CAPÍTULO XVAVISOS, PROMESSAS E PROFECIASCaleb já tinha contado três vezes quantas telhas havia no teto do quarto em que ele e Luther foram acomodados. O amigo roncava sonoramente na cama ao lado. O jovem já dividira quartos e barracas o suficiente com Luther para saber que quanto mais cansado ele estivesse, mais alto roncava, mas não eram os barulhos animalescos que o impediam de dormir.Quanto mais se aproximava da capital, maior era a ansiedade. As dúvidas sobre o que encontraria no interior dos muros do Arcanum espreitavam por trás de cada pensamento seu, de cada sorriso, de cada palavra pronunciada.Em sua mente, o Arcanum desenhava-se como um castelo velho e pavoroso, erigido em pedras negras e envolto brumas sinistras. A construção debruçava-se sobre a beira de uma encosta rochosa, onde ondas gigantescas de um mar bravio castigavam incessantemente os rochedos em meio a uma tempestade que durava para sempre. Um lugar onde a noite era eterna. Mas Caleb sabia que o Arcanum ficava
CAPÍTULO XVIOS PERIGOSOS JOGOS DA CORTEJeremy caminhava pelos jardins do castelo real acompanhado de seu velho amigo Harold, o cozinheiro, que conservava o costume de ir a todos os lugares com seu avental manchado da cozinha, como um documento a lhe identificar, como se a cara achatada e os dois metros não fossem suficientes.— Vossa Alteza, já faz muito tempo que não conversamos.— Sim, meu amigo, é verdade, tenho andado ocupado com meu aprendizado. E pare com isso de vossa alteza, você sabe que odeio essas formalidades.— Há muitas pessoas importantes no castelo por esses dias, não seria bom que ouvissem o cozinheiro chamando o herdeiro do trono por seu primeiro nome.— Talvez você tenha razão — anuiu o príncipe, contrariado.Harold limpava em seu avental mãos que poderiam pertencer a um guerreiro. Eram grandes e fortes, perfeitas para manusear uma lança de montaria ou uma espada larga. Imponente em seus dois metros de altura, possuía braços musculosos e um pescoço grosso como um
CAPÍTULO XVIISANGUE E AMBIÇÃOFortaleza da PassagemTerras Baixas do ImpérioAs mãos da duquesa Lila Chamarrubra tremiam ligeiramente, fazendo balançar a bebida na taça de cristal. O estresse daqueles dias era quase insuportável. Ela sentia coisas caminhando sob a pele e arranhava os braços compulsivamente. A bebida era um dos poucos alívios. Quando o calor do vinho começou a falhar, partiu para os destilados, que causavam um efeito mais imediato e prolongado.Lila observava o marido, Matthew, parado junto à janela em longo silêncio, como se esperando que uma ave portando boas notícias fosse pousar a qualquer momento. Ela acreditava que o velho estava finalmente ficando senil, como se o acúmulo de tantas amarguras finalmente tivessem vencido a sanidade.Ela não negava que a iminente execução de seu único filho homem, Maurice, também a convidava à loucura. Por sorte, as flores do mal, os passaportes para a insanidade, eram devidamente afogados em mares de rum e uísque, que ela sorvia
CAPÍTULO XVIIIBASTA FECHAR OS OLHOSEstalagem Unicórnio de Pedra,proximidades da capital.No segundo dia de viagem, Caleb e Luther maravilharam-se ao cruzar a ponte sobre o gigantesco Forja de Prata, o maior rio do reino, que cruzava quase toda a extensão do território Stonehand e cujos afluentes abasteciam um número sem fim de cidades e vilarejos. A grandiosidade do rio caudaloso era impressionante para olhares desavisados que o contemplavam pela primeira vez, com suas águas límpidas que deixavam ver um fundo de pedras polidas e uma abundância incomum de peixes.Ao fim do quarto dia seguindo pela movimentada estrada que levava à capital, quando a noite já tingia o céu de um negro salpicado de estrelas, eles chegaram à estalagem Unicórnio de Pedra. O grande número de carroças e cavalos por ali indicava que o lugar estava cheio.Caleb e Luther seguiram Vikram para dentro da imponente estrutura de dois andares construída em pedra. Quase todas as mesas estavam ocupadas, mas conseguiram
PRÓLOGOEle já havia brincado antes, gotejando no negrume do universo bilhões de pontos prateados, derramando em sua infinita tela de pintura a explosão de cores das galáxias e nebulosas. Tudo era perfeito, mas o problema com a perfeição era que, invariavelmente, ela se atrelava ao tédio, companheiro fiel daqueles que não tem arestas a aparar e cujas criações são elementos estáticos, de começo e fim determinados. Então ele decidiu criar algo jamais experimentado.Durante as primeiras eras, chamadas por ele de Alvorada do Tempo, o deus Criador findou sua grandiosa obra-prima, um vasto planeta azul, a joia mais bela do cosmo.Satisfeito com a esplêndida criação, decidiu dar vida a seres igualmente maravilhosos para habitá-lo, semeando na terra fértil parte de sua aura majestosa. Assim viu germinar criaturas fantásticas, divindades que não conheciam a morte, deuses menores que governaram o planeta por séculos, cultuando o Criador.Com o passar do tempo, cegos por seus imensos poderes e c
CAPÍTULO IIO CONTRATOContinente dos Três DucadosO homem cruzava as ruas de Dama de Pedra como se levado pelo vento. Ele podia sentir no ar o cheiro úmido que antecedia as últimas chuvas de verão. A noite cobria a velha cidade com um manto espesso. A lua quase não brilhava no céu, encoberta pelas pesadas nuvens de tempestade, resumindo-se a uma auréola opaca por trás do véu de sombras.Dama de Pedra era a maior cidade do ducado de Costaverde, governado pelo duque Olho de Águia Willow. A cidade era enorme, cheia de bairros onde era fácil se perder devido às casas altas e vielas estreitas, que se aglomeravam formando labirintos onde o céu se resumia a uma estreita faixa escura, limitada pelos telhados de madeira ou telhas arredondadas de argila negra.O homem que desafiava a noite e seus perigos era nada mais que um vulto, misturando-se às sombras frias das casas. Seus passos não produziam som. Sua silhueta era engolida pela escuridão. Seu cheiro era nulo. Ele praticamente não existia
CAPÍTULO IIIO FOGO DE DEMOONV’UURDesde a infância, Caleb tinha as noites de sono povoadas por terríveis pesadelos. Era comum acordar sentindo no rosto as mãos da avó, que tentava acalmá-lo abafando seus gritos em um abraço acolhedor.Com o tempo, à medida que crescia e deixava a infância para trás, os pesadelos, dos quais nunca era capaz de lembrar, foram deixando de figurar em sua vida, restando apenas as lembranças da avó, sempre alerta, dedicada e a postos para cuidar de seus temores, mas nada pelo que já havia passado poderia prepará-lo para o que estava prestes a vivenciar.Caleb abriu os olhos descobrindo-se em uma caverna escura e úmida. Sombras vivas dançavam na parede ao fundo do corredor, embaladas por chamas bruxuleantes escondidas na curva à direita, o único caminho a seguir.Ele caminhou com passos lentos e temerosos, absurdamente ciente de estar sonhando, o que era espantoso, tendo em vista a palpável realidade. O chão frio sob os pés descalços, o cheiro das pedras e d
CAPÍTULO IVO DILEMA DO PRÍNCIPEJeremy acordou em meio aos luxuosos lençóis de seda que envolviam seu corpo e o de sua esposa, com a maciez que apenas os tecidos mais caros, produzidos pelas mãos mais hábeis, eram capazes de proporcionar. A claridade que entrava pelas janelas amplas delatava o alvorecer de um novo e belo dia.A mão de Beatriz pesava-lhe sobre o peito. Ele se desvencilhou do abraço da esposa de maneira sutil, fazendo o possível para não acordá-la. Caminhou até a janela e se pôs a observar as ruas da capital, Tessália. Conhecida como a “joia maior do reino”, era o legado conquistado por seu avô e agora governado por seu pai, o rei Alexander Stonehand.Jeremy era o único herdeiro, e a cada vez que olhava por aquela janela, enxergava o peso da responsabilidade de que algum dia seria ele a governar.Quando ocupasse o trono, as vidas de cada uma daquelas pessoas lá embaixo, estariam sob a tutela de seus julgamentos e decisões. Vidas que lhe pertenceriam e pelas quais preci