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Capítulo 5 - Frente a frente

CAPÍTULO V

FRENTE A FRENTE

Vovô, por favor — Caleb tinha nove anos, estava sentado entre os avós no banco suspenso por correntes que ficava na varanda de casa. Observava maravilhado o espetáculo do pôr do sol que se espremia entre as montanhas, cujos picos cobertos de gelo, aos olhos infantis, pareciam pães polvilhados de açúcar.

Ele encarava o avô com pequeninos olhos suplicantes.

— Por favor, fale mais sobre ele.

Enquanto crescia, tornava-se mais curioso em relação aos pais que não chegara a conhecer. A mãe tinha morrido no parto, em alguma cidade distante. O pai, que o levara para ser criado pelos avós, morreu em circunstâncias das quais Jacob e Rosie jamais falavam.

— Você me lembra muito o seu pai – disse Rosie, com seu olhar sempre bondoso.

— Rosie! — exclamou Jacob em tom de repreensão.

— O garoto merece, não seja tão rabugento.

Voltou para o neto os gentis e inesquecíveis olhos azuis.

— Seu pai foi uma criança muito esperta e inteligente, assim como você. Quando tinha sua idade, ele corria sem parar por estes campos com um pedaço de madeira na mão, imitando uma espada. Imaginava-se como um cavaleiro que derrotava todos os bandidos invisíveis. Era sempre o herói que salvava as donzelas indefesas.

Os olhos de Caleb brilhavam, ora desviados da avó para as pastagens verdes, que começavam a rarear no início do outono, ora voltados novamente para a querida velhinha, que continuava a narrativa das aventuras mirins.

— O nosso Jack, desde pequeno, falava em descer as montanhas. Descobrir o mundo. Tornar-se cavaleiro. Um Lorde!

— Rosie, já chega — insistiu Jacob.

Caleb era jovem demais para entender que o temor do avô, era que junto com as lembranças, vinham também, sem serem convidadas, a saudade e a tristeza, emergindo pelas fissuras das antigas feridas da alma.

— Que mal pode fazer o garoto saber uma coisa ou outra?

— Que mal pode fazer? Você tem coragem de me perguntar isso? — a voz de Jacob se elevou acima dos murmúrios do vento. Acima do som dos animais da fazenda. Acima até mesmo dos pensamentos de Caleb, que ainda traçava diante dos olhos os passos do pai, dançando pelo campo com um graveto nas mãos, enfrentando toda uma variedade de malfeitores.

— Vocês não precisam brigar. Obrigado, vovó. Acho que já sei de tudo o que preciso.

Ouvir Caleb falar daquela forma com os olhos marejados, porém felizes, colocou um fim à conversa.

— Meu amor, algum dia, talvez algum dia... — Rosie alisava inconscientemente seu colar, um pingente de ágata azul preso em uma pequena peça de prata.

Ela não terminou a frase.

***

Caleb abriu os olhos com dificuldade, desvencilhando-se aos poucos do sonho. As pálpebras pesavam toneladas, pareciam cheias de farpas. Olhou para cima encontrando as velhas teias de aranha, dependuradas no telhado de madeira escura. Soube imediatamente que estava em casa.

Foi tomado de súbito pelas lembranças do massacre. Pessoas morrendo à sua volta. O sangue derramado de seus amigos formando poças rasas. Faces tomadas pelo pânico... A morte abraçando seus entes queridos sob a forma de um bando de saqueadores assassinos.

Tentou se levantar, sobressaltado, mas o corpo, que parecia feito de chumbo, não lhe obedeceu. Somente com muito esforço conseguiu sentar-se na cama.

Depois de tudo, era reconfortante estar ali. Na estante, encontravam-se as singelas esculturas, que com algum talento, costumava entalhar em madeira: ursos, cervos, aves, lobos e outros animais. Em um dos cantos estava o baú com seus valiosos tesouros. O delicado colar de ágata azul da avó e um velho chapéu de Jacob. Pequenos pedaços de um passado feliz.

A luz do sol penetrava timidamente pela janela, trespassando a fina camada de poeira dos vidros. Os tons avermelhados indicavam fim de tarde.

Caleb se perguntava como tinha retornado. Não conseguia se lembrar. A caravana tinha viajado por três dias inteiros. Teria sido tudo um sonho? Um pesadelo? Não. Ele sabia que não. Ainda podia ouvir, retumbando em seus ouvidos, o clamor da batalha. O barulho estridente de metal contra metal, e ainda pior, o som seco de metal contra carne e ossos, sob o coro de gargantas desafinadas, de onde fugiam os gritos agonizantes de seus amigos mortos.

Quando conseguiu se virar na cama e colocar o primeiro pé no chão, foi tomado por outro flash — Luther. O amigo à mercê de um homem prestes a decapitá-lo, então algo aconteceu...

Havia calor, um intenso calor…  Uma explosão... O resto era breu, inconsciência.

Colocou os pés no chão e tentou se erguer, mas as pernas falharam mediante seu peso. Caiu pesadamente sobre os joelhos, ao mesmo tempo em que a porta se abria.

— Cal! O que você está fazendo? — Luther precipitou-se para cima do amigo e o ajudou a voltar para a cama.

— Pela misericórdia do Criador, Luther, você está vivo! Que foi que houve? O que aconteceu?

Eram muitas as perguntas. Caleb desejava desesperadamente saber se seus amigos estavam bem. Encontrar Luther era um bálsamo para sua mente abalada. Mas, e quanto a todos os outros, o que teria acontecido a eles? Existia mais algum sobrevivente?

Luther arrastou uma cadeira e sentou em frente à cama. Seu rosto era uma máscara indecifrável. Caleb, que conhecia cada traço no rosto do amigo, não reconhecia aquela expressão. Como poderia haver algo novo em um rosto tão familiar? Ele soube antes mesmo de perguntar. O que estampava as feições do amigo, contorcendo sua expressão, era a mais profunda das tristezas. Caleb procurava desesperadamente pelo jovem Luther, que esbanjava vivacidade, mas o que encontrou foi um homem intrinsecamente abalado.

— Por favor, me diga o que houve — a voz saiu trêmula, hesitante.

 Luther desviou o olhar. Não conseguiu impedir que uma lágrima solitária rolasse pela face, sendo absorvida pela madeira ressecada do chão.

— Estão todos mortos — decretou com irreconhecível voz gutural, arrastada e sombria, como o vento frio e lamurioso que resta após uma tempestade; aquela brisa que penetra nas fendas das casas de madeira, que dobra milharais e arrasta folhas mortas pelo chão, fazendo o fogo das velas e lareiras trepidar como se duvidassem do próprio calor, e provocando um arrepio gélido que aflige diretamente a alma.

— Bailey, Saul… seu pai...

— Eu já disse! Estão todos mortos!

Luther caminhou até a janela e contemplou por alguns instantes, em silêncio soturno, o vilarejo no qual crescera. Em cada pedaço de chão, enraizavam-se memórias felizes, que subitamente transformaram-se em dor. Cada lembrança servia apenas para pontuar que, os personagens que as habitavam, cheios de vida e sorrisos, jamais retornariam.

O que via era uma pintura monocromática. Uma moldura preenchida pelo vazio das coisas que não se repetiriam. Saul negociando suas frutas, falando alto como sempre. Larry Pequeno contando histórias. Os homens voltando da floresta com caça e lenha. Jhon convidando a todos para confraternizar ao redor da fogueira. Herbie, seu pai, chegando com o violão e arrastando as pessoas para dentro da alegria de suas canções.

Uma torrente de lágrimas tomou conta de Luther. Cabeça e mãos apoiadas no vidro. A emoção transbordava incontida entre soluços ofegantes.

Ele acreditava que o povo de Colinas Altas jamais permitiria que um instrumento fosse tocado ali novamente, emitindo alegres notas musicais. Não haveria música que não fosse fúnebre ou sorrisos que fossem plenos. Felicidade tornar-se-ia tabu por aquelas paragens, uma palavra proibida.

Todos tiveram perdas severas. Os que não perderam familiares perderam amigos ou amantes, e com eles, pedaços de si mesmos, partes palpáveis de suas próprias almas, que demorariam um bom tempo para curar.

— Eu sinto muito pelo seu pai — Caleb queria dizer que Herbie tinha sido como um pai para ele, mas não conseguiu. No entanto, sabia que era desnecessário. A amizade dos dois transcendia a necessidade de meras palavras. Eram transparentes um para o outro.

Luther se virou, enxugava as lágrimas. Sentou-se novamente e encarou o amigo. Só então, Caleb percebeu os olhos vermelhos, adornados por olheiras profundas. O amigo parecia carregar todo o peso do mundo nas costas.

— Você sabia que dormiu por uma semana?

— Está falando sério? Uma semana? – sobrancelhas erguidas em surpresa.

— Fiquei com medo de você nunca mais acordar. Depois de tudo que perdi, se você não voltasse, eu não saberia o que fazer, mas o mago tinha razão, você acordou exatamente após sete dias.

— Mago? — Caleb arregalou os olhos, como se tivesse visto um fantasma.

— O homem que nos salvou e ainda curou a sua ferida — apontou para a perna onde o amigo tinha sido alvejado por uma flecha.

Ao puxar o tecido da calça ele pôde ver a marca, já quase desaparecida, como se fosse um ferimento de meses atrás.

— Ele disse que você teve sorte da flecha não ter quebrado o osso e de não estar envenenada, do contrário, não poderia salvá-lo.

— Não me lembro de nada disso. Esse mago, onde ele está?

— Ele disse que viria quando você acordasse. Que eu não devia deixar ninguém se aproximar de você antes dele voltar.

— Sou seu prisioneiro agora?

— Teoricamente, sim – Luther se permitiu um ligeiro sorriso entristecido.

— Cara, eu estou morrendo de fome.

Luther deu um salto da cadeira.

— Pelo Criador! Esqueci completamente! O mago disse que isso aconteceria e que você precisaria comer assim que acordasse. Fique quieto aí.

Sem esperar resposta, Luther desapareceu no corredor. Voltou momentos depois trazendo uma bandeja com frutas, leite e pães. Os olhos de Caleb brilharam ao contemplar os alimentos. Ele ajeitou na cama o corpo dolorido e comeu como nunca, mal mastigando os alimentos que pareciam nem chegar ao estômago, e que estavam longe de preencher o vazio.

Ele comeu sob o olhar impressionado de Luther, que nunca tinha visto tamanha voracidade.

— Que estranho — Caleb olhava para as próprias mãos —, meu corpo está ficando menos pesado.

Terminada a generosa refeição, já se sentia outra pessoa. Levantou da cama sem ajuda e caminhou pelo quarto. Suas forças estavam renovadas de maneira quase mágica, mas ainda tinha fome.

— Vamos descer. Quero comer mais. Preciso comer mais.

— Você só pode estar brincando. O tanto que comeu alimentaria os sete filhos dos Parsons por uma semana inteira.

— Só sei que ainda preciso comer – Caleb deu de ombros.

Luther seguiu o amigo pelo corredor até a escada, onde Caleb parou subitamente.

— Que foi que houve?

— Tem um homem aqui.

— Deve ser ele, o mago. Não se preocupe, não vai nos fazer mal.

Caleb reiniciou a descida, agora devagar, degrau por degrau. Seus olhos fixos no homem que o encarava de volta. O rosto do desconhecido eclipsado pelas sombras do capuz das vestes negras, velhas e puídas. Na mão trazia um cajado de madeira escura e reluzente.

O mago deu um passo à frente e puxou o capuz revelando um rosto austero. A pele era de um branco opaco, pálido, que Caleb jamais havia visto igual. Os olhos eram safiras reluzentes que pareciam ter vida própria. O cabelo, loiro palha, estava atado em uma trança desleixada.

Aquele visual obscuro e descuidado, somado ao rosto duro e ao inquietante olhar de safiras celestes gerava uma sensação inominável, que se espalhava pelo corpo fazendo arrepiar os pelos da nuca e provocando uma ligeira coceira sob a pele. A resposta para aquele sentimento revelou-se para Caleb com a clareza de uma única palavra, cantada em coro por todos os seus sentidos: perigo. Aquele homem exalava um adocicado aroma de perigo.

A casa tinha um espaço amplo e organizado. Tudo mantido como Jacob e Rosie gostavam. As pinturas ainda decoravam as mesmas paredes sobre a lareira. Mesa, cadeiras, estantes e o velho tapete, tudo no mesmo lugar em que sempre estiveram. Mover qualquer uma daquelas peças revelaria manchas claras no formato exato de suas medidas, comprovando que sempre estiveram ali.

O mago caminhou na direção de Caleb e esperou que ele terminasse de descer a escada. Sem dizer palavra alguma ele rodeou o rapaz, o observando de cima a baixo. Media-lhe cada traço.

Caleb não pôde deixar de notar o ar selvagem daquele homem. Seu rosto parecia endurecido além do normal. Quando os olhares se cruzavam, ele sentia-se acuado. Cada partícula de seu corpo desejava que aquele breve instante tivesse fim.

— Eu soube que salvou nossas vidas, preciso agradecer — Caleb conseguiu enfim dizer.

O mago se manteve calado.

— Muito obrigado. Se houver alguma maneira de recompensá-lo, basta dizer.

Tudo que o mago fez, foi manter o peso de seu olhar penetrante sobre Caleb.

— Eu tenho muitas perguntas sem resposta...

O homem sorriu com desdém, revelando dentes muito brancos.

— Você as merece tanto quanto eu — falou pela primeira vez, imponente. Suas palavras emergiram com um fortíssimo sotaque nortista.

— Seu nome é Caleb Deepforest?

— Sim.

— Você sabe o que fez, Caleb? – O mago estreitou os olhos, procurava como um perdigueiro por sinais de hesitação.

— Não, senhor. — acrescentou, sentindo-se compelido a demonstrar respeito. O homem o encarou por vários segundos. Caleb não suspeitava, mas sua vida estava em jogo. Um deslize e sua vida seria ceifada, sem hesitação, pois aquilo era parte do trabalho.

— Onde estão os seus pais? Quem são eles?

— Meu pai se chamava Jack Deepforest. De minha mãe, nada sei. Fui criado pelos meus avós, que também não sabiam.

— Isso é bem conveniente.

— Desculpe, mas não estou entendendo.

— Você possui sangue mágico correndo em suas veias.

Sangue mágico. Caleb repetiu para si mesmo. Só pode haver algum engano. O mago coçou o queixo, alisando a barba de alguns dias. Tornou a dar voltas ao redor de Caleb, ainda medindo-o, centímetro a centímetro.

— Qual o seu nome? — arriscou Caleb.

O homem ficou em silêncio, como que meditando se precisava ou não responder à pergunta.

— Vikram — falou como se há muito tempo não precisasse repetir o próprio nome.

— Luther contou que você curou minha perna. Acho que devo agradecer por isso também.

O mago o olhou com indiferença.

— Na verdade, ele fez muito mais do que isso — interrompeu Luther pela primeira vez. — Quando estávamos cercados pelos saqueadores, choveram flechas mágicas sobre eles, acabando com vários de uma só vez e colocando muitos outros para correr. Ele derrotou também o outro mago, o líder daqueles assassinos, e depois de curar a sua perna, me ajudou a trazê-lo para casa.

Depois de considerar aquelas palavras, Caleb voltou seu olhar para Vikram de maneira renovada. A insegurança ligeiramente afastada.

— Temos muito que conversar, garoto — a voz grave reverberou mais uma vez pela casa.

Vikram atravessou a sala e sentou em uma cadeira. As pernas foram cruzadas e o cajado deitado sobre a mesa. Acendeu um cachimbo e indicou um dos assentos para Caleb, como se aquela fosse a sua casa e o jovem, seu convidado. Luther também fez menção de se sentar, mas antes olhou para o mago, que anuiu.

Caleb olhava-o fascinado, imaginando o que aquele homem com cheiro de grama e ervas era capaz de fazer. As histórias contadas ao redor da fogueira, de repente já não eram apenas histórias. Lembrar-se delas o colocou em prontidão. Pois se tudo aquilo era verdade, o mais sábio a fazer seria temê-lo.

— O senhor disse que possuo sangue mágico, por quê? – perguntou reunindo coragem.

Vikram deu uma longa tragada no cachimbo. Soltou pelo nariz e pela boca uma fumaça ocre que pairou entre eles desenhando formas indistintas.

— Você fez magia, Cal. Eu fiquei aterrorizado, mas no fim, isso acabou nos salvando — declarou Luther.

— Magia, eu? Isso é impossível — Caleb sorriu, mas foi o único.

— Você fez muito mais do que um simples truque, garoto — pronunciou-se Vikram, a voz dura e implacável como o trovão. — Você invocou uma criatura que muitos Mestres do Fogo, mesmo após anos de treinamento, não conseguem conjurar. Por isso dormiu por tanto tempo e acordou morrendo de fome. Também explica essa mecha de cabelos brancos.

Caleb puxou os cabelos de encontro aos olhos, procurando pela tal mecha e constatou que o mago tinha razão. O grisalho destoava sob o mar de cabelos negros e desgrenhados.

— Sua falta de preparo o fez queimar a própria vida. Se a invocação durasse mais tempo, seu corpo não teria aguentado.

— O que isso quer dizer?

— Você estaria morto.

O olhar do jovem perdeu o foco. Mesmo incrédulo, ele se permitiu viajar naquelas palavras. Magia? Logo ele, que mal tivera contato com o mundo fora de seu povoado. Considerava-se uma pessoa ordinária do campo, um amante da natureza. Não podia ser um mago com o poder de invocar criaturas.

— Isso não faz sentido algum — disse por fim —, como eu posso ter feito magia?

— Você fez, e eu estou aqui para julgá-lo.

A frase pegou os jovens de surpresa. O teor de ameaça contido naquelas palavras fez o medo brotar, se expandindo do estômago embrulhado para o resto do corpo.

— Julgar... — balbuciou Luther.

— Fazia meses que eu perseguia aquele grupo. Seu líder deixou o Arcanum e usou o conhecimento e poder para saquear e matar, semeando o caos. Meu trabalho é caçar e exterminar aqueles que abusam do uso da magia. Sou o que chamam de Executor.

Fez uma pausa, permitindo que os rapazes absorvessem suas palavras.

— Já tenho um veredito sobre você. Claramente não se trata de um renegado, e sim de um recém-desperto, que precisa ser conduzido até o Arcanum para receber o treinamento adequado.

— Desculpe, mas essas coisas não são para mim. Ainda não consigo nem acreditar que fiz o que estão dizendo, e mesmo que o tenha, meu lugar é aqui. Não posso ir com você! — Caleb foi taxativo. O mais firme que conseguiu mediante o perscrutador olhar de safiras do mago.

— Creio que não fui claro o suficiente — começou Vikram, o sotaque lhe permitia um tipo único de frieza. A mão agora mais próxima ao cajado —, qualquer pessoa que despertar para a magia deve ser levada ao Arcanum. Caso se recuse, será considerado um renegado e será sumariamente executado.

Caleb sentiu o corpo gelar com o frio súbito que percorreu a sala. A noite arranhava as janelas com suas garras, forçando passagem pelos vidros e varrendo o resto da avermelhada luz diurna, que minguava estreita no horizonte.

— Eu entendo. Não há uma escolha. Nunca houve.

Caleb não tinha dúvidas de que uma recusa resultaria em sua morte, bem ali, na sala de sua casa. Estava estampado na face do mago. Seria para ele apenas um fato corriqueiro de mais um dia de trabalho.

— Sempre há uma escolha. A morte é uma opção, algumas vezes melhor do que as coisas que nos aguardam em vida — decretou o mago.

Luther não podia mais suportar ficar sentado diante daqueles dois. Tratou de acender os lampiões para iluminar a casa, como se espantando a escuridão, pudesse devolver a luz aos contornos daquela conversa, que se tornara tão sombria.

Caleb podia sentir que Vikram era um homem acostumado a tratar com os melindres da morte. Desde a maneira como seu corpo se alinhava, despreocupado, falando em matá-lo como se aquilo não fosse nada demais, ao cheiro que ele exalava. A princípio, Caleb achou que aquele cheiro característico provinha do mato, que tinha se apegado ao mago durante suas andanças, mas depois do rumo que a conversa tomou, ele lhe atribuiu uma nova origem. Aquele cheiro era de cemitério. Da terra de minhocas e vermes que é revirada e está pronta para receber os mortos. Cheiro da grama que nasce sobre os túmulos e dos crisântemos que são arranjados em coroas e depositados sobre os defuntos. Vikram carregava o exato odor da morte.

— Estamos acertados ou você pretende criar problemas? — a mão do mago agora a centímetros do cajado.

— Estamos acertados — concordou Caleb, derrotado.

— Isso é um bom começo. — falou o mago, minimamente satisfeito — Agora preciso testá-lo.

Ele tirou um pequeno frasco do bolso interno de sua camisa e o balançou fazendo o líquido rodar.

— Beba isto.

— O que é?

— Beba logo e não faça perguntas. Quando terminarmos, talvez eu lhe explique.

— Talvez? — protestou Caleb, olhando para o líquido enevoado. Vikram se impacientava.

— Deixarei uma coisa clara, garoto. Meu trabalho é levá-lo ao Arcanum. Responder às suas perguntas e instruí-lo, não faz parte das minhas obrigações. Isso caberá aos seus mestres. Então, beba logo!

Caleb anuiu e levou o líquido à boca. Surpreendeu-se ao perceber que a bebida não tinha gosto ruim, na verdade não tinha sabor algum. Enxugou os lábios sob o olhar atento de Luther, que estava claramente preocupado.

— Estou bem — disse, tentando tranquilizar o amigo, que não notou nada de diferente no jovem, mas Vikram estava petrificado. O rosto ainda mais pálido do que o normal. Olhava para o jovem com genuíno espanto.

— O que foi? — quis saber Caleb, preocupado, sem notar a aura de energia que emanava de si mesmo.

— Não é nada — Vikram tentou mascarar sua surpresa, mas era tarde. Seus olhos não se desgrudavam da aura dourada que envolvia o corpo de Caleb.

Ele não revelou que o intuito daquela poção era aumentar exponencialmente a aura de um mago. No entanto, existiam apenas cinco variações naturais: violeta, vermelho, azul, verde e preto, de acordo com a aptidão mágica desenvolvida.

Recuperando-se do espanto de presenciar a emanação de uma inédita aura dourada, algo jamais imaginado, Vikram sacou uma bolsa de seu cinto e a virou sobre a mesa, deixando cair cinco pequenas placas de metal. Em cada peça havia uma palavra, cuja grafia encontrava-se em uma língua antiga.

Caleb não fazia ideia do que significavam, mas logo notou que os entalhes em alto-relevo eram um trabalho magnífico. Suas esculturas em madeira eram brincadeira de criança perto daquilo.

Estendeu a mão para uma das plaquetas, mas deteve-se esperando o aval de Vikram, que anuiu com um breve movimento de cabeça.

O jovem tentou levantar uma das peças, sem êxito. O pequeno objeto parecia pesar toneladas. Não conseguiu movê-la um centímetro sequer.

— Eu não posso levantá-la. Como isso é possível? Uma coisa tão pequena não devia pesar mais do que algumas gramas.

— É exatamente o que elas pesam — afirmou o mago.

O olhar de Luther indicava confusão. Se a situação não fosse tão séria, ele pensaria que Caleb estava brincando. Chegou a estender a mão para tocar umas das pedras, mas recuou mediante o encarar de Vikram.

— Este é um teste importante. Estas insígnias são embebidas em uma magia profunda e muito antiga — o olhar penetrante colaborava com as palavras. — Cada mago é capaz de controlar apenas um elemento específico. O teste nos revelará onde você se encaixa.

— Desculpe, mas não acho que seja possível mover qualquer uma dessas plaquetas — Caleb estava incrédulo após falhar também com todas as demais.

Você será um Arcanista e poderá se tornar muito poderoso. Além do mais, há essa inexplicável aura dourada, pensava Vikram, ainda acreditando que seus olhos pudessem ter lhe pregado uma peça.

Após a invocação de um DemoonV’uur, um dos mais poderosos elementais do fogo, ele não tinha dúvidas sobre qual elemento Caleb seria capaz de controlar. O teste era apenas protocolo. Em ocasiões muito raras, um mago era capaz de controlar um segundo elemento, entretanto, nada mais que uma sombra através da qual era impossível realizar grandes feitos. O teste também servia, é claro, para alertar sobre o surgimento de uma aura negra, ligada aos Necromantes, que há muito foram expulsos do Arcanum e até hoje eram caçados por seus ideais obscuros. Pessoas que despertassem a aura negra tinham, invariavelmente, sua magia ceifada entre as paredes do Arcanum.

— Você vai conseguir — afirmou o mago.

—Tudo bem, o que devo fazer? — quis saber Caleb.

Usando o interior da bolsa como luva, um veludo que emitia um brilho pálido, Vikram alinhou as cinco placas em círculo, movendo-as como se não tivessem peso algum, e ordenou que Caleb colocasse a mão direita no centro.

— Essa bolsa... Tem algo estranho... — Caleb tentou dizer.

— Sem ela eu não conseguiria mover as insígnias. Exceto aquela referente ao meu próprio poder — explicou Vikram.

Luther assistia à cena como se estivesse sonhando. Tudo era surreal. Seu estômago dava voltas. Ainda não acreditava que Caleb tinha feito tanta força e não conseguira mover as diminutas placas.

— Você precisa se concentrar. Nenhum pensamento deve passar por sua cabeça, além desejo de mover as insígnias. Visualize-as em sua mente. Aquela que entrar em ressonância com a sua aura irá se mover.

Caleb respirou fundo, concentrando-se. Não sabia o que era aquela coisa de aura, mas seguiu as instruções. Enquanto isso, Vikram não tirava os olhos do manto dourado de energia pulsante.

O rapaz abriu os olhos e viu que as plaquetas estavam todas no mesmo lugar.

— Eu não consigo. Não adianta.

— Pense na placa se movendo — dizia Vikram —, o poder de um mago vem de sua mente. Fazer magia é moldar os elementos à sua vontade. Concentre-se, deixe fluir. Não pense, faça. Não imagine, seja.

A placa referente à palavra Arcanista moveu-se ligeiramente, dois tímidos centímetros, exatamente como Vikram esperava. Três ou quatro centímetros geralmente eram suficientes para exaurir os poderes recém-despertos.

Arcanista, como eu imaginava. Não há nada de estranho aqui além dessa intrigante aura dourada, pensou Vikram .

— É isso, você conseguiu. Já está bom, pode par...

A frase morreu na garganta do mago ao ver que as outras quatro placas também se moviam para cantos opostos, como se tivessem vida própria, incluindo a temida insígnia dos Necromantes. Cinco, sete, dez centímetros. As insígnias de Clérigo, Paladino, Arcanista, Feiticeiro e Necromante chegaram até a beirada da mesa. Cairiam no chão se Vikram não tivesse interrompido.

— Chega! — gritou, assustando os jovens, que olharam para ele com olhos arregalados. — Chega — repetiu sem perceber, suando, incrédulo. Um leve tremor trespassou seu corpo. Um misto de excitação, medo e ansiedade combinavam-se, criando algo que ele jamais experimentara.

Vikram estava diante do inimaginável. Maldito! Que tipo de criatura é você, afinal?

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