada em meio à multidão. Era formada por dois homens da coroa e dois guardas que a acompanhavam desde a infância, ainda no ducado de seu pai.Seu destino era a Baixada dos Artesãos. Aquele encontro já não podia mais ser adiado.Após uma leve batida na lateral da cabine, os homens pararam e baixaram a liteira. Beatriz desceu num farfalhar de panos. Suas roupas destoando dos passantes. Trajava um belo e caro vestido de seda verde. Uma enorme esmeralda pendia num colar. Embora não quisesse chamar
CAPÍTULO XXIIIENTRE AS PAREDES DO DESTINOA cavalgada matinal, de trote regular, levou Luther, Caleb e Vikram pelas últimas regiões campestres antes de alcançarem a capital. Após cruzar a estreita floresta de Redwood e as pastagens de uma ou outra fazenda margeada pela estrada, os muros gigantescos de Tessália, a “joia maior do reino”, surgiram titanicamente diante dos rapazes atônitos. Não poderia haver visão mais intimidadora do que aquela para os jovens criados no interior, entre as montanhas. Eles não podiam sequer medir a enormidade da capital com seus olhos destreinados. Tessália aparentava ser muitas vezes maior do que as cidades pelas quais passaram.Vikram conduziu os dois em direção ao aglomerado de casas construído à sombra das muralhas. Aquele bairro se formara ainda durante a era do Império, quando mendigos e pobres eram banidos para fora da cidade. Aqueles que vinham do interior trazendo na bagagem apenas o sonho inocente de que a capital lhes proporcionaria uma vida de
CAPÍTULO XXIVDA ESCURIDÃO PARA A ESCURIDÃOO salto das crianças sobre a cama fez Kel’Enner acordar sobressaltado. A claridade do dia recém-raiado trespassava as finas cortinas de seda, cegando-lhe momentaneamente. Ele precisou de longos segundos para se situar, para entender que os gritos daquelas crianças eram apenas um papai. As lágrimas rolaram soltas pelos olhos do assassino quando se descobriu no quarto de sua antiga casa no campo, e que aquelas duas meninas de nove e dez anos, e o garotinho de seis eram os seus filhos. Seus bens mais preciosos, mas que deveriam estar mortos. Sem se preocupar com que tipo de ilusão poderia ser aquela, abraçou as crianças e gritou por entre soluços de um choro convulsivo que as amava mais do que tudo que já existira no mundo. — Desse jeito eu vou ficar com ciúmes — aquela voz... Kel’Enner, que não queria se desgrudar um só segundo dos filhos, viu a mulher de sua vida parada como uma aparição divina
CAPÍTULO XXVALÉM DAS ALGEMASDesde que começou a se alimentar novamente e suas forças principiaram a retornar, Gerard não pensou em outra coisa além do seu plano de fuga. Nos últimos dois dias, em troca de comida, o mago começara a lecionar sobre os segredos do Arcanum para o conde Barteaux, excluindo minuciosamente qualquer coisa que fosse realmente relevante e acrescentando pequenas e indetectáveis mentiras, entretendo o conde com o que eram mais histórias do que propriamente ensinamentos. No entanto, ele sabia que Barteaux não era um homem fácil de se passar para trás e em poucos dias não haveria mais como ludibriá-lo.Embora seu corpo ainda estivesse em farrapos, a mente, onde residia o verdadeiro poder, havia recuperado a plenitude de sua capacidade. Aquela noite seria derradeira. Fugiria ou morreria tentando. A carne do interior de seus lábios estava em frangalhos. Ele a mordera ao longo dos dois últimos dias, escavando-a profundamente em busca de sangue. O líquido
PRÓLOGOEle já havia brincado antes, gotejando no negrume do universo bilhões de pontos prateados, derramando em sua infinita tela de pintura a explosão de cores das galáxias e nebulosas. Tudo era perfeito, mas o problema com a perfeição era que, invariavelmente, ela se atrelava ao tédio, companheiro fiel daqueles que não tem arestas a aparar e cujas criações são elementos estáticos, de começo e fim determinados. Então ele decidiu criar algo jamais experimentado.Durante as primeiras eras, chamadas por ele de Alvorada do Tempo, o deus Criador findou sua grandiosa obra-prima, um vasto planeta azul, a joia mais bela do cosmo.Satisfeito com a esplêndida criação, decidiu dar vida a seres igualmente maravilhosos para habitá-lo, semeando na terra fértil parte de sua aura majestosa. Assim viu germinar criaturas fantásticas, divindades que não conheciam a morte, deuses menores que governaram o planeta por séculos, cultuando o Criador.Com o passar do tempo, cegos por seus imensos poderes e c
CAPÍTULO IIO CONTRATOContinente dos Três DucadosO homem cruzava as ruas de Dama de Pedra como se levado pelo vento. Ele podia sentir no ar o cheiro úmido que antecedia as últimas chuvas de verão. A noite cobria a velha cidade com um manto espesso. A lua quase não brilhava no céu, encoberta pelas pesadas nuvens de tempestade, resumindo-se a uma auréola opaca por trás do véu de sombras.Dama de Pedra era a maior cidade do ducado de Costaverde, governado pelo duque Olho de Águia Willow. A cidade era enorme, cheia de bairros onde era fácil se perder devido às casas altas e vielas estreitas, que se aglomeravam formando labirintos onde o céu se resumia a uma estreita faixa escura, limitada pelos telhados de madeira ou telhas arredondadas de argila negra.O homem que desafiava a noite e seus perigos era nada mais que um vulto, misturando-se às sombras frias das casas. Seus passos não produziam som. Sua silhueta era engolida pela escuridão. Seu cheiro era nulo. Ele praticamente não existia