Início / Fantasia / Alvorada do Tempo o despertar / Capítulo 4 - O dilema do príncipe
Capítulo 4 - O dilema do príncipe

CAPÍTULO IV

O DILEMA DO PRÍNCIPE

Jeremy acordou em meio aos luxuosos lençóis de seda que envolviam seu corpo e o de sua esposa, com a maciez que apenas os tecidos mais caros, produzidos pelas mãos mais hábeis, eram capazes de proporcionar. A claridade que entrava pelas janelas amplas delatava o alvorecer de um novo e belo dia.

A mão de Beatriz pesava-lhe sobre o peito. Ele se desvencilhou do abraço da esposa de maneira sutil, fazendo o possível para não acordá-la. Caminhou até a janela e se pôs a observar as ruas da capital, Tessália. Conhecida como a “joia maior do reino”, era o legado conquistado por seu avô e agora governado por seu pai, o rei Alexander Stonehand.

Jeremy era o único herdeiro, e a cada vez que olhava por aquela janela, enxergava o peso da responsabilidade de que algum dia seria ele a governar.

Quando ocupasse o trono, as vidas de cada uma daquelas pessoas lá embaixo, estariam sob a tutela de seus julgamentos e decisões. Vidas que lhe pertenceriam e pelas quais precisaria zelar.

E quando seu olhar tocava o horizonte distante, lembrava-se que Stonehand era ainda maior do que as ruas de pedra da capital. Sua vastidão era imensurável. Não havia em todo o mundo conhecido um reino de maiores proporções e grandiosidade, com suas cordilheiras montanhosas, florestas, pântanos e extensas planícies; vilas, vilarejos e grandes cidades suntuosas. As fronteiras de Stonehand estendiam-se das cidades portuárias no extremo sul, nas Terras Baixas, até o limite da fronteira com Runadir, a grande montanha dos anões, nas Terras Altas.

Era impossível para o príncipe não se atemorizar mediante o cálculo de tamanha imensidão. Quantos conflitos, crimes e disputas estariam ocorrendo naquele exato momento em lugares longínquos? Eram milhares de pessoas a serem protegidas e outras tantas a serem punidas. Pensar que cabia ao rei ministrar a justiça em cada canto de um território tão extenso causava-lhe uma sensação sufocante.

Jeremy também sabia que a grandeza do reino não se media apenas por tudo aquilo que lhe era tangível, que se podia tocar e contemplar em sua resplandecente grandeza. Stonehand era muito mais do que se podia ver com simples olhos mortais, era um símbolo — a resposta de um povo revolto que, unido, rompeu e destronou o sangrento Império que o precedeu, iniciando um período de paz jamais imaginado.

O príncipe correu mais uma vez os olhos pela cidade, buscando um pouco de ar puro ao inspirar profundamente os cheiros tão característicos da capital, os pensamentos acelerados já tão cedo. Mas as incertezas do que o futuro lhe reservava junto ao trono não eram os únicos pensamentos conflitantes a dormir e acordar sempre com ele. Seus longos minutos de introspecção tinham mais uma causa, essa outra era pulsante e cheia de vida. A mulher com a qual se deitava todos os dias.

Seu casamento fora uma concessão feita por seu pai a fim de manter o reino unido. Como se o contrato fosse uma emenda, uma costura, que com fios de ouro impedia que o reino rasgasse ao meio.

Três anos atrás, quando Alexander herdou o trono de seu pai, cada conde, duque e senhor de terras com alguma relevância e poder irrompeu pelas portas do castelo real, alegando haver favores devidos pelo rei morto, que mal esfriara em seu caixão. Foi com grande desgosto que Alexander descobriu que a maioria dos favores alegados eram mesmo devidos pela coroa, e que precisavam ser honrados ou não sobraria nada do reino.

Jeremy ainda se lembrava da reunião a portas fechadas entre seu pai e o Lorde Rikkart Sombradourada, conhecido como o Duque de Esmeraldas. Depois de horas trancados na sala do conselho, ele viu o duque sair pela porta com um sorriso triunfal. Minutos depois, o jovem descobriu que seu pai havia barganhado o apoio incondicional do duque com um casamento, que em alguns anos transformaria Beatriz, sua filha, em rainha. O sorriso tão largo e cheio de dentes de Lorde Sombradourada estava finalmente explicado.

Ele sabia que o lorde tinha sido um dos maiores apoiadores da causa de seu avô na derrubada do Império. Muitos diziam que as esmeraldas floresciam em suas terras como capim após períodos de chuva. Foi a riqueza do duque que ajudou a custear a manutenção dos exércitos Stonehand durante a revolução. Lorde Rikkart não apenas custeou as operações militares, como também brandiu sua espada do alto de seu enorme corcel da antiga raça Berbere, comandando suas tropas em batalhas memoráveis. Seu estandarte, o Sol-Verde, carregado lado a lado com a Mão de Pedra do rei.

Afastando-se da janela e das lembranças, Jeremy foi até seu guarda-roupa e escolheu um traje leve, de algodão, algo que lhe permitisse respirar em meio ao calor que o dia prometia descarregar sobre a cidade.

Enquanto calçava as botas, fitou novamente a esposa. Beatriz não era apenas bonita. Além das feições bem delineadas, que lhe faziam parecer muito mais mulher do que a garota que realmente era aos dezenove anos, havia também o corpo escultural. Os seios fartos, descobertos, apontavam enrijecidos para o teto. A maciez exata para enlouquecer os homens. As pernas, de coxas grossas, era resultado da adolescência vivida nos campos, correndo solta pela imensidão das terras do pai. Os cabelos eram de um dourado tão intenso e vívido, que fariam sangrar os dedos de qualquer ourives que tentasse igualar tal tom em suas peças. Os cachos caíam de maneira majestosa sobre a cama, misturando-se à seda dos lençóis. Ela definitivamente fora criada para todo aquele luxo. Mesclava-se ao mosaico da realeza como poucos.

A visão da esposa seminua fez Jeremy estremecer. Ele não era capaz de negar o desejo. Beatriz sabia como excitá-lo. Sabia como agradá-lo na cama como nenhuma prostituta treinada jamais fora capaz de fazer. Vez ou outra, perguntava-se como uma moça tão jovem e que se casara virgem, poderia saber tanto sobre os segredos do sexo.

Ainda se lembrava da primeira noite em que ficaram juntos e da enorme mancha de sangue que se desenhou sobre os lençóis, revelando a virgindade de Beatriz, antecipada a plenos pulmões pelo Duque de Esmeraldas.

— Vai ficar parado aí, apenas olhando, senhor meu marido? — a voz doce de Beatriz ecoou pelo quarto, pegando Jeremy desprevenido, fitando-lhe. Podia jurar que ela dormia profundamente. — Por que não volta para cama e se junta a mim?

O único pensamento a perambular pela mente de Jeremy era sobre como aquela mulher podia acordar, já estampando no rosto, olhares e sorrisos de tamanha malícia e luxúria.

— Estou de saída. Tio William me pediu para resolver algumas coisas na cidade em seu nome às primeiras horas do dia. Creio que já estou atrasado.

— Posso saber que coisas são essas? — inquiriu a princesa, com um olhar penetrante e aquele jeito de quem sempre sabia mais do que todos à sua volta.

— Não é nada que mereça o seu tempo, Beatriz. Volte a dormir.

— Tem certeza de que é isso que você quer? Que eu apenas... durma?

Ela afastou o que restava dos lençóis, desnudando-se por completo. Provocante. Mesmo após quase três anos casado, Jeremy ainda se surpreendia com aquela visão.

O príncipe pensava em como seria tudo muito mais fácil se ele simplesmente aprendesse a amar Beatriz, mas o coração tinha essa mania estúpida de guiar seu dono pelos caminhos ermos dos amores proibidos. Embora seu corpo ameaçasse lhe trair, implorando por um retorno para a cama, seu desejo era de sair daquela casa, cruzar a cidade e se encontrar com a mulher que ele visualizava em sua mente, a cada vez que ia para cama com Beatriz. Aquela cujo nome ele sussurrava, tentando afastar a solidão do casamento arranjado. Melinda...

— Faça o que quiser, Beatriz. Eu preciso mesmo sair.

O príncipe deixou o quarto e foi até o cômodo que havia do outro lado do corredor. No banheiro amplo, lavou o rosto e encarou a si mesmo diante do espelho. Os cabelos estavam grandes, e assim como a barba, precisavam ser aparados.

Jeremy era dono de uma beleza singular. Herdara os traços fortes do pai. O queixo era quadrado e o rosto anguloso, com um maxilar que expressava a dureza de seu nome de família. Os olhos castanho-claros transmitiam paz e confiança. Os cabelos eram de um negro tão intenso que brilhavam refletindo a luz do dia. Possuía um corpo rígido e definido, resultado do treinamento que comumente realizava junto à guarda do rei.

Muitos diziam que Jeremy era um verdadeiro fenômeno da esgrima, dono de um talento nato, que misturava perícia e instinto. Mas para cada elogio havia uma dezena de más-línguas, prontas a destilar algum veneno. Comentava-se pelos cantos, no universo da corte, ser um verdadeiro desperdício talento como aquele nas mãos de um homem que tinha tantos outros para lutar por ele. E que o rapaz, provavelmente, viveria e morreria sem ter sangue de verdade na lâmina de sua espada.

O príncipe desceu a escadaria em espiral que levava à grande sala de convivência no segundo andar do castelo real. Sua intenção, ao sair tão cedo, era de encontrar aquele lugar vazio para não ter que dar satisfações sobre sua ausência. Felizmente ele conhecia os hábitos dos visitantes e habitantes do castelo.

“A nobreza nunca acorda cedo, mesmo quando há um exército inimigo em seus portões”, lembrava-se da ilustre frase comumente repetida por Harold, o cozinheiro chefe do castelo. Um bom amigo desde a infância, quando o grandalhão que tinha cheiro de comida boa, traficava alguma sobremesa para seu quarto, quando estava de castigo e não podia sair.

No andar inferior, alguns criados caminhavam de um lado para o outro levando o que era preciso para a confecção do suntuoso café da manhã do palácio, evento do qual Jeremy sempre se esforçava para fugir.

Aqueles que se sentavam à mesa do rei para tratar de negócios eram toleráveis. Em sua maioria eram francos e diretos, mas os convidados da nobreza, que flutuavam inutilmente em torno do rei, trocando a atenção da coroa por elogios vazios e bajulação desmedida enervavam Jeremy, que se ausentava sempre de maneira conveniente, não apenas do café da manhã, mas de todo e qualquer evento social do qual ele conseguia se esgueirar, deixando que Beatriz o representasse e falasse por ele, tão bem quanto fora treinada para fazer desde pequena.

Passando pela cozinha, foi saudado por alguns e ignorado por outros. Saiu pela porta que dava para o pátio dos fundos, onde a movimentação era menor. Naquela área ficavam apenas um depósito de grãos e a armaria.

Jeremy contornou o castelo e caminhou até a entrada, onde a ponte levadiça já estava baixada e vigiada pela costumeira guarda de seis soldados. Em cima das ameias postavam-se outros, armados com bestas e arcos. Além destes, outros homens caminhavam sobre a gigantesca muralha que encimava o fosso profundo ao redor de todo o castelo.

— Príncipe Jeremy, bom dia — um dos guardas cumprimentou, fazendo reverência. Os outros o acompanharam.

— Bom dia – respondeu o príncipe antes de desaparecer rua abaixo.

Quanto maior a proximidade com o castelo real, mais fácil era afirmar que Tessália era uma cidade próspera. As ruas por ali eram calçadas com pedras regulares bem assentadas, e sob elas havia um sistema de esgoto bem elaborado e funcional. As casas eram pequenos palacetes. O comércio exibia caríssimas preciosidades e as patrulhas do exército real eram constantes, inibindo a ação de bandidos e a perambulação de pedintes, mantendo a tão aclamada paz na área chamada Crista do Rei.

Entretanto, quanto mais o príncipe caminhava para longe dos domínios da nobreza, mais a cidade se transformava ao seu redor. As ruas limpas e arejadas, logo substituídas por vielas sujas, com calçadas tomadas por vendedores ambulantes que ajudavam a compor a sinfonia barulhenta e incessante do comércio da cidade. Este, mais parecia uma única entidade viva e vibrante, um cardume de seres humanos, mesmo àquela hora da manhã.

As casas e prédios, que na Crista do Rei eram em sua totalidade enormes e imponentes construções de pedras e tijolos, davam lugar a casebres de madeira — alguns com fundamentos sólidos, enquanto outros pareciam apenas aguardar a primeira chuva de ventos para se renderem e ir ao chão.

Na época de estiagem, era comum o aumento no índice de incêndios devido à proximidade entre as casas de madeira, e ao material pobre com os quais eram construídas. Bastava uma simples vela e um morador descuidado. Em recorrência a estes eventos desafortunados, era imediato o aumento da fila de requerentes na Casa das Petições. As ações da coroa normalmente se resumiam à doação de algumas moedas para ajudar na reconstrução e o desejo de que o Criador estivesse olhando por eles.

A joia do reino. Caminhando tão longe da Crista do Rei era difícil para o príncipe encontrar justificativas para aquele nome.

Jeremy chegou à Baixada dos Artesãos, bairro que justificava seu nome com as diversas lojas de móveis e de esculturas que compunham seu mosaico.

Ele se dirigiu até um estabelecimento chamado Torno de Aurvandir. Entrou sem bater, mesmo observando a placa que dizia: fechada. Um sinete soou quando a porta abriu e imediatamente o jovem ouviu a voz feminina gritar dos fundos da loja:

— Ainda estamos fechados.

— Não me importo — replicou Jeremy —, só estou interessado na mulher maravilhosa que é dona dessa espelunca.

— Veja bem como fala, seu imbecil — esbravejou Melinda, surgindo de trás da cortina que separava o hall de entrada da loja e os fundos da casa.

Aquela era a visão que Jeremy ansiava por ver. Melinda usava um vestido simples, de cores nada chamativas, diferente de tudo o que havia na corte, onde predominavam os tons vivos e gritantes daqueles que se pavoneavam tentando chamar mais atenção. As maneiras minimalistas da moça eram para o príncipe um agradável descanso aos olhos.

Seus ondulados cabelos cor de mel, outrora presos em uma rede, foram libertos pelas mãos fortes de Jeremy, que se lançou em um abraço entusiasmado, de aperto desmedido. O cheiro sempre reconfortante de flores silvestres e o calor único daquele abraço eram tudo o que ele precisava naquela manhã.

Segurou o rosto de Melinda entre seus dedos, incapaz de desviar os olhos daquele cativante olhar de safiras.

A moça era indiscutivelmente bela, mas o que Jeremy enxergava ia muito além do rosto bem desenhado e das curvas instigantes. O príncipe era enfeitiçado por sua alma livre, por sua coragem e comprometimento consigo mesma. Ele não podia deixar de admirar uma mulher que sobrevivia sozinha em uma cidade como aquela.

Em sua inexplicável complexidade, Melinda conseguia exalar ares de menina, mesmo vestindo a pele de uma mulher forte e decidida, que não se permitia ser trapaceada. Quando encurralada, falava grosso ao invés de recuar. Com a mesma boca de tantos palavrões, era capaz de sussurrar as mais doces juras de amor. As mãos, calejadas por fazer pedra e madeira se curvarem ao seu talento de artesã, eram igualmente hábeis em levar Jeremy à loucura.

Não mais conseguindo se segurar, o príncipe a beijou. A ansiedade esvaía-se aos poucos, transformando-se em desejo. Os músculos relaxavam enquanto ele sentia o hálito doce de Melinda misturar-se ao seu. Ela arquejava, soltando tímidos gemidos de prazer, que o excitavam ainda mais, até que de repente ela o rechaçou. O empurrão quase o derrubou. O tapa na face veio como um raio e deixou Jeremy desconcertado.

— Não toque em mim! — esbravejou ela, apontando o dedo de maneira acusadora. Onde antes havia um olhar apaixonado, agora havia apenas ira.

— Meu amor, o que houve? — quis saber ele, confuso e a massagear a face dolorida.

— Você por acaso acha que sou estúpida?

— Eu realmente não sei do que você está falando.

— Eu sei o que você fez!

A acusação da moça lhe proporcionou um lampejo de compreensão. Há alguns dias, ele pagou a um dos soldados do castelo para se passar por um nobre e comprar uma grande quantidade das esculturas de Melinda. Ele sabia que a loja não ia bem, e não importava o que fizesse ou quantas vezes oferecesse, durante os três anos em que estiveram juntos ela jamais aceitou uma única lágrima de cobre sequer vinda do príncipe. Seus presentes caros eram sempre rejeitados, enquanto as flores que trazia eram cuidadas como se fossem as coisas mais preciosas do mundo.

— Não sei do que você está falando — mas era tarde para negar, a expressão de compreensão que surgiu em seu rosto já o havia traído.

— Como pôde fazer isso? Pagar alguém para vir aqui e comprar todas aquelas peças — ela pegou cinco lágrimas de prata de uma pequena bolsa de tecido dentro do decote e as arremessou contra o príncipe —, você vai levar essa prata para o lugar de onde trouxe.

— Melinda, me desculpe, mas...

— Não existe um mas. Cale essa boca e desapareça daqui!

— Melinda, espere. Vamos conversar – ele se aproximou apenas um passo, certo de que se avançasse mais, poderia ser agredido novamente —, acontece que você não me deixou opção. Eu sei que as coisas não vão bem, e não só para você, o comércio de toda a cidade anda em declínio. Eu só queria ajudar.

— E Vossa Alteza fará o mesmo por todos os comerciantes da região? Comprará na mão de todos, salvando os seus negócios? — perguntou, carregada de escárnio.

A única resposta cabível era o silêncio.

— É como imaginei – Melinda respirou fundo, com um olhar de plena decepção —, vá embora, Jeremy.

— Por favor, não me peça para ir. Não me peça para ficar longe de você por causa de algo tão pequeno.

— Pequeno? Isso foi uma enorme traição. Um insulto. Você agiu pelas minhas costas, mas agora já não importa...

— Melinda, o que você quer dizer?

— Não posso mais seguir adiante com isso — ela fez um gesto que englobava os dois.

— Melinda, por favor, não diga mais nada — ele deu mais um passo tentando encurtar a distância entre eles, mas a moça espelhou seus movimentos, retrocedendo.

— O seu cheiro, Jeremy, é o cheiro dela. Você exala o perfume daquela mulher. Eu achei que seria capaz de lidar com isso, mas não sou tão forte assim, me desculpe — ela lutava para conter as lágrimas.

— Eu não a amo. Não sinto nada por ela. Você sabe disso.

— Ainda assim, ela é a sua esposa. Ela é a mulher que deita todos os dias ao seu lado, enquanto eu divido minha cama apenas com a solidão.

— Melinda, você sabe que meu casamento...

— Sim, eu sei! — ela levou as mãos à cintura, uma breve pausa em busca de fôlego.    

— Você não precisa repetir que o seu casamento foi arranjado. Que você não teve opção e que foi arrastado para o altar, que não a ama, que o bem de todo o Reino estava em jogo... Ainda assim, é com ela que você vai para cama todas as noites, ou vai negar que trepa com sua esposa? Toda Tessália diz o quanto ela é linda, isso deve facilitar as coisas. Deve facilitar para que você cumpra com suas obrigações de marido.

— Melinda, por favor...

— Jeremy, eu sou a única culpada aqui. Eu devia ter me distanciado quando descobri quem você era de verdade. A idiota aqui se apaixonou por um mercador, ficou cega de amores como uma adolescente, para depois descobrir que ele era o maldito príncipe herdeiro. Eu devia ter colocado um ponto final em tudo quando percebi que se tratava de uma situação impossível, de um amor impossível, e não o fiz. Pelo Criador, onde eu estava com a cabeça quando deixei você me convencer a ficar, mesmo sabendo que se casaria. Quando penso em tudo que meu pai me ensinou, quando penso na pessoa que ele desejava que eu fosse, para então eu me permitir chafurdar da lama dessa forma com um homem casado. Eu me sinto enojada, Jeremy, enojada de mim mesma. Você consegue entender isso? Não foram dias, ou meses, são três anos vivenciando esta situação miserável.

— Melinda...

— Eu sou tão... tão estúpida. A culpa é toda minha. Ela já não podia conter as lágrimas.

— Vá embora, por favor, e não volte. Eu simplesmente já não suporto mais isso.

Jeremy não podia sequer cogitar sua existência longe daquela mulher. Sua vida se resumia a uma série de obrigações pertencentes a um futuro já traçado, no qual nada fora concebido por ele. Melinda era o fio solto. A luz que o fazia prosseguir. Não importava o quanto ele estivesse mergulhado em uma vida que não desejava ter, pois havia nela o seu porto seguro. A ilha em meio a um oceano tempestuoso, na qual ele sempre podia se refugiar. Entretanto, reconhecia a verdade nas palavras de Melinda. Considerava-se um hipócrita por viver aquela vida e por submetê-la a tudo aquilo. Certa vez, em uma crise de culpa, dissera para a moça que ela era livre para conhecer e ficar com outra pessoa, desde que eles continuassem juntos, desde que ela prometesse não amar este novo alguém. Mal teve tempo de pensar no que dissera antes de receber um tapa violento no rosto, fazendo seus lábios sangrar. A lembrança daquele dia ainda ardia em sua boca.

Ao invés de sair, Jeremy percorreu o restante da distância entre eles e a envolveu em seus braços. Para sua felicidade, Melinda retribuiu o abraço, apertando-o com tanta força que o surpreendeu, mas ele não estava preparado para o que ouviria a seguir.

— Só há uma maneira de ficarmos juntos — ela se afastou um pouco a fim de fitar os olhos castanhos do príncipe, mas hesitou. Sabia estar prestes a pronunciar o inconcebível. Pelo menos, com isso o afastarei de vez e poderei seguir com minha vida, pensou.

Ela se lembrou que já tinha superado, com a cabeça erguida, adversidades maiores — que vão desde a perda dos pais à incerteza de ter algo para comer no dia seguinte. Não morreria por se afastar de Jeremy, não importando quanto o amasse. Sim, ela o amava de forma profunda e arrebatadora. O amava a ponto de abolir os próprios princípios, tão preciosos para ela — sem dúvidas a única parte verdadeiramente valiosa da herança deixada pelo pai.

— Diga qual é essa maneira, por favor — implorou o príncipe.

— Vamos embora. Vamos fugir para longe daqui. Não só para fora da capital, mas para longe de Stonehand.

— Melinda, você está falando de...

— Estou falando de entrarmos em um navio e desaparecermos. Assim seremos somente você e eu. Podemos ir para Gaia ou para os Três Ducados, qualquer lugar onde não exista a influência do seu pai, ou as suas obrigações para com o reino.

Jeremy precisou respirar profundamente. O que Melinda estava propondo era grande, descomunal. Ele ficou em choque com a constatação de que aquele era um ultimato e que se rejeitasse, a perderia para sempre.

Impossível. Essa foi a primeira palavra a se formar em sua mente. Eu tenho responsabilidades para com o meu pai, para com milhares de pessoas. Não posso simplesmente abandonar tudo e partir.

Melinda, no entanto, não se calou mediante o silêncio do príncipe.

— Você pode nos imaginar vivendo juntos, como marido e mulher? Fazendo amor quando bem entendêssemos. Criando os filhos que sonhamos ter. Poderíamos andar pelas ruas de mãos dadas, sem preocupações. Visualize isso, Jeremy. Eu não preciso de nada além do seu amor e destas mãos — mostrou as palmas calejadas, depois as uniu às mãos fortes do príncipe —, com as quais podemos trabalhar e nos sustentarmos, sem dever explicações e obrigações a mais ninguém. Eu amo você, Jeremy, e não preciso de mais nada para ser feliz, mas e você, príncipe herdeiro de Stonehand, pode dizer o mesmo?

Mais uma vez o silêncio, carregado de dúvida. Havia uma verdadeira batalha na mente do príncipe. Obrigação e amor digladiavam entre si. Ele não dava a mínima para o conforto e para as riquezas que tinha, pelo contrário, sentia-se sufocado diante da nobreza que o cortejava e o tratava como se fosse ele o próprio Arcanjo, mas se preocupava com o pai e o tio.

Ele mal pôde acreditar quando ouviu aquelas palavras saindo de sua própria boca.

— Você está certa. É a única maneira de sermos felizes juntos. Iremos para o mais longe que pudermos desta cidade. Quero começar uma família com você, Melinda. Uma família de verdade.

Ela o abraçou novamente, não conseguia conter as lágrimas. Estava surpresa por Jeremy decidir abandonar tudo, quando o que ela tinha para oferecer em troca era apenas a simplicidade de seu amor.

Continue lendo no Buenovela
Digitalize o código para baixar o App

Capítulos relacionados

Último capítulo

Digitalize o código para ler no App