Minha

Nicoll

Eu caminhei pelo quarto dela naquela noite. Os passos eram silenciosos, como se o próprio chão soubesse que era inútil tentar me trair. Analia era minha. Sempre foi. Desde o dia em que a escolhi, quando tinha quatorze anos. A garota das montanhas sombrias da Áustria me pertencia, mesmo que ela ainda não soubesse disso.

Nunca fui um anjo, nunca me vesti como um. Nasci com uma mensagem ruim gravada no sangue dos meus ancestrais. Gélido. Perigoso. Eu era apenas mais um Krueger, um herdeiro dos legados mais nefastos que andavam sobre essas terras antigas. Não buscava redenção porque sabia que ela não existia para mim. Somente o poder era meu, e agora, finalmente, eu tinha todo ele em minhas mãos.

E Analia... ah, Analia. A doce criança medrosa que fugia de mim como um cervo assustado. Ela corria, é verdade, mas estava certa em cada passo que dava. Ela sabia o que eu era, mesmo sem entender completamente.

Eu era um demônio selvagem. Um predador das sombras alpinas. E ela estava na mira de alguém capaz de tudo, de qualquer coisa, para ter o que desejava. Ela era minha escolha. A minha presa. E isso era irrevogável.

Até mesmo os empregados da casa se afastavam quando eu passava. Era como se eles soubessem algo que nem eu compreendia totalmente. Nunca toquei em nenhum deles, nunca precisei levantar a mão para impor meu domínio. Mas parecia que os moradores daquela montanha podiam ver o que eu realmente era: o demônio oculto dentro de mim, algo que nem o frio glacial das terras alpinas conseguia esconder.

Eu estava andando pelo meu quarto. A lareira apagada deixava o ambiente gelado, mas eu não sentia frio. Estava nu, segurando um copo de um líquido vermelho e espesso. Gostava de bebidas, mas elas nunca tinham o poder de me embriagar. Eu era imune à fraqueza que elas prometiam trazer. Quase uma rocha diante delas.

Parei diante da janela, observando o pai de Analia do lado de fora, trabalhando como sempre, com o peso do mundo em seus ombros. O vento sibilava lá fora, mas aqui dentro só havia o silêncio, cortado apenas pelo som do líquido se movendo no meu copo.

Foi então que a porta se abriu de repente. A voz de Marlene ecoou pelo quarto, um grito de puro terror.

Meu Deus!

Ela parecia ter visto um monstro. Talvez tivesse. Nem me preocupei em me virar ou me cobrir. Continuei exatamente onde estava, com os olhos fixos na paisagem lá fora.

Ouvi seus passos apressados descendo as escadas, cada um mais apavorado que o outro. Não a segui, não disse nada. Não precisava.

Fiquei ali, imóvel, olhando pela janela, com um sorriso discreto nos lábios. A noite estava apenas começando.

Vesti uma bermuda e desci as escadas, descalço. Gostava de sentir o gelo sob meus pés, da temperatura cortante, da sensação de controle absoluto que o frio me dava. Era como se o gelo me moldasse, como se eu e ele fôssemos feitos da mesma matéria.

Ao chegar lá embaixo, vi Marlene me olhar com o mesmo medo que sempre carregava. Ela correu assim que me viu, murmurando algo para si mesma enquanto desaparecia pela porta da cozinha. Aquela mulher ainda seria um problema. Língua solta, curiosa, e sempre na busca por encrenca onde não deveria.

Atravessei o pátio até onde Jürgen, o pai de Analia, cortava lenha com movimentos firmes e precisos. Parei ao lado dele, meu corpo imponente contrastando com o seu esforço constante. Ele me viu pelo canto do olho e hesitou por um momento antes de continuar seu trabalho.

Senhor Jürgen.

Minha voz era baixa, mas carregava a gravidade de quem sabe que não precisa gritar para ser ouvido. Ele parou o que estava fazendo e virou-se lentamente para mim, o machado ainda em mãos.

Senhor Nicoll... — Sua voz saiu mais tensa do que ele pretendia.

Eu sorri, aquele sorriso que sabia que incomodava. — Sabe o que está acontecendo, Jürgen, e fica fingindo que não sabe. Então, me diga: o que vai escolher? Ser o meu inimigo? Sabe o que acontece com os que me enfrentam. Ou vai me entregar o que é meu por livre e espontânea vontade?

Ele engoliu em seco, a maçã do rosto pulsando de tensão. Seus olhos tentaram sustentar os meus, mas não conseguiram. Ele era corajoso, mais do que muitos homens, mas mesmo a coragem tem limites. Eu era esse limite.

Eu... não sei do que está falando, senhor.

Não sabe? Tem certeza?

A pergunta ficou no ar, pesada, como uma sombra pairando sobre ele. Ele apertou o machado com mais força, mas não respondeu. Tentou fingir que não entendeu, mas o suor que brotava em sua testa, mesmo no frio, dizia o contrário.

Jürgen era um homem duro, resistente como as montanhas ao redor. Mas eu sabia o que queria, e nada no mundo seria capaz de me deter. Eu queria Analia. A garota medrosa, aquela que tremia e chorava ao me ver. Não importava. Ela era minha desde o momento em que a escolhi.

Lágrimas, gritos, desespero. Nada disso me comovia, muito menos o sangue. Nada mudaria minha decisão. Ela seria a senhora destas terras frias. Minha senhora. Querendo ou não.

Saí para caminhar em minhas terras. O peso da noite começava a cair sobre as montanhas, e o frio cortava como lâminas invisíveis, mas para mim era reconfortante. O gelo era meu elemento, tão familiar quanto o sangue que corria em minhas veias.

Enquanto caminhava, recebi olhares furtivos. Algumas crianças corriam para longe, suas pequenas botas afundando na neve enquanto fugiam como se eu fosse o próprio Krampus. Mulheres fechavam as portas de suas casas com pressa, como se temessem que meu olhar pudesse atravessar as paredes. Alguns faziam o sinal da cruz discretamente, quase temendo que eu visse.  

Esses gestos não me incomodavam. Na verdade, eles me divertiam. Eles sabiam quem eu era, ou pelo menos pensavam que sabiam. As lendas das montanhas alimentavam seus medos, e eu nunca me preocupei em negá-las. O que era o medo senão a ferramenta mais poderosa de todas?  

Me embrenhei na floresta escura, afastando-me das casas e das pessoas. Precisava respirar longe deles. Aqui, no meio das árvores altas e do silêncio gelado, eu encontrava paz. Apenas o som dos galhos rangendo ao vento e a neve se acumulando ao meu redor.  

A floresta era minha. Assim como Analia seria. Aqui, no coração dessas terras frias e sombrias, onde ninguém ousava me desafiar, eu fazia minhas escolhas. O destino dela já estava traçado. Assim como o meu. 

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