CAPÍTULO XVIISANGUE E AMBIÇÃOFortaleza da PassagemTerras Baixas do ImpérioAs mãos da duquesa Lila Chamarrubra tremiam ligeiramente, fazendo balançar a bebida na taça de cristal. O estresse daqueles dias era quase insuportável. Ela sentia coisas caminhando sob a pele e arranhava os braços compulsivamente. A bebida era um dos poucos alívios. Quando o calor do vinho começou a falhar, partiu para os destilados, que causavam um efeito mais imediato e prolongado.Lila observava o marido, Matthew, parado junto à janela em longo silêncio, como se esperando que uma ave portando boas notícias fosse pousar a qualquer momento. Ela acreditava que o velho estava finalmente ficando senil, como se o acúmulo de tantas amarguras finalmente tivessem vencido a sanidade.Ela não negava que a iminente execução de seu único filho homem, Maurice, também a convidava à loucura. Por sorte, as flores do mal, os passaportes para a insanidade, eram devidamente afogados em mares de rum e uísque, que ela sorvia
CAPÍTULO XVIIIBASTA FECHAR OS OLHOSEstalagem Unicórnio de Pedra,proximidades da capital.No segundo dia de viagem, Caleb e Luther maravilharam-se ao cruzar a ponte sobre o gigantesco Forja de Prata, o maior rio do reino, que cruzava quase toda a extensão do território Stonehand e cujos afluentes abasteciam um número sem fim de cidades e vilarejos. A grandiosidade do rio caudaloso era impressionante para olhares desavisados que o contemplavam pela primeira vez, com suas águas límpidas que deixavam ver um fundo de pedras polidas e uma abundância incomum de peixes.Ao fim do quarto dia seguindo pela movimentada estrada que levava à capital, quando a noite já tingia o céu de um negro salpicado de estrelas, eles chegaram à estalagem Unicórnio de Pedra. O grande número de carroças e cavalos por ali indicava que o lugar estava cheio.Caleb e Luther seguiram Vikram para dentro da imponente estrutura de dois andares construída em pedra. Quase todas as mesas estavam ocupadas, mas conseguiram
CAPÍTULO XIXALTO-MARKel’Enner aguardava por Maia, já impaciente com o atraso. O dia mal havia nascido e as ruas de Pontamar já estavam movimentadas, pescadores caminhavam em direção ao cais, redes nos ombros e arpões nas mãos. Os comerciantes principiavam a abrir suas portas.— Estou aqui — ouviu a voz às suas costas.— Eu sei, eu vi você.— Não, você está blefando, tenho certeza de que não me viu. Adoro esse joguinho sabia? Acho esconde-esconde muito sexy.— Não só percebi sua aproximação, como a do homem que está lhe seguindo.— Como é?— Não olhe agora. Camisa verde rasgada no ombro direito, rede de pesca debaixo do braço. Com certeza é um espião, já que dificilmente perceberíamos sua presença se fosse um assassino da guilda.— Como você...— Eu também fui seguido. Parece que Gladius quer se certificar de que embarcaremos naquele navio.— Desgraçado.— Acho que não preciso lembrá-la de que a culpa é sua — encarou Maia de frente, mas apesar da dureza em suas palavras, suas feições
CAPÍTULO XXHABITANDO AS SOMBRASLúcifer lembrava-se daquela caverna. Rememorava na própria carne a dor de caminhar entre os corpos mutilados de seus leais companheiros. O sangue media-se por poças rasas, onde penas angelicais tinham sua alvura conspurcada, boiando no líquido escarlate.Ele correu pelo interior da caverna com sua espada em mãos. Vingadora Dourada emitia brilho próprio, fruto do ouro celestial, iluminando seu caminho. Estrela da Manhã seguia possuído pela ira e pelo desejo flamejante de vingar seus irmãos. Muitos dos mortos ainda agarravam-se às espadas, como se determinados a manter-se em eterna vigília.Nas profundas entranhas do lugar, sentado sobre uma pilha de corpos, mordiscando uma parte irreconhecível do que um dia fora uma criatura celeste, estava o terror que derrotara a todos. Um ser enorme, de cascos, chifres retorcidos e asas de morcego. Um forte cheiro de enxofre misturava-se ao odor fétido dos cadáveres que atraíam moscas.***Lúcifer abriu os olhos. Aco
CAPÍTULO XXIO QUE A NOITE TRAZEra pouco mais de meio-dia. O sol, que escolhia cuidadosamente os dias outonais pros quais daria o ar de sua graça, tinha resolvido, como um sinal da boa vontade de Odin, acompanhar Baldur e seus homens, que seguiam a meio galope, poupando os cavalos. Embora acostumados a longas jornadas, os animais teriam muitas milhas pela frente nos próximos dias, seguindo de vila em vila para convocar os chefes dos Clãs Invernais das Montanhas.O outono chegara a Asgard como uma força viva, implacável. Anunciando a plenos pulmões que o inverno que o seguia nos calcanhares prometia ser terrível. Seus tributos seriam pagos com frio, fome e morte, como poucas vezes ao longo da história.Baldur era acompanhado por doze guerreiros, seus melhores homens, e entre eles, Aegir, um amigo de infância ao qual confiaria a própria vida.— Enviou mesmo Edda para a toca dos leões? Que excelente marido você é, meu amigo — Aegir cavalgava imponente ao lado de Baldur.— Edda tornou-se
CAPÍTULO XXIITRANÇANDO OS FIOSAluxuosa liteira usada pela princesa Beatriz Sombradourada viajava sem sacolejos. Os homens que a carregavam, fortes e disciplinados, davam seu suor em troca de proporcionar uma viagem agradável, mas com as cortinas fechadas, o calor rodopiava dentro da cabine sem ter por onde escapar, preço pago pela vontade da princesa em passar incólume, como uma nobre qualquer a pagar pelo caro serviço de transporte.A guarda pessoal de Beatriz seguia a certa distância, disfarçada em meio à multidão. Era formada por dois homens da coroa e dois guardas que a acompanhavam desde a infância, ainda no ducado de seu pai.Seu destino era a Baixada dos Artesãos. Aquele encontro já não podia mais ser adiado.Após uma leve batida na lateral da cabine, os homens pararam e baixaram a liteira. Beatriz desceu num farfalhar de panos. Suas roupas destoando dos passantes. Trajava um belo e caro vestido de seda verde. Uma enorme esmeralda pendia num colar. Embora não quisesse chamar
CAPÍTULO XXIIIENTRE AS PAREDES DO DESTINOA cavalgada matinal, de trote regular, levou Luther, Caleb e Vikram pelas últimas regiões campestres antes de alcançarem a capital. Após cruzar a estreita floresta de Redwood e as pastagens de uma ou outra fazenda margeada pela estrada, os muros gigantescos de Tessália, a “joia maior do reino”, surgiram titanicamente diante dos rapazes atônitos. Não poderia haver visão mais intimidadora do que aquela para os jovens criados no interior, entre as montanhas. Eles não podiam sequer medir a enormidade da capital com seus olhos destreinados. Tessália aparentava ser muitas vezes maior do que as cidades pelas quais passaram.Vikram conduziu os dois em direção ao aglomerado de casas construído à sombra das muralhas. Aquele bairro se formara ainda durante a era do Império, quando mendigos e pobres eram banidos para fora da cidade. Aqueles que vinham do interior trazendo na bagagem apenas o sonho inocente de que a capital lhes proporcionaria uma vida de
CAPÍTULO XXIVDA ESCURIDÃO PARA A ESCURIDÃOO salto das crianças sobre a cama fez Kel’Enner acordar sobressaltado. A claridade do dia recém-raiado trespassava as finas cortinas de seda, cegando-lhe momentaneamente. Ele precisou de longos segundos para se situar, para entender que os gritos daquelas crianças eram apenas um papai. As lágrimas rolaram soltas pelos olhos do assassino quando se descobriu no quarto de sua antiga casa no campo, e que aquelas duas meninas de nove e dez anos, e o garotinho de seis eram os seus filhos. Seus bens mais preciosos, mas que deveriam estar mortos. Sem se preocupar com que tipo de ilusão poderia ser aquela, abraçou as crianças e gritou por entre soluços de um choro convulsivo que as amava mais do que tudo que já existira no mundo. — Desse jeito eu vou ficar com ciúmes — aquela voz... Kel’Enner, que não queria se desgrudar um só segundo dos filhos, viu a mulher de sua vida parada como uma aparição divina