CAPÍTULO VI
A CAÇADA
Floresta da Passagem
Terras Baixas de Stonehand
Aprimeira flecha sibilou no ar para fincar-se errante no tronco de uma árvore. O cervo, assustado com o barulho, ergueu a cabeça antes de saltitar, desaparecendo no mato alto.
— Vossa Graça, o senhor é mesmo péssimo na arquearia — constatou Maurice Chamarrubra, o jovem filho do Duque da Passagem, ao passar correndo pelo conde Barteaux Highmoutain com seu próprio arco em punho.
— Cada homem é dotado de diferentes talentos, meu querido primo.
A grande comitiva do conde, formada por alguns soldados vigilantes e muitos membros da nobreza, avançava pela floresta. Além de arcos e aljavas, a maioria também portava odres de vinho e cerveja para completar a diversão. As famosas caçadas organizadas pela família Highmoutain eram tradição secular, e nem mesmo o conflito separatista que eclodia no norte do continente os impediu de promover o esperado evento, que premiava o campeão com troféu, ouro e novas canções criadas pelos menestréis da corte. A competição era bastante simples, cada família indicava seu campeão, e aquele que trouxesse mais cabeças de cervos era consagrado vencedor.
Barteaux tinha pouco interesse no evento. Só estava ali para manter a tradição familiar de jamais enviar para a caçada ninguém além do próprio patriarca, independente de sua idade ou saúde, enquanto as demais casas, menos orgulhosas em suas tradições e mais ambiciosas quanto ao prêmio, podiam escolher aquele com a mão mais firme para o arco, desde que houvesse laço sanguíneo ou por casamento.
Maurice saltou alguns arbustos e seguiu rastreando o cervo foragido. Às suas costas, ouvia as conversas entre os nobres e os maldizia por falar tão alto, espantando a caça, embora soubesse que impor dificuldades aos adversários fazia parte do jogo.
Secretamente, cobiçava o prêmio para oferecê-lo à mulher que amava. Não que ele pudesse escancarar o seu amor aos quatro ventos, já que se tratava da filha de um camponês, mas o desejo de impressioná-la era o que guiava a sua mira.
Após reencontrar o rastro, Maurice verificou se não estava sendo seguido e avançou com cautela, deixando o ruidoso grupo para trás. Avistou o cervo muitos metros à frente, a farejar o ar, encimado em uma formação rochosa no centro de uma clareira. O sol se pronunciava radiante incidindo em um ângulo incômodo, que praticamente cegava o jovem e dificultava uma mira precisa. Seria necessário encontrar posição melhor para o disparo, além de seguir mantendo-se contra o vento para impedir nova fuga do cervo, porém, quando caminhava para a direita, o arco em punho, sem tirar os olhos da presa, pisou em um galho seco que quebrou ruidosamente, atraindo a atenção do animal.
— Merda!
O cervo saltou das rochas ao passo em que Maurice, habilmente, atirou, mesmo contra o sol. A ciência da arquearia acomodava-se bem entre seus talentos. A firmeza das mãos, o respirar rítmico e todos os demais pormenores que criavam um bom arqueiro. Era também um espadachim acima da média e gostava de provar-se contra os soldados do primo Barteaux, que tinha entre suas fileiras os habilidosos gêmeos Toussant, considerados por muitos como dois dos melhores esgrimistas de todo Stonehand.
Maurice contornou a formação rochosa ainda sem saber se tinha atingido o alvo. Sorriu vitorioso ao encontrar o animal caído, mas sua felicidade pouco durou, pois percebeu que o cervo ainda respirava, em pura agonia. Ele se apressou em sacar a faca e perfurar o coração, permitindo ao animal o livramento daquela dor.
***
Ao cair da tarde, a comitiva passou pela muralha leste da Passagem e os nobres e seus campeões cruzaram a cidadela dirigindo-se para a mansão Highmoutain, onde um grande banquete aguardava-os nos jardins da bela propriedade do conde. Comida e bebida eram de ampla fartura, uma banda de cordas e percussão animava as pessoas. Malabaristas e mágicos faziam os seus truques.
Maurice, desanimado com a derrota por apenas uma cabeça, mordiscava meio sem ânimo um peito de faisão. Sentou-se em um canto isolado, sob a sombra da varanda da mansão, onde achou que ninguém iria incomodá-lo. Se seu sobrenome não fosse Chamarrubra e não precisasse representar a família que estava no topo do ducado, acima de todas as demais, já teria partido para casa, mas era de praxe que após o discurso do conde Highmoutain, alguém de sua família também discursasse parabenizando o vencedor.
— Não acredito que essa carne esteja tão amarga assim — Maurice ergueu os olhos ao ouvir a voz da irmã, Charlotte.
Com cara de poucos amigos, indicou o banco para que a moça se sentasse. Aos dezesseis, Charlotte Chamarrubra era uma verdadeira beldade. Os cabelos loiros que herdara da mãe eram de um tom escuro, que combinava com a pele ligeiramente acobreada.
— O que está fazendo aqui?
— Vim para ter certeza de que não está aprontando nada de errado.
— Acho que você está se esquecendo de que eu sou o mais velho. E que sou eu quem precisa ficar de olho em você.
— Pobre Maurice, uma mulher aos dezesseis sabe muito mais sobre a vida do que um rapazote de vinte e um.
Ele não estava com ânimo o suficiente para rebater as provocações da irmã.
— Me diga, por que está com essa cara, irmão? Não acredito que seja apenas por causa do torneio.
Com um olhar entristecido, ele encheu um copo com uma cerveja rala e insossa.
— É por causa daquela garota?
A expressão de Maurice era sua resposta.
— Então é isso, você esperava oferecer o prêmio para ela. Irmão, isso é lindo, mas você sabe que quando nosso pai descobrir...
— Ele já descobriu.
— E você ainda está vivo?
— Pois é. Acho que teria sido melhor se eu tivesse sido proibido de vê-la.
— O que foi que Lorde Matthew Chamarrubra disse ao invés de lhe dar uma punição?
— Que eu poderia ir para cama com a camponesa que quisesse, desde que tomasse cuidado para não gerar bastardos. Mandou que eu a obrigasse a tomar chá de pó de boldo vermelho toda vez que ficasse comigo.
— Isso é... terrível, até mesmo para nosso pai. Acho que você tinha razão. Talvez fosse melhor uma punição severa. Talvez algumas chicotadas nas costas. Ainda dá tempo, se quiser posso falar com o duque.
Maurice balançou a cabeça, fazendo pouco do sarcasmo da irmã.
— Charlotte, por que você não vai embora?
— Eu acabei de chegar, vou me divertir um pouco — a moça se afastou em busca de bebida, atraindo olhares e sorrisos. Não deu atenção a nenhum deles, exceto ao galante anfitrião.
— Belíssima prima, Charlotte — Barteaux Highmountain, que era primo em primeiro grau de Lila Chamarrubra, mãe de Charlotte, tomou a delicada mão da moça entre as suas e a beijou suavemente. Tinha pouco mais de cinquenta anos, mas sua vaidade, evidenciada nos trajes, corte de cabelo e postura, o faziam parecer mais jovem. Ele jamais havia se casado e existiam muitos rumores não comprovados de que gostava mais de homens do que de mulheres.
— Gentil como sempre, Barteaux — sorriu lisonjeada. Falava alto, para ser ouvida acima do barulho da música, das risadas e conversas que permeavam o ambiente ao redor. Uma queda de braços disputada a poucos metros dali, mediante a força e fúria dos competidores, fez ruir o barril sobre o qual se escoravam, levando ambos ao solo e provocando gargalhadas na pequena multidão.
— Está se divertindo? — perguntou Barteaux, quando conseguiu recuperar a atenção de Charlotte.
— Acabei de chegar, mas creio que vou me divertir bastante, assim que encontrar uma bebida.
— Não exagere, por favor, não quero ficar em maus lençóis com teu pai.
— Não se preocupe.
— Sinta-se em casa, minha querida. Agora, deixe-me descobrir o motivo pelo qual teu irmão parece tão chateado.
Barteaux curvou-se em uma reverência de despedida e caminhou até a mesa onde Maurice buscava se esconder.
— Primo — disse ao postar-se frente ao jovem.
— Vossa Graça.
— A derrota foi tão dolorosa assim?
— Não. Estou preocupado com outras coisas.
— Então os rumores são verdadeiros?
— Que rumores?
— De que tem andado por aí de namoro com uma camponesa. Seu pai deve estar arrancando os cabelos grisalhos.
Maurice gostava muito de Barteaux. A proximidade dos dois crescia à medida que se distanciava do próprio pai. O duque estava cada vez mais preocupado em ir para cama com as serviçais do castelo do que qualquer outra coisa, sem se preocupar que a esposa soubesse, desmoralizando-a constantemente. Tais maus-tratos à Lila fizeram com que Maurice se afastasse automaticamente do pai. Além do mais, fã como era dos gêmeos Toussant e dada sua amizade com Barteaux, Maurice se permitia passar longas horas do dia na mansão do primo mais velho.
— Meu pai está pouco se fodendo para o que acontece comigo ou com minhas irmãs.
— Não diga isso, Maurice. Se existe algo que pode ser dito sobre Matthew Chamarrubra, é que ele ama imensamente os filhos. E você, o herdeiro homem que sentará no trono do ducado algum dia, acima de tudo e de todos.
— Ele com certeza não se esforça nem um pouco para demonstrar. Prefere investir o tempo mandando cartas desaforadas para o rei e fazendo perambulações noturnas pelos quartos das empregadas do castelo.
Maurice viu a expressão de Barteaux se fechar pela primeira vez.
— Eu soube. Lila não merece isso. Escute, por que não vamos para meu escritório, para conversar mais tranquilamente, longe de todo esse barulho e perto de bebidas melhores do que essas coisas aguadas que encomendei para o banquete.
— Acho que é uma ótima ideia.
***
O escritório de Barteaux Highmoutain continha uma verdadeira biblioteca. Duas, das quatro paredes de pé-direito alto, eram cobertas por estantes de livros que partiam com imponência do chão de tacos vermelhos até o teto de gesso muito branco. Maurice sempre se permitia alguns instantes fitando os volumes daquela coleção. A sensação era de que sempre encontrava um livro que nunca vira antes, mesmo com as constantes visitas à mansão.
— Você tem muitos volumes sobre o Arcanum – comentou despretensiosamente.
— Sim. A magia é um assunto sobre o qual tenho grande interesse. Os magos são seres fascinantes.
— A maioria os considera aterrorizantes.
Maurice viu o sorriso do conde refletido no vidro da porta de seu armário de bebidas, de onde retirou uma garrafa de vinho de cor tão escura que beirava o negro. O rótulo indicava que fora produzido em um famoso vinhedo dos Três Ducados. Com os conflitos constantes entre os três duques de além-mar, geralmente não era fácil conseguir garrafas como aquela, e os preços estavam longe de caber nos bolsos de qualquer um.
— Os magos são apenas pessoas. A maioria teme aquilo que não é capaz de compreender, e existem tantas coisas que não compreendemos — enigmático, o conde cofiou as costeletas muito bem afeitadas antes de servir duas taças generosas do tinto e convidar Maurice a se sentar.
— Por que não fala um pouco sobre a sua garota?
Maurice olhou ao redor. Depois pareceu procurar alguma coisa, obstinadamente, no fundo de sua taça.
— Qual o problema?
— É que realmente gosto dela. Parece-me tão estúpido e injusto não poder ficar com a mulher que amo, apenas por causa de tradições antigas.
— Ninguém disse que você não pode ficar com ela. Você só não pode se casar com ela.
Maurice encarou o primo com certo ar de decepção.
— Você soou exatamente igual ao meu pai.
— Houve uma época em que eu consideraria tais palavras como um grande elogio — sorriram e beberam ao mesmo tempo. — Mas e então, o que você fará a respeito?
— Eu não sei.
— Diga-me, o quanto você gosta da...
— Annabel.
— Annabel, um belo nome. Quanto amor você tem por Annabel?
— Ela é tudo em que sou capaz de pensar. Não creio que serei capaz de amar outra mulher da mesma forma.
— E o que você estaria disposto a fazer para ficar com ela? Mas espere, pense antes de responder. Não seja precipitado.
— Não preciso pensar — Maurice devolveu a taça já vazia para a mesa —, faria qualquer coisa.
— E ela se sente da mesma forma? Já conversaram sobre isso?
— Sim. Ela se sente exatamente como eu.
— Então eu direi o que você precisa fazer — Barteaux ficou de pé repentinamente e apontou para a porta. — Vá até a Annabel agora e se case com ela.
— Como é?
— Tudo o que você precisa é de um pouco de ouro para molhar a mão de um pároco e da mulher que ama. O ouro está bem aqui — abriu uma das gavetas da mesa e pegou uma bolsa de moedas que tilintaram audivelmente —, se você garante que encontrou a mulher amada, não lhe falta coisa alguma.
Maurice ficou olhando de Barteaux para a bolsa, sem saber o que dizer. O conde então prosseguiu, preenchendo a lacuna:
— Um casamento feito sob o olhar do Criador não pode ser desfeito. Nem mesmo teu pai, o poderoso Duque da Passagem, Protetor das Terras Baixas e Senhor da Cidadela teria poderes para desfazer o que foi feito sob as asas do arcanjo.
Maurice ficou de pé.
— Você acha que eu... que eu deveria...
— Eu não estaria propondo se não achasse. Não quero que você viva uma vida de infelicidades, meu primo, cogitando como teria sido viver ao lado da mulher amada... — Barteaux interrompeu-se, respirou pesadamente com o olhar perdido em algum lugar antes de prosseguir. — Vou lhe contar um segredo, o maior segredo da minha vida. Peço apenas que não o compartilhe com ninguém, jamais.
O rapaz anuiu.
— Eu já senti este mesmo amor por tua mãe, por minha querida Lila. Nossas famílias nunca viram problemas no parentesco, até incentivavam, dizendo que poderíamos gerar herdeiros mais fortes. Eu poderia ter me declarado para ela a qualquer momento, mas não o fiz. Por isso nunca me casei com mais ninguém. Por isso vivo esta vida vazia, por nunca ter deixado a única mulher que já amei saber disso. Se eu tivesse me declarado antes que Matthew a conhecesse e cortejasse...
Maurice ficou olhando para o primo sem saber o que dizer. Apesar de muito surpreso com aquela história, ele entendia qual era sua moral.
Barteaux deu a volta na mesa e pegou o primo pelos ombros.
— Escute bem, quando Matthew descobrir o que você fez, eu lhe darei total apoio, mesmo que ele ameace deserdá-lo. Estarei do teu lado e lhe garanto uma bela casa na vila em que escolher. Você, sua esposa e família vindoura terão tudo o que desejarem, tudo que estiver ao meu alcance proporcionar.
— Primo Barteaux. Vossa Graça. Eu nem sei o que dizer.
— Só peço que esqueça para sempre o que eu disse sobre a duquesa. Eu jamais pensei que contaria este segredo para alguém, principalmente para um dos filhos de Lila — apertou os ombros do rapaz com firmeza —, mas o destino quis, que o filho da única mulher que amei em toda a minha vida, viesse a ser justamente um de meus melhores amigos.
— Pode ficar tranquilo, ninguém jamais saberá, não por mim. E... eu tenho certeza de que você a teria tratado muito melhor do que meu pai.
Barteaux sorriu entristecido. Havia lágrimas nos cantos de seus olhos.
— Você precisa ir, vá agora. Case-se com Annabel esta noite, porque com o conflito no norte, muita coisa pode acontecer de uma hora para a outra.
— Sim... Sim! Sim! Maurice abraçou o conde com força, arrancando-lhe um arquejo.
— Obrigado — gritou enquanto passava pela porta.
Barteaux ergueu a mão espalmada em despedida.
Segundos após a saída de Maurice, um dos gêmeos Toussant, Thierry, passou pela porta. A presença esguia e bem apessoada do homem tido como um dos melhores esgrimistas do reino atraía a atenção.
— Vossa Graça.
— Meu querido Thierry! Maurice já partiu, você sabe o que fazer.
— Sim, senhor.
Barteaux encheu novamente a taça e caminhou em direção à janela. Bebeu um gole e pôs-se a fitar o alto da colina, ao longo da qual se escorava a Cidadela da Passagem e o vigilante castelo dos Chamarrubra, cuja localização geograficamente elevada fazia ressaltar a posição do duque acima de seus vassalos.
Com um olhar cheio de promessas, Barteaux se permitiu um leve sorriso de satisfação.
CAPÍTULO VIISOMBRAS DO PASSADOAs crianças nadavam sob a cachoeira de águas cristalinas. A menina de cabelos castanhos tinha nove anos e não desgrudava do irmão, um garoto robusto e alto para seus onze anos.Saíram da água apenas porque já não podiam ignorar a fome. Perderam a noção do tempo em meio às brincadeiras. A mãe tinha sido clara: “Voltem antes do almoço”, como dizia sempre.— Venha, precisamos voltar — o garoto estendeu uma das mãos e a ajudou a sair da água. Com a outra, colocou uma flor sobre a orelha da irmã, uma orquídea azul que crescera solitária à beira da água.— Obrigada — admirava-se constantemente com o carinho de Damian.***Os assassinos emergiram na borda da floresta de Costaverde. Do alto da colina, tinham plena visão do interior da propriedade de Dom Omar. A chuva ainda caía incessante quando observavam a pouca movimentação dos guardas nas ameias. Preguiçosos por causa do aguaceiro, estes preocupavam-se muito mais em se manter secos e aquecidos do que em vig
CAPÍTULO VIIIO BRADO DOS SEPARATISTASJeremy subia as ladeiras em direção ao castelo ainda entorpecido pelos acontecimentos na loja de Melinda. A decisão que mudaria sua vida, tomada mediante a necessidade abrasadora de viver ao lado da mulher que amava.A sensação do sexo exaltado ainda era latente na pele. Os corpos misturados, fundidos sobre o balcão da loja. Derrubando esculturas, livros de contas e tudo mais que estivesse ao alcance de mãos e pernas. Movimentos frenéticos e desgovernados, urgência característica das profundas paixões proibidas.Quando avistou o gigante de pedra que era o castelo real, protegido pela enorme e sempre vigilante muralha, Jeremy sentiu a confiança minar. As dúvidas abateram-se sobre ele, eclipsando a projeção da vida feliz com Melinda. O calor provocado pelo sexo extinguia-se. Quanto mais próximo da muralha, mais se sentia como um traidor. O castelo o encarava de maneira acusadora. Cada janela parecia o olhar de um rosto reprovador. Cada porta, uma b
CAPÍTULO IXNOVAS ANTIGAS DESCOBERTASTerras Baixas de StonehandCidade portuária de CapitaniaEle caminhava pelo píer na madrugada soturna. O corpo enrolado em uma manta longa que lhe cobria da cabeça aos pés. O pano velho e rasgado escondia-lhe o rosto, deixando flutuar na brisa apenas uma mecha dos cabelos negros.A madeira do atracadouro seguia vários metros para dentro do mar. Entre as tábuas, era possível ver uma mancha escura e incomum, que seguia fielmente os passos do caminhante noturno. Centenas de peixes espremendo-se para acompanhar a sombra do homem, hipnotizados por sua presença.Se alguém estivesse a observá-lo, seria fácil confundir o caminhante com um fantasma descarnado, remanescente das muitas batalhas de séculos atrás, quando os Três Ducados e as Terras Baixas do Império entravam em conflitos constantes.Ele parou, observando o mar. Olhava para sudoeste, em direção à tormenta distante que castigava com relâmpagos incessantes o tapete de águas negras. O cheiro da ma
CAPÍTULO XPRIMEIROS PASSOS, LONGA JORNADAOs últimos dias na vida de Caleb pareciam-lhe pertencer à outra pessoa. Mal podia acreditar que estava abandonando as Colinas Altas em direção a um destino incerto em Tessália, a distante capital do reino, para ser avaliado por magos tão sombrios quanto Vikram. Até mesmo o seu cavalo parecia aborrecido com a cavalgada, balançando a cabeça e relinchando constantemente.Ele sabia que Luther não estava melhor. A ligação do amigo com o pai era profunda. Laços que se estreitaram após Herbie perder a esposa anos atrás, vítima de uma doença do inverno. Desde então, o líder do vilarejo e mentor de seus conterrâneos passara a ocupar na vida do filho o lugar deixado pela mãe.A dor de Luther era evidente para Caleb, bastava olhar para ele: a postura encurvada sobre o cavalo e o olhar distante, exclusivo daqueles que sofrem das doenças da alma. O jovem, antes tão falante, viajava calado. Passava a maior parte do tempo imerso e ausente.Vikram juntava-se
CAPÍTULO XIRASGANDO O CÉUContinente de AsgardO verão asgardiano trazia consigo apenas um ligeiro esgar de calor. Bem como a primavera promovia o desabrochar apenas das flores mais fortes, que no outono se tornariam quebradiças e cairiam derrotadas de forma cruel. Já o inverno, sempre dolorosamente rigoroso, era quem separava e exaltava os fortes, trajando adequadamente os mais fracos com os trajes negros da morte ou brancos do gelo.Baldur mirava seu olhar nos últimos raios preguiçosos do sol que se despedia no horizonte a oeste. À sua frente, a colina gelada inclinava-se rumo ao céu, onde as estrelas, sempre vigilantes, brilhavam timidamente.Seus pés afundavam no gelo até as canelas, mas mesmo em desequilíbrio, ele sequer ameaçava largar o odre de pele de lobo, onde o hidromel dançava conforme seu avanço trôpego.A cabeleira ruiva e desgrenhada era a única proteção de sua cabeça contra os ventos gélidos, que assobiavam vindos de todas as direções, entoando canções quase perceptív
CAPÍTULO XIICONSEQUÊNCIAS E INCONSEQUÊNCIASMar Báltico Estreito.Maia estava debruçada sobre a amurada do grande barco pesqueiro. Observava os pássaros que voavam ao longe sobre a silhueta distante das terras de Stonehand. Ela gostava do cheiro do mar e de ver o sol refletindo sobre o tapete azulado de cristas brancas. Vez ou outra se maravilhava com golfinhos e baleias saltando majestosamente como se almejassem voar. O balançar rítmico do convés sob seus pés e o vento acariciando seu rosto eram tão agradáveis que quase a faziam desejar não voltar para terra, trocando para sempre as ruas claustrofóbicas das cidades do Reino pela imensidão do mar que lhe inspirava tanta liberdade.Ela já tinha se acostumado com as cantorias dos marinheiros e suas canções repetitivas sobre donzelas lhes abrindo as pernas, dragões cuspindo fogo ou as preferidas, sobre piratas intrépidos e conquistadores. Tinha se acostumado até mesmo com o cheiro daqueles homens rústicos, sempre suados, de barbas por f
PRÓLOGOEle já havia brincado antes, gotejando no negrume do universo bilhões de pontos prateados, derramando em sua infinita tela de pintura a explosão de cores das galáxias e nebulosas. Tudo era perfeito, mas o problema com a perfeição era que, invariavelmente, ela se atrelava ao tédio, companheiro fiel daqueles que não tem arestas a aparar e cujas criações são elementos estáticos, de começo e fim determinados. Então ele decidiu criar algo jamais experimentado.Durante as primeiras eras, chamadas por ele de Alvorada do Tempo, o deus Criador findou sua grandiosa obra-prima, um vasto planeta azul, a joia mais bela do cosmo.Satisfeito com a esplêndida criação, decidiu dar vida a seres igualmente maravilhosos para habitá-lo, semeando na terra fértil parte de sua aura majestosa. Assim viu germinar criaturas fantásticas, divindades que não conheciam a morte, deuses menores que governaram o planeta por séculos, cultuando o Criador.Com o passar do tempo, cegos por seus imensos poderes e c
CAPÍTULO IIO CONTRATOContinente dos Três DucadosO homem cruzava as ruas de Dama de Pedra como se levado pelo vento. Ele podia sentir no ar o cheiro úmido que antecedia as últimas chuvas de verão. A noite cobria a velha cidade com um manto espesso. A lua quase não brilhava no céu, encoberta pelas pesadas nuvens de tempestade, resumindo-se a uma auréola opaca por trás do véu de sombras.Dama de Pedra era a maior cidade do ducado de Costaverde, governado pelo duque Olho de Águia Willow. A cidade era enorme, cheia de bairros onde era fácil se perder devido às casas altas e vielas estreitas, que se aglomeravam formando labirintos onde o céu se resumia a uma estreita faixa escura, limitada pelos telhados de madeira ou telhas arredondadas de argila negra.O homem que desafiava a noite e seus perigos era nada mais que um vulto, misturando-se às sombras frias das casas. Seus passos não produziam som. Sua silhueta era engolida pela escuridão. Seu cheiro era nulo. Ele praticamente não existia