CAPÍTULO XXIIIENTRE AS PAREDES DO DESTINOA cavalgada matinal, de trote regular, levou Luther, Caleb e Vikram pelas últimas regiões campestres antes de alcançarem a capital. Após cruzar a estreita floresta de Redwood e as pastagens de uma ou outra fazenda margeada pela estrada, os muros gigantescos de Tessália, a “joia maior do reino”, surgiram titanicamente diante dos rapazes atônitos. Não poderia haver visão mais intimidadora do que aquela para os jovens criados no interior, entre as montanhas. Eles não podiam sequer medir a enormidade da capital com seus olhos destreinados. Tessália aparentava ser muitas vezes maior do que as cidades pelas quais passaram.Vikram conduziu os dois em direção ao aglomerado de casas construído à sombra das muralhas. Aquele bairro se formara ainda durante a era do Império, quando mendigos e pobres eram banidos para fora da cidade. Aqueles que vinham do interior trazendo na bagagem apenas o sonho inocente de que a capital lhes proporcionaria uma vida de
CAPÍTULO XXIVDA ESCURIDÃO PARA A ESCURIDÃOO salto das crianças sobre a cama fez Kel’Enner acordar sobressaltado. A claridade do dia recém-raiado trespassava as finas cortinas de seda, cegando-lhe momentaneamente. Ele precisou de longos segundos para se situar, para entender que os gritos daquelas crianças eram apenas um papai. As lágrimas rolaram soltas pelos olhos do assassino quando se descobriu no quarto de sua antiga casa no campo, e que aquelas duas meninas de nove e dez anos, e o garotinho de seis eram os seus filhos. Seus bens mais preciosos, mas que deveriam estar mortos. Sem se preocupar com que tipo de ilusão poderia ser aquela, abraçou as crianças e gritou por entre soluços de um choro convulsivo que as amava mais do que tudo que já existira no mundo. — Desse jeito eu vou ficar com ciúmes — aquela voz... Kel’Enner, que não queria se desgrudar um só segundo dos filhos, viu a mulher de sua vida parada como uma aparição divina
CAPÍTULO XXVALÉM DAS ALGEMASDesde que começou a se alimentar novamente e suas forças principiaram a retornar, Gerard não pensou em outra coisa além do seu plano de fuga. Nos últimos dois dias, em troca de comida, o mago começara a lecionar sobre os segredos do Arcanum para o conde Barteaux, excluindo minuciosamente qualquer coisa que fosse realmente relevante e acrescentando pequenas e indetectáveis mentiras, entretendo o conde com o que eram mais histórias do que propriamente ensinamentos. No entanto, ele sabia que Barteaux não era um homem fácil de se passar para trás e em poucos dias não haveria mais como ludibriá-lo.Embora seu corpo ainda estivesse em farrapos, a mente, onde residia o verdadeiro poder, havia recuperado a plenitude de sua capacidade. Aquela noite seria derradeira. Fugiria ou morreria tentando. A carne do interior de seus lábios estava em frangalhos. Ele a mordera ao longo dos dois últimos dias, escavando-a profundamente em busca de sangue. O líquido
CAPÍTULO XXVIENTRE AMIGOS E INIMIGOSEdda estava em Valhala há dois dias. Como esposa de um dos cinco Senhores dos Clãs Invernais, lhe foram garantidas luxuosas acomodações. Seu quarto possuía a mobília reservada a reis, e a comida, de tão farta, chegava a lhe revoltar, pensando que por toda Asgard as pessoas precisavam labutar como loucas para garantir apenas um mínimo, muito distante de toda aquela ostentação. No entanto, os costumes aos quais ela se reservava o direito de repudiar não faziam com que Valhala se tornasse menos impressionante. Da janela do quarto, ela contemplava o imenso vale ao redor do castelo, o único lugar em toda Asgard onde as árvores ainda não tinham desfolhado e frutas gordas e suculentas ainda seguiam dependuradas em seus galhos. O vale entre as montanhas, como desde muito cedo aprendiam as crianças asgardianas, fora o lugar sagrado onde Odin se deitara para sempre, e ao seu redor, segundo as lendas, fora construído Valhala, pelas mãos de seus c
CAPÍTULO XXVIIMEIAS VERDADESJeremy, meu amor — disse Beatriz, ela usava uma camisola transparente, as formas generosas dançando eroticamente sob a seda —, venha comigo, tenho uma surpresa para você. Jeremy levantou os olhos para a esposa. Deitara-se há pouco tempo para dormir, mas o sono já estendia seus domínios sobre ele. As pálpebras pesavam como chumbo. — O que você quer, Beatriz? Eu tive um dia longo e cansativo. — Se eu contar deixa de ser surpresa — a mulher sorria espirituosamente. Relutante, Jeremy se deixou guiar pelo castelo vazio, envolto pelo negrume da noite e pelo frio sussurrante. Um guarda ou outro se movimentava em silêncio pelos corredores. Patrulhavam como fantasmas que assombram um velho casarão, exceto pelas correntes que não tinham para arrastar. — Onde estamos indo? — perguntou o príncipe de mal humor. — Já estamos chegando, tenho certeza de que você vai adorar. Jeremy se viu nas antigas
CAPÍTULO XXVIIIA ESCOLHACaleb sentia-se aprisionado entre o existir e o não existir. No princípio, havia o apenas o nada, permeado de cristalina inconsciência. Então, a escuridão, densa e sufocante, trazendo consigo a voz gutural que vinha de todos os lugares e de lugar nenhum, um alento que o salvou da insanidade e da não compreensão. “Para renascer é preciso morrer”. Disse a voz, retumbante. A escuridão persistia em sua supremacia hegemônica. “Aquele que morreu é um, o que renasce é outro.” Um som trovejante foi ouvido, rápido, poderoso e ritmado. “Aquele que renasce, renasce em mim e para mim.” A partir da fria escuridão, surgiu o calor. Este era tenro, aconchegante e familiar. “Venha para mim”. Havia algo por todos os lados, algo líquido. O som borbulhante misturava-se ao tambor que seguia acelerado, ansioso. “Chegou a hora”. Uma fenda de luz se abriu rompendo
PRÓLOGOEle já havia brincado antes, gotejando no negrume do universo bilhões de pontos prateados, derramando em sua infinita tela de pintura a explosão de cores das galáxias e nebulosas. Tudo era perfeito, mas o problema com a perfeição era que, invariavelmente, ela se atrelava ao tédio, companheiro fiel daqueles que não tem arestas a aparar e cujas criações são elementos estáticos, de começo e fim determinados. Então ele decidiu criar algo jamais experimentado.Durante as primeiras eras, chamadas por ele de Alvorada do Tempo, o deus Criador findou sua grandiosa obra-prima, um vasto planeta azul, a joia mais bela do cosmo.Satisfeito com a esplêndida criação, decidiu dar vida a seres igualmente maravilhosos para habitá-lo, semeando na terra fértil parte de sua aura majestosa. Assim viu germinar criaturas fantásticas, divindades que não conheciam a morte, deuses menores que governaram o planeta por séculos, cultuando o Criador.Com o passar do tempo, cegos por seus imensos poderes e c
CAPÍTULO IIO CONTRATOContinente dos Três DucadosO homem cruzava as ruas de Dama de Pedra como se levado pelo vento. Ele podia sentir no ar o cheiro úmido que antecedia as últimas chuvas de verão. A noite cobria a velha cidade com um manto espesso. A lua quase não brilhava no céu, encoberta pelas pesadas nuvens de tempestade, resumindo-se a uma auréola opaca por trás do véu de sombras.Dama de Pedra era a maior cidade do ducado de Costaverde, governado pelo duque Olho de Águia Willow. A cidade era enorme, cheia de bairros onde era fácil se perder devido às casas altas e vielas estreitas, que se aglomeravam formando labirintos onde o céu se resumia a uma estreita faixa escura, limitada pelos telhados de madeira ou telhas arredondadas de argila negra.O homem que desafiava a noite e seus perigos era nada mais que um vulto, misturando-se às sombras frias das casas. Seus passos não produziam som. Sua silhueta era engolida pela escuridão. Seu cheiro era nulo. Ele praticamente não existia