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Alvorada do Tempo o despertar
Alvorada do Tempo o despertar
Por: Miller Britto
Capítulo 1 - Ao redor da fogueira

PRÓLOGO

Ele já havia brincado antes, gotejando no negrume do universo bilhões de pontos prateados, derramando em sua infinita tela de pintura a explosão de cores das galáxias e nebulosas. Tudo era perfeito, mas o problema com a perfeição era que, invariavelmente, ela se atrelava ao tédio, companheiro fiel daqueles que não tem arestas a aparar e cujas criações são elementos estáticos, de começo e fim determinados. Então ele decidiu criar algo jamais experimentado.

Durante as primeiras eras, chamadas por ele de Alvorada do Tempo, o deus Criador findou sua grandiosa obra-prima, um vasto planeta azul, a joia mais bela do cosmo.

Satisfeito com a esplêndida criação, decidiu dar vida a seres igualmente maravilhosos para habitá-lo, semeando na terra fértil parte de sua aura majestosa. Assim viu germinar criaturas fantásticas, divindades que não conheciam a morte, deuses menores que governaram o planeta por séculos, cultuando o Criador.

Com o passar do tempo, cegos por seus imensos poderes e cônscios de que, após a criação, o Arquiteto descansava, os deuses se organizaram para roubar o único dom com o qual não foram agraciados: o poder da criação.

Mas o Arquiteto do mundo era onisciente. Nem uma única folha seca caía de uma árvore no outono, e nem um floco de neve se desprendia dos céus invernais sem que fosse de seu conhecimento, bem como a revolta de seus filhos. Incapaz de combater os seres que aprendera a amar, o Arquiteto usou mais uma parte de sua aura para dar vida a uma nova raça. Seres de poder, beleza e altivez ímpares, que chamou de anjos. Estes receberam o dom da personalidade e a capacidade do pensamento, mas o Arquiteto não estava disposto a correr os mesmos riscos e os amarrou à sua vontade. Seriam seguidores leais até o fim dos tempos.

Liderados pelos arcanjos Rafael, Miguel, Gabriel e Lúcifer, conhecidos como Os Primeiros Sóis e dotados de imenso poder, que se sobrepunha a todos os demais, as legiões celestes caçaram e derrotaram cada uma das divindades menores, não apenas frustrando os seus planos, mas levando-os à completa extinção.

A guerra sangrenta ceifou a vida de centenas de anjos e o Arquiteto chorou por cada um deles. Após décadas de combate, o planeta estava limpo novamente, despido das máculas que foram seus habitantes originais.

Como prêmio pela devoção inabalável dos anjos, o Deus Criador usou suas últimas energias para criar um novo mundo dentro do anterior, ainda mais majestoso, o qual denominou: Caelum. Um lugar que os filhos poderiam chamar de lar e onde poderiam velar pelo descanso do Pai.

***

Centenas de anos depois.

A Fortaleza Divina erguia-se como um titã no topo da mais alta montanha no Caelum. Suas torres trespassavam as nuvens, rasgando a abóbada celeste. O tom azulado a mesclava ao céu, como se fossem um. Maravilhosas arcadas e passarelas conduziam a mirantes fabulosos, onde era possível contemplar a beleza sem igual do firmamento do mundo, pintado com uma miríade de cores magníficas, brindando aos olhos desde o amanhecer dourado ao crepuscular vermelho escarlate.

A estrutura colossal abrigava o trono do Criador, onde ele descansava velado de perto pelos arcanjos, os Primeiros Sóis, seus mais leais e poderosos servos.

A voz doce de Lúcifer, a Estrela da Manhã, inundou a sala. Suas asas eram de um dourado magnífico, e as feições tão delicadas e simétricas que até mesmo os demais arcanjos permitiam-se impressionar com sua beleza.

— É nosso dever avisar ao pai. Precisamos intervir antes que a situação saia do controle — afirmou o resplandecente.

Rafael anuiu, ponderando sobre aquelas palavras e esperando que seus demais irmãos se manifestassem.

Gabriel tomou a palavra. Seus longos cabelos eram negros e brilhantes. Os olhos azuis destacavam-se quase tanto quanto as asas violáceas.

— Não sabemos que tipos de criaturas irão brotar do sangue imundo das divindades que lavrou a Terra. Não há porque arrastar nossos irmãos para outra guerra, quando podemos impedi-la antes mesmo de começar.

Rafael também considerou aquelas palavras e voltou-se para Miguel, que era conhecido pelas legiões celestes como o Inventor da Morte, o primeiro a aniquilar uma divindade, um poderoso ser que comandava as águas. Com sua espada flamejante, Miguel o partiu em dois, batizando o mar com o sangue de Poseidon, a primeira baixa na guerra que os celestes chamariam depois de o Expurgo Divino.

— Eu concordo com os demais, o Criador precisa saber — foi sucinto o mestre do fogo. Seus olhos eram de um vermelho intenso, bem como as asas, que ameaçavam incendiar-se a qualquer instante. O ar estalava ao seu redor.

Após considerar tudo que lhe fora dito, Rafael juntou as mãos diante do rosto cravejado de cicatrizes. A pele era negra como ébano e os braços musculosos diferenciavam-no dos irmãos. Não havia nele a graciosidade dos demais. Era um verdadeiro guerreiro, mais alto e poderoso, ameaçador. O único arcanjo a possuir dois pares de asas, que quando estendidas, atingiam a maior envergadura dentre todas as criaturas aladas do Caelum.

Rafael se levantou da cadeira que ocupava junto à mesa redonda de pedra e desfraldou as asas negras. Seus irmãos contemplaram a imponente presença que encheu a sala. A luz parecia abandonar sua prioridade de iluminar o cômodo por igual, convergindo e moldando-se na direção de Rafael. O próprio espaço se curvava a ele. Era sem dúvida a mais poderosa das criaturas de Deus.

— Vocês têm razão, o pai precisa ser avisado — sua voz era o próprio trovão, preenchendo os corredores vazios do castelo e retumbando ao longe.

O Salão dos Arcanjos delimitava o castelo, a partir dali apenas os quatro seres supremos tinham permissão para ir, e pelo menos um deles deveria estar sempre por lá, velando o descanso do Criador.

Quando Rafael, com seu modo duro de caminhar deixou a sala, essa pareceu esvaziar-se, encolher-se. A ausência do arcanjo e do calor de sua aura parecia ser sentida pelas paredes de mármore branco, que deixavam de brilhar, voltando a ser apenas pedra fria.

Ele caminhou até as escadas em espiral que levavam ao trono do Pai. Subiu degrau por degrau sendo inundado a cada passo pela ansiedade de contemplar o Criador. Uma onda de alegria lhe tomava da cabeça aos pés, fazendo suas células vibrarem em cada ínfima partícula de seu ser. 

Muitos degraus ainda o separavam da sala do trono, mas já era possível sentir a aura do Arquiteto, uma energia serena e ao mesmo tempo imponente, que preenchia cada partícula do ar, infiltrava-se em cada ranhura do chão e das paredes, e penetrava em cada poro da pele negra e reluzente de Rafael.

A porta para a sala do trono de deus era gigante, reforçando no arcanjo a sensação de quanto era diminuto mediante a magnitude do Criador. O mármore era cortado por veios, que formavam um labirinto de símbolos e corriam para o seu centro, onde havia gravada em sulcos profundos a letra enoquiana Veh.

Rafael postou uma das mãos espalmada em direção à porta, enquanto com a outra, com apenas dois dedos erguidos frente aos olhos, começou então a recitar:

Graphvan Rafael, famgraphdruxnamerdon galunfam urgraphgedgonmedgaphfam vehgaphurgraphfamgisggraphfam — eu Rafael, senhor das legiões celestes — meddongalgraphdruxmed gervangraph famgraph unpadonuntal — ordeno que se abra.

A aura grafite de Rafael fluiu de seu corpo para os veios no mármore. A energia era sugada e absorvida pela porta, correndo pelos sulcos e preenchendo os marcos dos diversos símbolos enoquianos, até chegar à letra que representava o Criador: Veh. Ela brilhou, ofuscando a visão do arcanjo que se encontrava extenuado pela extração de tamanha energia. Aquela era a única maneira de abrir a sala do trono. Levaria décadas até que a aura de Rafael se recarregasse por completo. Apenas os Primeiros Sóis tinham poder suficiente para alimentar a porta, que bebia avidamente de suas auras até esgotá-las. Uma chave que não podia ser roubada ou possuída por nenhum outro ser. O preço a ser pago.

Assim que as portas deslizaram, Rafael caiu de joelhos, sem conseguir levantar os olhos que ameaçavam explodir em chamas, tamanho o poder da aura do Criador. A energia intensa, que até então era represada pelas portas divinas, emanava como um manto, cobrindo cada centímetro de chão, teto, paredes e do próprio vazio do ar. Milhões de chicotes da aura vibrante serpenteavam em todas as direções, enraizando-se por cada milímetro daquele cômodo gigantesco e emitindo uma luz viva e ofuscante.

Mesmo abalado e oprimido por aquele poder, Rafael sentia-se em profundo êxtase. Tentava imaginar a aura do Criador antes de ter se dividido em dezenas de divindades menores, antes de ter criado os anjos e o Caelum. Chegou à conclusão de que sua mente, limitada, estava fadada a jamais conceber um fim para o cálculo de tamanho poder; não sem enlouquecer no processo.

— Rafael — a voz do Senhor preencheu o arcanjo, dando razão a sua existência —, meu filho.

— Pai, me desculpe por perturbar seu descanso – pronunciou em enoquiano, sem conseguir erguer os olhos.

— Diga o que lhe aflige, estimado filho, príncipe guerreiro das castas celestiais.

— Pai, o mundo que criaste está gerando vida derivada do sangue das divindades que pereceram em seu solo durante a Guerra do Expurgo. Temo que daí possa nascer criaturas abomináveis que nos obriguem a guerrear mais uma vez. Vim pedir permissão para esterilizar o solo do planeta, para torná-lo infértil enquanto ainda podemos.

— Não! — a palavra de Deus soou tão poderosa que, por um momento, Rafael achou que as paredes iam ruir e que todo o castelo desmoronaria sob seus pés. Mais do que isso, todo o Caelum seria reduzido a pó mediante a fúria do Criador. Seus tímpanos estiveram prestes a estourar, bem como cada veia do corpo, que vibravam sob a pele, deixando marcas vermelhas por onde o sangue circulava, fervilhando mediante o calor da palavra divina.

— Ah! Meu querido Rafael — a voz abrandou, tornando-se quente e acolhedora, arrancando o arcanjo do desespero para mergulhá-lo em um mundo de esperança e calmaria –, se você pudesse ver o que eu vejo. Junto dessas criaturas, inúmeras coisas boas nascerão. Eles as chamarão de Amor, Compaixão e Amizade. Outras serão más, terríveis, como você disse: abomináveis. Mas todos esses são inventos que precisam ser concluídos para que o planeta esteja mais próximo da complexidade que planejei alcançar quando o criei. Somente no ápice dessa complexidade é que você e seus irmãos entenderão, por completo, quem sou.

— Como o Criador deste mundo, o declaro inacabado, incompleto. Tudo que ainda há de ser, criar-se-á por intermédio dos seres que nascerão de seu próprio solo. Ordeno que você e seus irmãos celestes permitam que a vida floresça sobre o planeta. Estão terminantemente proibidos de interferir no curso da história.

— Sim, senhor — anuiu o arcanjo ainda caído sobre os joelhos. Os olhos miravam o chão, sem coragem ou forças para erguê-los em direção ao pai.

O Criador retomou o silêncio, a deixa para Rafael arrastar seu corpo terrivelmente fatigado para longe dali.

CAPÍTULO I

AO REDOR DA FOGUEIRA

Milhões de anos depois.

Grande continente do Reino Stonehand.

Ano 507 p.V.A. - pós-vinda do Arcanjo.

Caleb descansava deitado junto à sombra de um enorme e frondoso salgueiro, cujas raízes antigas, grossas como tentáculos de um polvo abissal, entrelaçavam-se penetrando no solo arenoso e de pedras acinzentadas. O rapaz se deliciava com o cheiro de terra molhada, regada pelo riacho que corria a poucos metros de seus pés. O som tranquilizante da correnteza, que acariciava as pedras polidas e arrastava folhas secas injetando no ar uma agradável umidade, era um bálsamo muito bem vindo após o dia longo de caminhada, que começara bem antes do nascer do sol.

Caleb era um jovem órfão que fora criado pelos avós até os quinze anos, quando ambos o deixaram, vítimas da idade avançada. Despediram-se do mundo de maneira pacífica e sem alarde, enquanto dormiam. As poucas semanas de distância entre suas partidas foram encaradas como um chamado, como se um não pudesse viver ou morrer sem o outro.

“Minha missão está concluída, querido Caleb. Você se tornou um homem do qual posso apenas me orgulhar. Logo estarei com Rosie e você será livre para escolher o próprio caminho”, dizia-lhe o avô nos dias que antecederam sua morte.

O velho Jacob era um homem gentil. Fazendeiro que ainda, aos oitenta e três anos, seguia cuidando dos afazeres no campo, como um menino no auge da forma. Carregava uma coisa aqui e outra acolá, fazia reparos nas cercas, alimentava os animais, plantava, colhia e, sobretudo, aproveitava cada diálogo com Caleb para lhe ensinar não apenas sobre a fazenda, mas sobre os desafios da vida.

“Caráter e honestidade são o segredo para algo igualmente importante: respeito. Esse, quando conquistado, jamais precisará ser exigido, meu filho.”

Caleb chegara aos dezoito e decidira permanecer na fazenda, levando a mesma vida simples dos avós, alheio ao mundo exterior e a todas as aventuras prometidas em contos e fábulas. Colinas Altas, aquele lugarzinho pacífico em meio às montanhas, de gente acolhedora, que ele conhecia por toda a vida, era tudo o que precisava conhecer. Saía em viagem apenas quando Herbie, o líder do vilarejo, reunia aqueles que precisavam negociar nas cidades baixas e organizava as caravanas para vender os plantios e comprar tudo aquilo que não eram capazes de produzir no clima rígido das montanhas.

Caleb sentiu uma gota d’água cair em seu rosto. Abriu os olhos e viu seu melhor amigo, Luther, rindo de maneira marota diante dele, antes de virar um balde d’água em sua cabeça.

O jovem levantou-se de um pulo, indignado e espumando de raiva.

— Você está louco? — os olhos verdes reluziam sob as mechas do cabelo negro, que caía encharcado no rosto redondo e belo. Tinha a pele clara em tom amarelo, como era comum aos povos das montanhas. — Faça um favor a si mesmo, Luther Braveheart, não me deixe pegá-lo.

— Eu vim preparado — Luther era mais alto e tinha os cabelos curtos, diferente do emaranhado de cachos de Caleb —, erga-se e segure sua arma — arremessou a espada de madeira, que o jovem ensopado aparou no ar.

— Em guarda, senhor Deepforest — bradou Luther, os olhos castanhos brilhando divertidos. Era um ano mais velho que Caleb.

— Vou acabar com você, depois o afogarei no riacho e deixarei seu corpo para os abutres. Pobres animais — balançou a cabeça negativamente — morrerão envenenados com tamanha podridão.

— Você fala com eloquência, mas não passa de um fracote, Caleb. Vamos, me mostre o que pode fazer — respondeu Luther sorrindo.

Caleb manejou a espada habilmente. Investia de maneiras alternadas, tentando quebrar a postura do amigo, mas o rapaz era invejavelmente bom. Nenhum ataque penetrava sua defesa. Insistiu. Saltou e tentou um acerto no ombro, mas Luther desviou para o lado e girou a espada, acertando a cintura de Caleb, que gemeu mediante o contragolpe perfeito. As armas de madeira estavam longe de serem letais, mas causavam marcas arroxeadas que levavam dias para desaparecer e serviam de chacota por um longo tempo.

 — Sua meretriz de bordel! — Caleb jogou a espada no chão e se atirou sobre o amigo. Ambos rolaram para dentro do riacho.

Pássaros voaram em todas as direções, sobressaltados com o barulho, enquanto Caleb fingia afogar o amigo, empurrando sua cabeça para dentro da água rasa. Largaram-se rindo incontrolavelmente, até faltar o ar.

 — Você ainda me paga — jurou Caleb, assim que recuperou o fôlego.

— Você sempre diz isso, Cal, mas nunca consegue me vencer.

— Um dia vencerei — tamanha seriedade arrancou ainda mais risadas do amigo.

— Do que você está rindo?

— De nada. Vamos embora. Os homens já comeram, descansaram e estão preparando novamente as carroças e os animais.

Caleb se levantou, puxado pela mão estendida de Luther. Caminharam para fora da floresta de volta ao sol escaldante da estrada, onde a aglomeração da caravana preparava-se para partir, exatamente como Luther antecipara.

O comboio era formado por oito carroças puxadas por cavalos montanheses, baixos e musculosos, criados para serem bons animais de carga. Lentos como eram, jamais venceriam uma corrida contra qualquer espécime das terras baixas, mas seria difícil encontrar em todo Stonehand animais com tamanha resistência.

Os jovens foram em direção à carroça que dividiam com mais duas pessoas: Saul, que levava o excesso de suas frutas e grãos para vender, e Bailey, cujas ervas e especiarias pouco espaço ocupavam. No meio do caminho, Herbie, guia da caravana e líder daquele povo, interceptou os garotos.

— Achei que não voltariam mais — encarava Luther, seu único filho, uma caricatura sua, exceto pelas marcas da idade que se viam acumuladas sob os olhos, em forma de rugas, e ao redor da barriga, como um segundo cinturão, além do que ele usava em prol de manter as calças no lugar.

— A culpa é desse imbecil do Deepforest, que cochilou esquecendo-se da vida – deu um tapa na cabeça de Caleb.

— Ai! Doeu! E você precisava mesmo me dedurar?

— Senhor Braveheart, não tenho mais nada a reportar — Luther fez uma mesura militar para o pai. Os três caíram na gargalhada.

Herbie seguiu caminhando ao longo do comboio. Falava com as pessoas alertando sobre a partida. O sol do fim do verão castigava os homens que se escondiam sob chapéus de palha trançada. Caleb e Luther se juntaram aos companheiros de viagem.

Bailey era um homem dado às coisas pequenas e delicadas. Cultivava o jardim mais belo da pequena comunidade entre as montanhas e era invejado pelos amigos, entre outras coisas, por ser casado com Simone, a mulher a mais bela do vilarejo. Já Saul era homem rústico, um retrato fiel do ambiente em que crescera e vivera. Era fácil imaginá-lo em uma clareira na floresta, picando lenha com um enorme machado afiado, seguro nas mãos nodosas e impulsionado pelos braços musculosos. O lenhador sempre falava alto, mesmo quando as pessoas estavam a um pé de distância.

Os jovens foram cumprimentados pelos homens que os aguardavam. Bailey alisava seu bigodinho fino, à moda dos nobres das grandes cidades de Stonehand. Saul os encarou erguendo as sobrancelhas grossas e desgrenhadas.

Durante a viagem, vinham se revezando nos assentos da carroça, reduzindo o peso a ser puxado pelos cavalos. Os habitantes das montanhas aprenderam a amar e respeitar seus animais. Faziam o possível para poupá-los sentando-se dois nos bancos, sob o abrigo da manta de couro, enquanto os demais caminhavam sob o sol amarelo escaldante.

— Bom passeio para vocês, garotos! Agora é nossa vez de descansar — bradou Saul como um urso, alisando a espessa barba negra, tão desgrenhada como as sobrancelhas.

A caravana seguiu seu caminho com rodas, pés e cascos, deixando sulcos profundos no chão de terra.

A estrada serpenteava ao lada da floresta em um declínio lento e tranquilo, sem obstáculos a serem vencidos. Tampouco havia qualquer outra coisa que pudesse preencher o tempo dos jovens, que se entediavam facilmente com a paisagem estática. De um lado, o interminável paredão montanhoso, do outro, o sempre verde da mata fechada. Para romper a monotonia, restavam as conversas sobre as donzelas do vilarejo.

— Estou dizendo, a garota dos Barkley é louca por você — insistia Luther, enquanto Caleb se defendia com as bochechas coradas.

— Ela é apenas uma criança.

— Ela tem dezesseis, é praticamente da sua idade. Além do mais, o pai dela adora você.

— O que ele adora são as terras que herdei.

— Então deixe o velho Barkley pensar que as terá. Atraque-se com a filha dele, depois se finja de bobo. A parte boa é que você nem vai precisar fingir muito.

— Às vezes me pergunto o que você tem na cabeça — Caleb empurrou o amigo que tropeçou e quase caiu.

— Deixe de ser frouxo, Deepforest. Acho que você é o único homem em toda esta caravana que nunca levou uma mulher pra cama, e olha que o garoto dos Connors de treze anos também está aqui. 

— Você não quer gritar isso um pouquinho mais alto?

— Claro. Por que não?

Luther levou as mãos à boca, se preparando para gritar, mas um soco no estômago lhe roubou o ar.

— Não abuse da sorte, Cal, senão te dou outra surra — prometeu Luther apontando o indicador.

Dessa vez apenas Caleb riu, desdenhando do amigo mulherengo e dado a gracejos. O dia esticou-se preguiçosamente em longas horas de caminhada, até que o sol começou a falhar no horizonte, tornando o clima mais ameno.

A caravana era observada pela escarpa silenciosa da montanha, que se erguia majestosamente como um gigante intransponível. Uma águia, cujo ninho ficava nas reentrâncias da face rochosa, saltou para um voo solitário em busca de alguma presa desafortunada. Do outro lado, a luz dourada minguava em tons avermelhados, intensos e belos, filtrada pela copa das altas árvores.

Naquele ponto, a estrada era engolida pela floresta, forçando uma guinada abrupta para a direita. Uma hora de caminhada depois, agora margeados dos dois lados pela densa vegetação, chegaram à clareira comumente utilizada para o acampamento da segunda noite de viagem. Um espaço amplo entre as árvores, cujo silêncio, antes quebrado apenas pelo canto dos pássaros e pela vida animal, era agora preenchido pelo som das carroças e o ranger de suas rodas, que desenhavam trilhas no chão de terra, pelos cavalos que as puxavam relinchando; e principalmente, pelos ruidosos seres humanos, que trabalhavam de maneira desorganizada e barulhenta, com seus gritos amiúde, sempre a plenos pulmões.

Levou quase uma hora para que tudo estivesse pronto: barracas, comida e uma grande e crepitante fogueira ao redor da qual os viajantes sentaram-se tecendo animadamente uma miscelânea de assuntos, divididos entre aqueles que precisavam ser sussurrados, e aqueles que podiam ser gritados até a rouquidão. Conversas amenas sobre o tempo, que prometia chuva, e especulações sobre as negociações nas cidades baixas. Todos reunidos pelo mesmo sotaque do leste montanhoso, duro e arrastado, onde cada R era garimpado no fundo das gargantas.

Herbie se pôs a caminhar ao redor da fogueira. Seu povo entendeu o sinal e uma a uma as conversas foram morrendo, até que o silêncio fosse cortado apenas pelo crepitar das madeiras que alimentavam o fogo de chamas altas.

— Muito bem, senhoras e senhores — eram quase cinquenta pessoas, todas atentas ao comunicado —, obrigado pela atenção. Amanhã, por volta das duas horas da tarde, chegaremos à Estrela do Leste e eu gostaria de  fazer alguns lembretes — pigarreou limpando a garganta —, embora as leis de Stonehand sejam duras e justas, peço que sejamos cautelosos. Não se esqueçam de que a cidade não é nosso condado. Há por lá pessoas honestas, claro que sim, mas também há vigaristas, ladrões e aproveitadores. Tenham cuidado durante as negociações, é preferível que as façam sempre ao lado de um amigo. Não criem problemas desnecessários. Estamos todos entendidos?

Percebendo que provocara certo alarde, Herbie tratou logo de quebrar aquele clima.

— Ei, garoto — chamou o rapazote dos Connors que estava sentado num tronco perto de sua carroça —, meu violão está bem atrás de você. Traga-o para mim.

A simples menção ao instrumento musical serviu para que todos recuperassem os sorrisos fáceis.

— Obrigado. Muito bem, vamos começar com o quê?

Uma variedade de pedidos irrompeu. Uns gritavam por “Entre os braços da montanha”, uma bela canção que falava sobre Colinas Altas, enquanto outros, mais ousados, pediam “As maravilhas do bordel de ouro” ou mesmo “A senhorita arfante”.

Enquanto Herbie começou a tocar “Lenhador descuidado”, que contava a história hilária de um homem que perdia um dedo cada vez que saía para cortar lenha — até não lhe restar nenhum —, cervejas eram distribuídas, assim como a refeição. Um povo unido que comia, bebia e se divertia juntos. Herbie logo foi acompanhado por John, que tocava brilhantemente sua gaita, e por Larry Pequeno, que arranhava alguma coisa no alaúde. As pessoas cantavam e dançavam ao redor da fogueira. Caleb e Luther se divertiam em meio aos amigos. Comeram até se fartar. Os homens tinham caçado dois cervos e algumas lebres, poupando-lhes a ração de viagem que consistia em frutas e carne de sol. Banquetearam-se com a caça fresca e saborosa. As carnes espetadas sobre o fogo, pingando gordura, e o cheiro inebriante do tempero à base de sal, pimenta e mel eram uma festa para os sentidos.

Quando o cansaço acumulado da caminhada árdua e das danças começava a abraçá-los, iniciaram-se as histórias. Larry Pequeno fez questão de arrastar seu banco improvisado para o centro da roda, onde deu início às narrativas sobre o pirata que tinha atravessado o mar em busca de novas terras que não figuravam em nenhum mapa.

— Bah, chega dessa história, Larry. Todos sabem o que existe além do mar conhecido: água — protestou Saul —, apenas água salgada.

Apesar da intervenção, Larry continuou narrando vividamente as histórias de Smith Barba Púrpura, passando pela batalha da Costa de Sangue até a fuga inacreditável da Ilha dos Canibais. Quando terminou seus empolgantes relatos, repletos de batalhas navais e saque de tesouros lendários, foi a vez de Bailey tomar o centro da roda.

— Bailey — gritou uma moça —, conte-nos sobre os magos!

Ele não conseguiu esconder a insatisfação com o pedido. Tinha preparado algo diferente.

 Bailey passara alguns meses vivendo em Florência. Situada próxima à grande capital, era uma das mais bonitas cidades do reino, famosa pelo comércio de ervas, raízes, perfumes e algumas iguarias que não se encontravam em nenhum outro lugar do mundo. Assim como todas as grandes cidades de Stonehand, era guardada pelos soldados do rei, que por sua vez, tinham o apoio da guilda dos magos.

— Eu certamente queria contar outra história — mais pedidos de “Magos! Magos!” irromperam pela clareira –, mas pelo visto vocês não querem saber de outra coisa.

—Trata-se da inevitável curiosidade pelo desconhecido — afirmou Herbie. Um sorriso frouxo estampava sua face.

Bailey deu de ombros, como quem não tem opção, e começou a narrativa permitindo que as memórias o transportassem para longe, de volta à cidade de ruas movimentadas, onde o cheiro de pão fresco inundava as ruas pela manhã, e à tarde era substituído pela fragrância única da enorme mistura de ervas e perfumes comercializados em abundância por toda a cidade.

“Lembro-me muito bem daquela noite fria de outono” — as palavras de Bailey ecoaram pela noite, e o silêncio de todos os presentes se amontoava em ecos mudos e profundos, até mesmo a natureza, comumente ruidosa de vida noturna, pareceu se calar, aguçando os ouvidos. — “O vento uivava furiosamente do lado de fora do meu quarto, fazendo com que os galhos retorcidos da amoreira, que ficava à frente do hotel, arranhassem os vidros de minha janela como se desejassem entrar. Levantei da cama deixando sobre a penteadeira o livro que estava lendo e fui apagar as velas para dormir. Era mais de meia-noite e eu estava muito cansado, louco para me entregar ao sono. Foi quando ouvi os primeiros gritos.”

A atenção das pessoas tornou-se ainda mais intensa. As respirações seguiam semissuspensas, entrecortadas, como se os ínfimos sons do respirar pudessem atrapalhar a narrativa.

“Abri a janela e olhei para fora. Lá embaixo, na rua estreita e escura, dominada por uma penumbra quase viva, percebi que havia quatro homens cercados por apenas dois, um de cada lado da rua. A princípio, não consegui entender o motivo para que quatro homens grandes e fortes, armados com espadas e facas, estivessem acuados e tão visivelmente abalados por causa de homens que carregavam nada mais que bastões de madeira. Não tardei a descobrir o motivo. Um dos homens ergueu o bastão e eu vi, com estes olhos que um dia a terra há de tragar, um dos quatro voar em direção à parede e ficar preso ali, a vários pés do chão, sem nada o segurando. As pernas balançando inutilmente pelo simples mirar do objeto de madeira.”

“Ao mesmo tempo, um jato de fogo brilhante jorrou do cajado do segundo mago, iluminando a noite e produzindo sombras espectrais, fazendo queimar dois homens de uma só vez. Eles se transformaram em bolas flamejantes, correndo sem direção e emitindo gritos agonizantes que fizeram minha pele gelar até os ossos. Senti como se estivesse nu em plena grande nevasca do inverno das montanhas.”

Nos breves segundos que Bailey reservou para recuperar o fôlego, suspiros e murmúrios foram ouvidos pela clareira. Olhando ao redor, percebeu uma mulher com as mãos erguidas diante do rosto, alarmada. Um pai protegia os ouvidos do filho menor.

“Cada um dos meus sentidos estava voltado para aquela cena grotesca. Eu podia sentir o cheiro insuportável de carne humana queimada e da fumaça azeda que se desprendia dos corpos. Ouvia os gritos estridentes morrendo em gargantas dilaceradas pelo fogo. Senti o mundo girar ao meu redor. O estômago dava voltas, ameaçando devolver o que quer que eu tenha comido naquele dia. Os nós dos meus dedos estavam vermelhos, tamanha força empregada inconscientemente em segurar o batente da janela. Entretanto, havia algo mais, algo invisível, experimentado além dos sentidos primários. Uma espécie de energia sinistra que provocava calafrios. Como quando se escuta uma história de terror e os pelos da nuca se arrepiam, ou quando você está sozinho à noite e se sente observado; e isso, o melhor que posso descrever, não chega nem perto da essência do que senti naquela noite, mas simplesmente... simplesmente... não há palavras...”

Os olhos de Bailey perderam-se em algum ponto distante. Sua expressão de desalento tornava tudo ainda mais imersivo.

“O pior daquele teatro de horrores rapidamente se cumpriu diante dos meus olhos. Presenciei o outro homem ser erguido no ar, gritando por piedade, implorando por clemência. Ele subia cada vez mais alto, carregado pelo vento. Ultrapassou a altura do hotel que tinha dois andares. Um líquido descia por suas pernas e pingava no chão. Não há vergonha nisso, eu também teria me urinado completamente. Quando a altura era seguramente mortal, o mago baixou o cajado de uma só vez fazendo o homem despencar em velocidade vertiginosa. Ele chocou a cabeça contra o chão e não se mexeu mais. O sangue se espalhou ao redor do crânio amassado, lenta e caprichosamente, contornando as pedras do calçamento e preenchendo suas fissuras.”

Desta vez mais pessoas mostraram-se chocadas, até mesmo os mais durões. Gemidos de estarrecimento eram ouvidos pela clareira, sobrepondo-se ao crepitar das chamas da grande fogueira, mas nem mesmo seu calor afastava a friagem que subia pelas pernas e penetrava até os ossos. A aparência de Bailey tampouco ajudava a tranquilizá-los. O orador parecia em transe. O olhar era distante, como se atraído de corpo e alma para as próprias memórias.

“O homem que restava, aquele ainda suspenso e preso à parede, chorava e implorava por sua vida. Pedia perdão desesperadamente. Os magos se aproximaram dele, indiferentes a suas súplicas. Vestiam túnicas negras, amarradas na cintura por um cinto de corda grossa. Um capuz lhes cobria o rosto. Fizeram questão de falar alto o suficiente para que qualquer curioso que estivesse observando pudesse ouvir: vocês são fugitivos condenados à morte. Roubo e assassinato são crimes para os quais não há perdão. Que sirvam de exemplo para quem ousar desafiar a paz do rei. Outro jato de fogo irrompeu do cajado e aquele homem...”

— Acho que já chega — Herbie se levantou. Os braços erguidos clamando por desviar a atenção de todos do fim trágico daquela história.

— Amanhã ainda percorreremos um bom pedaço de chão. Creio que seja hora de nos recolhermos.

— É verdade que os magos abrem os mortos para ver como somos por dentro? — perguntou alguém em meio à multidão.

— É verdade, Bailey? — outras vozes somaram-se àquela.

— Eu não sei — confessou Bailey, que assim como todos, já tinha ouvido aqueles boatos.

— Muito bem pessoal, já chega, vão todos descansar — Herbie falou mais alto dessa vez, enérgico.

Lentamente as pessoas começaram a dispersar, com as caras amarradas e semblantes soturnos.

— E aí, o que você acha? — Luther perguntou para Caleb enquanto se dirigiam para a tenda.

— Sobre o que?

— Se eles realmente abrem os mortos.

— Não sei, e sinceramente, não tenho o menor interesse em descobrir. Esse papo sobre magos só serve pra deixar as pessoas cabreiras, nada mais.

— É que violar um corpo é algo grave — Luther parou de caminhar, olhava para o céu. — Não consigo imaginar descanso do outro lado do véu enquanto o corpo é violado por aqui.

— Você não passa é de um medroso – disse Caleb tentando sorrir.

— Eu, medroso? Isso é mesmo muito contundente vindo do meu saco de pancadas.

Caleb apenas deu de ombros.

— Vamos dormir, Luther. Chega do seu falatório por hoje.

Juntaram-se à Bailey e Saul, que já estavam deitados ao redor da carroça. Os colchões eram improvisados de folhas verdes e linhagem, cobertos por mantas de lã. Sobre eles erguia-se um toldo de lona, que se estendia da carroça até alguns metros à frente, erguida sobre ripas de madeira.

Caleb deitou em um ponto onde poderia observar o céu. O brilho distante das estrelas, que dividiam espaço com a copa das árvores e com as nuvens de chuva, traziam-lhe paz. Lembravam-lhe das muitas noites passadas ao redor de casa, deitado na grama junto ao velho Jacob, que lhe ensinara a ligar as estrelas, formando desenhos no céu noturno. Ele as chamava de constelações, palavra descoberta num velho livro, ofertado por um mercador viajante que muito tempo atrás passara pelas Colinas Altas.

O jovem adormeceu quase imediatamente, vencido pelo cansaço do árduo de dia de caminhada. A lembrança sobre o avô escorreu pelo rosto na forma de uma lágrima solitária.

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