CAPÍTULO XIRASGANDO O CÉUContinente de AsgardO verão asgardiano trazia consigo apenas um ligeiro esgar de calor. Bem como a primavera promovia o desabrochar apenas das flores mais fortes, que no outono se tornariam quebradiças e cairiam derrotadas de forma cruel. Já o inverno, sempre dolorosamente rigoroso, era quem separava e exaltava os fortes, trajando adequadamente os mais fracos com os trajes negros da morte ou brancos do gelo.Baldur mirava seu olhar nos últimos raios preguiçosos do sol que se despedia no horizonte a oeste. À sua frente, a colina gelada inclinava-se rumo ao céu, onde as estrelas, sempre vigilantes, brilhavam timidamente.Seus pés afundavam no gelo até as canelas, mas mesmo em desequilíbrio, ele sequer ameaçava largar o odre de pele de lobo, onde o hidromel dançava conforme seu avanço trôpego.A cabeleira ruiva e desgrenhada era a única proteção de sua cabeça contra os ventos gélidos, que assobiavam vindos de todas as direções, entoando canções quase perceptív
CAPÍTULO XIICONSEQUÊNCIAS E INCONSEQUÊNCIASMar Báltico Estreito.Maia estava debruçada sobre a amurada do grande barco pesqueiro. Observava os pássaros que voavam ao longe sobre a silhueta distante das terras de Stonehand. Ela gostava do cheiro do mar e de ver o sol refletindo sobre o tapete azulado de cristas brancas. Vez ou outra se maravilhava com golfinhos e baleias saltando majestosamente como se almejassem voar. O balançar rítmico do convés sob seus pés e o vento acariciando seu rosto eram tão agradáveis que quase a faziam desejar não voltar para terra, trocando para sempre as ruas claustrofóbicas das cidades do Reino pela imensidão do mar que lhe inspirava tanta liberdade.Ela já tinha se acostumado com as cantorias dos marinheiros e suas canções repetitivas sobre donzelas lhes abrindo as pernas, dragões cuspindo fogo ou as preferidas, sobre piratas intrépidos e conquistadores. Tinha se acostumado até mesmo com o cheiro daqueles homens rústicos, sempre suados, de barbas por f
CAPÍTULO XIIIRAÍZESAssim que colocou os olhos no velho amigo, Vikram foi tomado de súbito por um levante de lembranças tão vívidas que pareciam pertencer a dias e não décadas atrás, quando Martan ainda possuía alguns cabelos negros e as demais marcas da idade ainda não tinham reivindicado as suas posses. O próprio Vikram, à época, era apenas um jovem recém-tornado homem, que havia encontrado todas as dificuldades que o mundo poderia impor à vida de um órfão nas ruas.Com apenas sete anos, fora o único sobrevivente de um naufrágio. As memórias de sua vida antes daquele dia trágico foram tragadas pelo trauma do mar bravio e pelas pancadas na cabeça, recebidas no convés que parecia indeciso sobre para onde arremessar os tripulantes.A noite da tormenta era nada mais que flashes indistintos, que cortavam o véu de sua mente como facas afiadas. Lembrava-se da água salgada no rosto, do chão de madeira balançando sob os pés, o vento forte e as ondas jogando as pessoas de um lado para outro.
CAPÍTULO XIVREUNIÃO DO CONSELHOTessália, capital de Stonehand.Jeremy estava ansioso. Faltava pouco para a reunião do Conselho, a primeira da qual participaria. Passara a noite em claro pensando no embate entre os nobres de verdadeiro poder, não os ricos mimados que normalmente frequentavam o castelo, mas sim aqueles cuja palavra tinha peso diante do rei, e que podiam pressionar o seu pai com a força de sua influência.Passaram-se três dias desde a conversa a portas fechadas com Alexander, desde então, havia estudado como louco, devorando livros de contas, conversando com pessoas que ocupavam cargos importantes a serviço do rei, coletando opiniões, medindo expectativas, ouvindo rumores e utilizando todas as ferramentas possíveis para obter o melhor entendimento sobre o que acontecia por trás das cortinas do reino.Tinham se passado também três dias desde que se encontrara com Melinda, quando compareceu ao lugar marcado apenas para dizer que não poderia partir com ela.***— Melinda,
CAPÍTULO XVAVISOS, PROMESSAS E PROFECIASCaleb já tinha contado três vezes quantas telhas havia no teto do quarto em que ele e Luther foram acomodados. O amigo roncava sonoramente na cama ao lado. O jovem já dividira quartos e barracas o suficiente com Luther para saber que quanto mais cansado ele estivesse, mais alto roncava, mas não eram os barulhos animalescos que o impediam de dormir.Quanto mais se aproximava da capital, maior era a ansiedade. As dúvidas sobre o que encontraria no interior dos muros do Arcanum espreitavam por trás de cada pensamento seu, de cada sorriso, de cada palavra pronunciada.Em sua mente, o Arcanum desenhava-se como um castelo velho e pavoroso, erigido em pedras negras e envolto brumas sinistras. A construção debruçava-se sobre a beira de uma encosta rochosa, onde ondas gigantescas de um mar bravio castigavam incessantemente os rochedos em meio a uma tempestade que durava para sempre. Um lugar onde a noite era eterna. Mas Caleb sabia que o Arcanum ficava
CAPÍTULO XVIOS PERIGOSOS JOGOS DA CORTEJeremy caminhava pelos jardins do castelo real acompanhado de seu velho amigo Harold, o cozinheiro, que conservava o costume de ir a todos os lugares com seu avental manchado da cozinha, como um documento a lhe identificar, como se a cara achatada e os dois metros não fossem suficientes.— Vossa Alteza, já faz muito tempo que não conversamos.— Sim, meu amigo, é verdade, tenho andado ocupado com meu aprendizado. E pare com isso de vossa alteza, você sabe que odeio essas formalidades.— Há muitas pessoas importantes no castelo por esses dias, não seria bom que ouvissem o cozinheiro chamando o herdeiro do trono por seu primeiro nome.— Talvez você tenha razão — anuiu o príncipe, contrariado.Harold limpava em seu avental mãos que poderiam pertencer a um guerreiro. Eram grandes e fortes, perfeitas para manusear uma lança de montaria ou uma espada larga. Imponente em seus dois metros de altura, possuía braços musculosos e um pescoço grosso como um
CAPÍTULO XVIISANGUE E AMBIÇÃOFortaleza da PassagemTerras Baixas do ImpérioAs mãos da duquesa Lila Chamarrubra tremiam ligeiramente, fazendo balançar a bebida na taça de cristal. O estresse daqueles dias era quase insuportável. Ela sentia coisas caminhando sob a pele e arranhava os braços compulsivamente. A bebida era um dos poucos alívios. Quando o calor do vinho começou a falhar, partiu para os destilados, que causavam um efeito mais imediato e prolongado.Lila observava o marido, Matthew, parado junto à janela em longo silêncio, como se esperando que uma ave portando boas notícias fosse pousar a qualquer momento. Ela acreditava que o velho estava finalmente ficando senil, como se o acúmulo de tantas amarguras finalmente tivessem vencido a sanidade.Ela não negava que a iminente execução de seu único filho homem, Maurice, também a convidava à loucura. Por sorte, as flores do mal, os passaportes para a insanidade, eram devidamente afogados em mares de rum e uísque, que ela sorvia
CAPÍTULO XVIIIBASTA FECHAR OS OLHOSEstalagem Unicórnio de Pedra,proximidades da capital.No segundo dia de viagem, Caleb e Luther maravilharam-se ao cruzar a ponte sobre o gigantesco Forja de Prata, o maior rio do reino, que cruzava quase toda a extensão do território Stonehand e cujos afluentes abasteciam um número sem fim de cidades e vilarejos. A grandiosidade do rio caudaloso era impressionante para olhares desavisados que o contemplavam pela primeira vez, com suas águas límpidas que deixavam ver um fundo de pedras polidas e uma abundância incomum de peixes.Ao fim do quarto dia seguindo pela movimentada estrada que levava à capital, quando a noite já tingia o céu de um negro salpicado de estrelas, eles chegaram à estalagem Unicórnio de Pedra. O grande número de carroças e cavalos por ali indicava que o lugar estava cheio.Caleb e Luther seguiram Vikram para dentro da imponente estrutura de dois andares construída em pedra. Quase todas as mesas estavam ocupadas, mas conseguiram