Frio

Analia

O som do carro chegando é inconfundível. Primeiro, o ronco do motor que ressoa pelas montanhas cobertas de neve. Depois, as vozes abafadas dos senhores Krueger. Mas eu sei que ele está lá. Ele sempre está lá.

Nicoll voltou para casa a tempo do Natal, o que significa que o desfile de horrores também está para começar. O ritual. A celebração grotesca que me aterroriza desde a infância. Decido que não vou sair. Não hoje. Não com ele por perto.

Sento-me em frente à lareira, tentando me aquecer com o pouco calor que ela oferece. Mas o frio parece entrar por todos os cantos da casa, como se fosse uma extensão dele. O som da madeira estalando no fogo deveria ser reconfortante, mas, em vez disso, me lembra o estalo de passos na neve – pesados, firmes, inevitáveis.

Tento me distrair com um livro, mas as palavras dançam nas páginas sem sentido. Minha mente insiste em retornar àquele dia. A visão dele com aquela máscara grotesca, pintada como uma caveira, sua silhueta alta destacada contra a escuridão. A lembrança parece maior do que foi, mais assustadora do que deveria ser. Talvez eu esteja exagerando. Talvez minha mente infantil tenha distorcido tudo. Afinal, ninguém pode ser tão maligno assim. Não pode...

Respiro fundo e decido ignorar essas memórias. É o passado, e o passado não pode me alcançar. Meu pai é meu protetor, mesmo com seu jeito duro e quase carrancudo. Depois que minha mãe foi embora, fugindo do frio da Áustria e, mais ainda, da gente daqui, ele ficou ainda mais rígido. Mas eu sei que é medo. Medo de perder mais alguém. E esse medo o tornou o homem que é hoje. Eu entendo.

Mesmo decidida a esquecer, continuo dentro de casa, recusando-me a sair. Faço o almoço, preparo uma sobremesa simples e volto para o meu lugar em frente à lareira. Tento me distrair, mas meus ouvidos estão atentos a cada som lá fora. É inevitável.

De repente, gritos cortam o silêncio do lado de fora. Não são sons comuns. Há algo... estranho neles. Não consigo entender o que dizem, e meu coração acelera. A curiosidade me chama para a janela, mas o medo é mais forte. Não me atrevo a olhar.

Seguro o livro com força, como se as páginas fossem um escudo capaz de me proteger de tudo que está lá fora. Tento convencer a mim mesma de que são apenas os preparativos para o ritual. É isso. Só isso. Mas a inquietação cresce. E eu sei, no fundo do meu ser, que algo está diferente este ano. Algo mudou. E não é para melhor.

Estou no mesmo lugar, em frente à lareira, tentando fingir que o mundo lá fora não existe, quando a porta range e abre lentamente. É Marlene, uma das funcionárias da casa dos senhores Krueger. Ela entra sem cerimônia, com um olhar ansioso e mãos geladas, esfregando os dedos para afastar o frio.

— Isso é presente pra você, Analia — diz ela, segurando uma grande mala. — A senhora Edith disse que é presente de Natal. Quer que você vá até ela. Agora.

Eu olho para o presente, depois para ela, sentindo o peso das palavras. Senhora Edith, mãe de Nicoll. Não é uma simples chamada. Nada com aquela família é simples.

Diga que estou dormindo, Marlene. Não posso ir lá. — Minha voz sai mais baixa do que deveria, mas cheia de urgência. Quero que ela entenda sem precisar que eu explique.

Marlene suspira, seus olhos estreitando-se. Ela se aproxima um pouco mais e abaixa a voz, como se temesse que as paredes escutassem.

O senhor Nicoll foi caminhar na montanha. Ele não está lá agora. Aproveita. Ouviu?

Meu estômago revira ao ouvir o nome dele, e algo dentro de mim se recusa a acreditar que é seguro.

Vi. — Tento esconder minha hesitação. — Mudou, né?

Marlene balança a cabeça com força.

Mudou. Já era alto, ficou mais. Mas agora tá... forte. E o olhar dele? Menina, credo, parece o de um demônio.

Eu tento rir, mas é forçado. — Mas demônios não existem, Marlene.

Passo a mão na mala, mas não me atrevo a abrir. O tecido é macio, quase luxuoso, e parece tão fora do lugar na minha casa simples quanto um lobo entre cordeiros. Marlene observa meus movimentos, impaciente.

Vá vê-la logo, menina. É melhor. Você sabe que aqui não tem "não" para os Krueger. Não tem. E você não é melhor do que ninguém.

Seus olhos sérios me encaram, como se ela já previsse o que poderia acontecer se eu recusasse.

Eu sei disso, mas... eu não quero ir naquela casa com ele lá. Eles me dão medo, Marlene. Você sabe disso.

Minha voz quase falha, cheia de um temor que nunca consigo esconder quando o assunto é Nicoll e sua família.

Marlene suspira, esfregando as mãos outra vez, como se o frio que sentia não fosse só do inverno. — Eu sei, Analia. Sei bem. Mas não tem o que fazer. Vá enquanto só está a senhora lá. Rápido, menina, ande!

Ela me empurra de leve, insistindo. Sinto um nó na garganta. Por mais que eu queira me encolher em um canto e fingir que não existo, não há escapatória. As ordens da senhora Edith são como o som do sino na aldeia: inescapáveis e carregadas de poder.

Eu respiro fundo, tentando conter o tremor nas mãos. Não era só o medo da casa, era dele. Mesmo que ele estivesse longe, caminhando nas montanhas, sua presença parecia se arrastar pelas paredes e sussurrar nos cantos mais escuros.

Vai, Analia. Antes que piore.

Sem mais desculpas, aperto a mala contra o peito e sigo em direção à casa principal. Cada passo parece levar comigo uma parte do meu ar.

Dêmonios não existem..

Ela me lança um olhar sério, como se esperasse que eu acreditasse nela sem questionar. — É, Analia, mas eu já não tenho tanta certeza.

E eu também não tinha. Não tinha 

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