PRÓLOGOEle já havia brincado antes, gotejando no negrume do universo bilhões de pontos prateados, derramando em sua infinita tela de pintura a explosão de cores das galáxias e nebulosas. Tudo era perfeito, mas o problema com a perfeição era que, invariavelmente, ela se atrelava ao tédio, companheiro fiel daqueles que não tem arestas a aparar e cujas criações são elementos estáticos, de começo e fim determinados. Então ele decidiu criar algo jamais experimentado.Durante as primeiras eras, chamadas por ele de Alvorada do Tempo, o deus Criador findou sua grandiosa obra-prima, um vasto planeta azul, a joia mais bela do cosmo.Satisfeito com a esplêndida criação, decidiu dar vida a seres igualmente maravilhosos para habitá-lo, semeando na terra fértil parte de sua aura majestosa. Assim viu germinar criaturas fantásticas, divindades que não conheciam a morte, deuses menores que governaram o planeta por séculos, cultuando o Criador.Com o passar do tempo, cegos por seus imensos poderes e c
CAPÍTULO IIO CONTRATOContinente dos Três DucadosO homem cruzava as ruas de Dama de Pedra como se levado pelo vento. Ele podia sentir no ar o cheiro úmido que antecedia as últimas chuvas de verão. A noite cobria a velha cidade com um manto espesso. A lua quase não brilhava no céu, encoberta pelas pesadas nuvens de tempestade, resumindo-se a uma auréola opaca por trás do véu de sombras.Dama de Pedra era a maior cidade do ducado de Costaverde, governado pelo duque Olho de Águia Willow. A cidade era enorme, cheia de bairros onde era fácil se perder devido às casas altas e vielas estreitas, que se aglomeravam formando labirintos onde o céu se resumia a uma estreita faixa escura, limitada pelos telhados de madeira ou telhas arredondadas de argila negra.O homem que desafiava a noite e seus perigos era nada mais que um vulto, misturando-se às sombras frias das casas. Seus passos não produziam som. Sua silhueta era engolida pela escuridão. Seu cheiro era nulo. Ele praticamente não existia
CAPÍTULO IIIO FOGO DE DEMOONV’UURDesde a infância, Caleb tinha as noites de sono povoadas por terríveis pesadelos. Era comum acordar sentindo no rosto as mãos da avó, que tentava acalmá-lo abafando seus gritos em um abraço acolhedor.Com o tempo, à medida que crescia e deixava a infância para trás, os pesadelos, dos quais nunca era capaz de lembrar, foram deixando de figurar em sua vida, restando apenas as lembranças da avó, sempre alerta, dedicada e a postos para cuidar de seus temores, mas nada pelo que já havia passado poderia prepará-lo para o que estava prestes a vivenciar.Caleb abriu os olhos descobrindo-se em uma caverna escura e úmida. Sombras vivas dançavam na parede ao fundo do corredor, embaladas por chamas bruxuleantes escondidas na curva à direita, o único caminho a seguir.Ele caminhou com passos lentos e temerosos, absurdamente ciente de estar sonhando, o que era espantoso, tendo em vista a palpável realidade. O chão frio sob os pés descalços, o cheiro das pedras e d
CAPÍTULO IVO DILEMA DO PRÍNCIPEJeremy acordou em meio aos luxuosos lençóis de seda que envolviam seu corpo e o de sua esposa, com a maciez que apenas os tecidos mais caros, produzidos pelas mãos mais hábeis, eram capazes de proporcionar. A claridade que entrava pelas janelas amplas delatava o alvorecer de um novo e belo dia.A mão de Beatriz pesava-lhe sobre o peito. Ele se desvencilhou do abraço da esposa de maneira sutil, fazendo o possível para não acordá-la. Caminhou até a janela e se pôs a observar as ruas da capital, Tessália. Conhecida como a “joia maior do reino”, era o legado conquistado por seu avô e agora governado por seu pai, o rei Alexander Stonehand.Jeremy era o único herdeiro, e a cada vez que olhava por aquela janela, enxergava o peso da responsabilidade de que algum dia seria ele a governar.Quando ocupasse o trono, as vidas de cada uma daquelas pessoas lá embaixo, estariam sob a tutela de seus julgamentos e decisões. Vidas que lhe pertenceriam e pelas quais preci
CAPÍTULO VFRENTE A FRENTEVovô, por favor — Caleb tinha nove anos, estava sentado entre os avós no banco suspenso por correntes que ficava na varanda de casa. Observava maravilhado o espetáculo do pôr do sol que se espremia entre as montanhas, cujos picos cobertos de gelo, aos olhos infantis, pareciam pães polvilhados de açúcar.Ele encarava o avô com pequeninos olhos suplicantes.— Por favor, fale mais sobre ele.Enquanto crescia, tornava-se mais curioso em relação aos pais que não chegara a conhecer. A mãe tinha morrido no parto, em alguma cidade distante. O pai, que o levara para ser criado pelos avós, morreu em circunstâncias das quais Jacob e Rosie jamais falavam.— Você me lembra muito o seu pai – disse Rosie, com seu olhar sempre bondoso.— Rosie! — exclamou Jacob em tom de repreensão.— O garoto merece, não seja tão rabugento.Voltou para o neto os gentis e inesquecíveis olhos azuis.— Seu pai foi uma criança muito esperta e inteligente, assim como você. Quando tinha sua idad
CAPÍTULO VIA CAÇADAFloresta da PassagemTerras Baixas de StonehandAprimeira flecha sibilou no ar para fincar-se errante no tronco de uma árvore. O cervo, assustado com o barulho, ergueu a cabeça antes de saltitar, desaparecendo no mato alto.— Vossa Graça, o senhor é mesmo péssimo na arquearia — constatou Maurice Chamarrubra, o jovem filho do Duque da Passagem, ao passar correndo pelo conde Barteaux Highmoutain com seu próprio arco em punho.— Cada homem é dotado de diferentes talentos, meu querido primo. A grande comitiva do conde, formada por alguns soldados vigilantes e muitos membros da nobreza, avançava pela floresta. Além de arcos e aljavas, a maioria também portava odres de vinho e cerveja para completar a diversão. As famosas caçadas organizadas pela família Highmoutain eram tradição secular, e nem mesmo o conflito separatista que eclodia no norte do continente os impediu de promover o esperado evento, que premiava o campeão com troféu, ouro e novas canções criadas pelos m
CAPÍTULO VIISOMBRAS DO PASSADOAs crianças nadavam sob a cachoeira de águas cristalinas. A menina de cabelos castanhos tinha nove anos e não desgrudava do irmão, um garoto robusto e alto para seus onze anos.Saíram da água apenas porque já não podiam ignorar a fome. Perderam a noção do tempo em meio às brincadeiras. A mãe tinha sido clara: “Voltem antes do almoço”, como dizia sempre.— Venha, precisamos voltar — o garoto estendeu uma das mãos e a ajudou a sair da água. Com a outra, colocou uma flor sobre a orelha da irmã, uma orquídea azul que crescera solitária à beira da água.— Obrigada — admirava-se constantemente com o carinho de Damian.***Os assassinos emergiram na borda da floresta de Costaverde. Do alto da colina, tinham plena visão do interior da propriedade de Dom Omar. A chuva ainda caía incessante quando observavam a pouca movimentação dos guardas nas ameias. Preguiçosos por causa do aguaceiro, estes preocupavam-se muito mais em se manter secos e aquecidos do que em vig
CAPÍTULO VIIIO BRADO DOS SEPARATISTASJeremy subia as ladeiras em direção ao castelo ainda entorpecido pelos acontecimentos na loja de Melinda. A decisão que mudaria sua vida, tomada mediante a necessidade abrasadora de viver ao lado da mulher que amava.A sensação do sexo exaltado ainda era latente na pele. Os corpos misturados, fundidos sobre o balcão da loja. Derrubando esculturas, livros de contas e tudo mais que estivesse ao alcance de mãos e pernas. Movimentos frenéticos e desgovernados, urgência característica das profundas paixões proibidas.Quando avistou o gigante de pedra que era o castelo real, protegido pela enorme e sempre vigilante muralha, Jeremy sentiu a confiança minar. As dúvidas abateram-se sobre ele, eclipsando a projeção da vida feliz com Melinda. O calor provocado pelo sexo extinguia-se. Quanto mais próximo da muralha, mais se sentia como um traidor. O castelo o encarava de maneira acusadora. Cada janela parecia o olhar de um rosto reprovador. Cada porta, uma b