CAPÍTULO XIRASGANDO O CÉUContinente de AsgardO verão asgardiano trazia consigo apenas um ligeiro esgar de calor. Bem como a primavera promovia o desabrochar apenas das flores mais fortes, que no outono se tornariam quebradiças e cairiam derrotadas de forma cruel. Já o inverno, sempre dolorosamente rigoroso, era quem separava e exaltava os fortes, trajando adequadamente os mais fracos com os trajes negros da morte ou brancos do gelo.Baldur mirava seu olhar nos últimos raios preguiçosos do sol que se despedia no horizonte a oeste. À sua frente, a colina gelada inclinava-se rumo ao céu, onde as estrelas, sempre vigilantes, brilhavam timidamente.Seus pés afundavam no gelo até as canelas, mas mesmo em desequilíbrio, ele sequer ameaçava largar o odre de pele de lobo, onde o hidromel dançava conforme seu avanço trôpego.A cabeleira ruiva e desgrenhada era a única proteção de sua cabeça contra os ventos gélidos, que assobiavam vindos de todas as direções, entoando canções quase perceptív
CAPÍTULO XIICONSEQUÊNCIAS E INCONSEQUÊNCIASMar Báltico Estreito.Maia estava debruçada sobre a amurada do grande barco pesqueiro. Observava os pássaros que voavam ao longe sobre a silhueta distante das terras de Stonehand. Ela gostava do cheiro do mar e de ver o sol refletindo sobre o tapete azulado de cristas brancas. Vez ou outra se maravilhava com golfinhos e baleias saltando majestosamente como se almejassem voar. O balançar rítmico do convés sob seus pés e o vento acariciando seu rosto eram tão agradáveis que quase a faziam desejar não voltar para terra, trocando para sempre as ruas claustrofóbicas das cidades do Reino pela imensidão do mar que lhe inspirava tanta liberdade.Ela já tinha se acostumado com as cantorias dos marinheiros e suas canções repetitivas sobre donzelas lhes abrindo as pernas, dragões cuspindo fogo ou as preferidas, sobre piratas intrépidos e conquistadores. Tinha se acostumado até mesmo com o cheiro daqueles homens rústicos, sempre suados, de barbas por f
PRÓLOGOEle já havia brincado antes, gotejando no negrume do universo bilhões de pontos prateados, derramando em sua infinita tela de pintura a explosão de cores das galáxias e nebulosas. Tudo era perfeito, mas o problema com a perfeição era que, invariavelmente, ela se atrelava ao tédio, companheiro fiel daqueles que não tem arestas a aparar e cujas criações são elementos estáticos, de começo e fim determinados. Então ele decidiu criar algo jamais experimentado.Durante as primeiras eras, chamadas por ele de Alvorada do Tempo, o deus Criador findou sua grandiosa obra-prima, um vasto planeta azul, a joia mais bela do cosmo.Satisfeito com a esplêndida criação, decidiu dar vida a seres igualmente maravilhosos para habitá-lo, semeando na terra fértil parte de sua aura majestosa. Assim viu germinar criaturas fantásticas, divindades que não conheciam a morte, deuses menores que governaram o planeta por séculos, cultuando o Criador.Com o passar do tempo, cegos por seus imensos poderes e c
CAPÍTULO IIO CONTRATOContinente dos Três DucadosO homem cruzava as ruas de Dama de Pedra como se levado pelo vento. Ele podia sentir no ar o cheiro úmido que antecedia as últimas chuvas de verão. A noite cobria a velha cidade com um manto espesso. A lua quase não brilhava no céu, encoberta pelas pesadas nuvens de tempestade, resumindo-se a uma auréola opaca por trás do véu de sombras.Dama de Pedra era a maior cidade do ducado de Costaverde, governado pelo duque Olho de Águia Willow. A cidade era enorme, cheia de bairros onde era fácil se perder devido às casas altas e vielas estreitas, que se aglomeravam formando labirintos onde o céu se resumia a uma estreita faixa escura, limitada pelos telhados de madeira ou telhas arredondadas de argila negra.O homem que desafiava a noite e seus perigos era nada mais que um vulto, misturando-se às sombras frias das casas. Seus passos não produziam som. Sua silhueta era engolida pela escuridão. Seu cheiro era nulo. Ele praticamente não existia
CAPÍTULO IIIO FOGO DE DEMOONV’UURDesde a infância, Caleb tinha as noites de sono povoadas por terríveis pesadelos. Era comum acordar sentindo no rosto as mãos da avó, que tentava acalmá-lo abafando seus gritos em um abraço acolhedor.Com o tempo, à medida que crescia e deixava a infância para trás, os pesadelos, dos quais nunca era capaz de lembrar, foram deixando de figurar em sua vida, restando apenas as lembranças da avó, sempre alerta, dedicada e a postos para cuidar de seus temores, mas nada pelo que já havia passado poderia prepará-lo para o que estava prestes a vivenciar.Caleb abriu os olhos descobrindo-se em uma caverna escura e úmida. Sombras vivas dançavam na parede ao fundo do corredor, embaladas por chamas bruxuleantes escondidas na curva à direita, o único caminho a seguir.Ele caminhou com passos lentos e temerosos, absurdamente ciente de estar sonhando, o que era espantoso, tendo em vista a palpável realidade. O chão frio sob os pés descalços, o cheiro das pedras e d
CAPÍTULO IVO DILEMA DO PRÍNCIPEJeremy acordou em meio aos luxuosos lençóis de seda que envolviam seu corpo e o de sua esposa, com a maciez que apenas os tecidos mais caros, produzidos pelas mãos mais hábeis, eram capazes de proporcionar. A claridade que entrava pelas janelas amplas delatava o alvorecer de um novo e belo dia.A mão de Beatriz pesava-lhe sobre o peito. Ele se desvencilhou do abraço da esposa de maneira sutil, fazendo o possível para não acordá-la. Caminhou até a janela e se pôs a observar as ruas da capital, Tessália. Conhecida como a “joia maior do reino”, era o legado conquistado por seu avô e agora governado por seu pai, o rei Alexander Stonehand.Jeremy era o único herdeiro, e a cada vez que olhava por aquela janela, enxergava o peso da responsabilidade de que algum dia seria ele a governar.Quando ocupasse o trono, as vidas de cada uma daquelas pessoas lá embaixo, estariam sob a tutela de seus julgamentos e decisões. Vidas que lhe pertenceriam e pelas quais preci
CAPÍTULO VFRENTE A FRENTEVovô, por favor — Caleb tinha nove anos, estava sentado entre os avós no banco suspenso por correntes que ficava na varanda de casa. Observava maravilhado o espetáculo do pôr do sol que se espremia entre as montanhas, cujos picos cobertos de gelo, aos olhos infantis, pareciam pães polvilhados de açúcar.Ele encarava o avô com pequeninos olhos suplicantes.— Por favor, fale mais sobre ele.Enquanto crescia, tornava-se mais curioso em relação aos pais que não chegara a conhecer. A mãe tinha morrido no parto, em alguma cidade distante. O pai, que o levara para ser criado pelos avós, morreu em circunstâncias das quais Jacob e Rosie jamais falavam.— Você me lembra muito o seu pai – disse Rosie, com seu olhar sempre bondoso.— Rosie! — exclamou Jacob em tom de repreensão.— O garoto merece, não seja tão rabugento.Voltou para o neto os gentis e inesquecíveis olhos azuis.— Seu pai foi uma criança muito esperta e inteligente, assim como você. Quando tinha sua idad
CAPÍTULO VIA CAÇADAFloresta da PassagemTerras Baixas de StonehandAprimeira flecha sibilou no ar para fincar-se errante no tronco de uma árvore. O cervo, assustado com o barulho, ergueu a cabeça antes de saltitar, desaparecendo no mato alto.— Vossa Graça, o senhor é mesmo péssimo na arquearia — constatou Maurice Chamarrubra, o jovem filho do Duque da Passagem, ao passar correndo pelo conde Barteaux Highmoutain com seu próprio arco em punho.— Cada homem é dotado de diferentes talentos, meu querido primo. A grande comitiva do conde, formada por alguns soldados vigilantes e muitos membros da nobreza, avançava pela floresta. Além de arcos e aljavas, a maioria também portava odres de vinho e cerveja para completar a diversão. As famosas caçadas organizadas pela família Highmoutain eram tradição secular, e nem mesmo o conflito separatista que eclodia no norte do continente os impediu de promover o esperado evento, que premiava o campeão com troféu, ouro e novas canções criadas pelos m