Anália
Eu caminho até a casa principal, tremendo como uma folha ao vento, com a mala ainda apertada contra o peito. Meus passos ecoam no chão de madeira polida, cada som mais alto do que eu gostaria. Quando paro diante da senhora Edith, meu coração parece sair pela boca.
— Mandou me chamar, senhora? — pergunto, tentando manter a voz firme, mas ela treme junto comigo.
Ela me encara com seus olhos frios, aquele olhar de superioridade que me fazia querer desaparecer. Então ri, um som baixo e zombeteiro, e responde:
— Mandei, criança medrosa. Não precisa tremer. Como está?
— Bem... posso ir? — A pergunta escapa antes que eu possa evitar, carregada de uma urgência que ela percebe imediatamente.
Ela ri de novo, com mais gosto, como se minha inquietação fosse a coisa mais divertida que já viu. Eu não queria ficar ali. Não queria mesmo.
— Queria ver como está. Está ainda mais bonita. Agora eu entendo.
Fico paralisada. Ela entende o quê? Eu não entendia nada. Nada, nada...
— Terminou seus estudos?
— Não. Meu pai não deixou eu ir mais à escola, e fiquei por aqui mesmo. Cuido da casa, limpo, cozinho...
— Não vai precisar de muito estudo mesmo, fique tranquila. — Sua voz soa quase condescendente, mas com uma pontada de algo que não consigo decifrar.
— Sim, senhora.
Ela me interrompe, franzindo a testa. — Não me chame de senhora. Me chame de mamãe. Pare de me chamar de senhora.
Meus olhos se arregalam de surpresa, e engulo em seco. Mamãe? Não entendi nada daquilo. Nada. Todas as outras funcionárias a chamavam de senhora. Por que queria que eu a chamasse de "mamãe"?
Eu não era a criança adorada que ela tratava bem, e nunca seria. Então, por quê? Por que ela queria que eu a chamasse assim? A pergunta queimava na minha mente, mas a coragem para perguntar simplesmente não existia.
Eu era uma criança medrosa, isso era verdade, e naquele momento me sentia ainda menor diante dela. Senhora Edith, ou “mamãe”, como agora queria ser chamada, parecia se divertir com o meu desconforto.
— Quero que deixe de usar as roupas que usa e passe a vestir as roupas da mala.
Olhei para ela, confusa, o medo apertando no peito. — Posso perguntar por quê?
Ela inclinou a cabeça levemente, um sorriso enigmático nos lábios. — Pode, mas não vou responder. Não agora. Você não está preparada para ouvir.
Cada palavra dela parecia um enigma que eu não queria desvendar. Antes que eu pudesse insistir, ela se levantou, ereta e imponente como uma rainha.
— Venha jantar comigo.
Engoli em seco e balancei a cabeça. — Meu pai não permite...
Ela me interrompeu, sua voz cortante. — Falo com ele.
Eu respirei fundo, tentando juntar coragem. — Ele vai ficar irritado comigo, senhora.
Ela me lançou um olhar firme, como se já tivesse decidido tudo. — Não vai.
A verdade era que eu não tinha forças para contestar. Sua presença era avassaladora, esmagadora.
— Posso ir... por favor? — Minha voz saiu fraca, quase implorando.
Antes que ela respondesse, escutei passos ecoando pelo corredor. Meu coração disparou.
— Pode, pode ir.
Saí pela outra porta, o mais rápido que pude, antes que ele me visse. Ainda assim, enquanto corria, o som deles ficou comigo. Não passos. Risos. Ela e Nicoll estavam rindo, mas não era um riso de alegria. Era algo diferente, algo mais frio. Não era escárnio, mas também não era diversão comum.
Eu não entendia. Nada fazia sentido. O que eles queriam de mim?
Cheguei em casa com o coração disparado, fechei a porta e me joguei na cama, puxando as cobertas sobre mim como se fossem um escudo. Mas, mesmo debaixo delas, o som do riso deles ecoava na minha mente.
Fiquei ali na cama, encolhida debaixo das cobertas como se elas pudessem me proteger do mundo lá fora. Por sorte, não precisei ir ao jantar naquela noite. Uma febre intensa me atingiu, uma febre que eu sabia que não era doença. Era medo. Medo puro, queimando como fogo dentro de mim.
Meu pai, preocupado, veio me medicar. Ele murmurava palavras reconfortantes, mas seus olhos mostravam outra coisa: preocupação, ou talvez o mesmo temor que eu sentia. Depois de me dar o remédio, ele apagou a luz e saiu do quarto, deixando-me sozinha com meus pensamentos.
A febre trouxe um sono pesado, mas inquieto. No meio da noite, tive a estranha sensação de que alguém entrou no meu quarto. Meus olhos não se abriram, mas eu sentia... passos suaves, quase imperceptíveis. O som era baixo, mas ainda assim perturbador.
Ouvi o leve estalo da lareira, como se alguém a ajustasse, e logo em seguida senti um toque frio na minha testa, como se verificasse minha temperatura. Não era meu pai. Eu sabia que não era. A presença era diferente. Silenciosa, mas opressora.
Quando finalmente acordei, o sol tímido do inverno já entrava pela janela, e o quarto estava vazio. Meu pai não estava ali, e ninguém parecia ter entrado durante a noite. Talvez tivesse sido um sonho. Um sonho causado pela febre e pelo medo.
Felizmente, eu estava sozinha. Longe de Nicoll e da mãe dele. Longe daquela gente estranha e poderosa que parecia ter o controle de tudo ao meu redor. Não queria vê-los. Não queria estar perto deles. Só queria desaparecer.
Rezei para São Leopoldo, o santo da Áustria, aquele que dizem proteger os aflitos e os que sofrem em silêncio. Pedi para que minha febre voltasse, para que meu corpo fraquejasse, qualquer coisa que me mantivesse presa à cama, longe daquela casa, longe deles.
Eu só queria ficar doente até que os senhores fossem embora. Mas eu sabia que isso era impossível. Eles ficavam seis meses aqui, todo ano. Uma eternidade para quem, como eu, só desejava passar despercebida.
Não podia ficar doente por tanto tempo. Não podia me esconder para sempre. E isso me deixava ainda mais desesperada. A febre era um refúgio temporário, mas não havia febre que durasse seis meses. E eu? Eu não suportaria tanto tempo vivendo com aquele medo constante. Com eles. Com ele.
NicollEu caminhei pelo quarto dela naquela noite. Os passos eram silenciosos, como se o próprio chão soubesse que era inútil tentar me trair. Analia era minha. Sempre foi. Desde o dia em que a escolhi, quando tinha quatorze anos. A garota das montanhas sombrias da Áustria me pertencia, mesmo que ela ainda não soubesse disso.Nunca fui um anjo, nunca me vesti como um. Nasci com uma mensagem ruim gravada no sangue dos meus ancestrais. Gélido. Perigoso. Eu era apenas mais um Krueger, um herdeiro dos legados mais nefastos que andavam sobre essas terras antigas. Não buscava redenção porque sabia que ela não existia para mim. Somente o poder era meu, e agora, finalmente, eu tinha todo ele em minhas mãos.E Analia... ah, Analia. A doce criança medrosa que fugia de mim como um cervo assustado. Ela corria, é verdade, mas estava certa em cada passo que dava. Ela sabia o que eu era, mesmo sem entender completamente.Eu era um demônio selvagem. Um predador das sombras alpinas. E ela estava na mi
AnáliaEu estava deitada, tentando me enterrar nos lençóis e esquecer o mundo, quando Marlene entrou apressada no meu quarto. Ela parecia agitada, as mãos tremiam, e o olhar estava mais assustado do que o normal.— Menina, eu o vi! — disse ela, sem esperar que eu respondesse.Virei o rosto para o outro lado, fechando os olhos com força. — Não quero saber, Marlene.— Mas eu preciso contar para alguém! Preciso, preciso contar, por favor!Sua voz estava carregada de urgência, mas eu sabia aonde aquela conversa ia levar, e não queria ouvir. Não queria. Mesmo assim, ela continuou, como se minha resistência fosse inútil, e talvez fosse.— Eu o vi. Nu. Nu! Achei que ele estava fora, nesse frio... Mas ele estava ali. Grande. Branco. Ele parecia um animal.Tapei meus ouvidos, minha respiração acelerada. Era como se as palavras dela fossem se materializando ao meu redor, formando uma imagem que eu não queria na minha cabeça.— Saia, Marlene.Ela hesitou, mas não parou. — Você não entende, Anali
Eu caminhava, o som das árvores rangendo sob o peso do gelo preenchia o silêncio ao meu redor. O inverno parecia interminável, e eu contava os dias para que o sol chegasse à Áustria e trouxesse consigo um pouco de calor. Nos dias quentes, tudo ficava mais suportável. Eu poderia caminhar sem medo, ver pessoas, me sentir parte de algo além daquela solidão gelada.Enquanto seguia pela trilha, senti algo estranho, como se estivesse sendo observada. Parei, olhei ao redor, mas não vi nada. Apenas o vento dançando entre os galhos secos e o som distante de algum animal na floresta. Respirei fundo e continuei. Devia ser coisa da minha cabeça, me convenci. Mas o medo já se instalava, lento e implacável.Então, eu o vi. Um lobo. Enorme, majestoso, de pelagem branca como a neve. Seus olhos me encaravam com uma intensidade que me fez congelar. Não parecia um animal comum. Ele me olhava como se eu fosse sua presa, sua refeição preciosa.O instinto me tomou, e corri. Corri como nunca havia corrido a
AnáliaEu sabia que não poderia me esconder no meu quarto para sempre. Quando Marlene me chamou para ajudar na limpeza, não tive escolha. Eu precisava do dinheiro. Guardava cada moeda na esperança de que, algum dia, pudesse juntar o suficiente para fugir. Fugir dele. Fugir de Krampus.Vesti-me com roupas simples e desci para a cozinha. Era enorme, e só Marlene não dava conta de manter tudo limpo. Por sorte, a casa estava vazia. Enquanto esfregávamos e organizávamos, ela falava sem parar, mais para preencher o silêncio do que para ouvir uma resposta minha. Eu respondia com monossílabos, tentando não chamar atenção.Ela reclamava do frio, do trabalho, e mencionou o jantar de gala que estava sendo preparado, com funcionários extras contratados só para a noite. E então aconteceu. Sem querer, esbarrei em uma prateleira, e um prato grande e caro caiu no chão, quebrando-se em pedaços.— Você é uma idiota, menina, estúpida! Sabe quanto custa um prato desses?— Foi sem querer, eu juro... — min
Fiquei no quarto, encostada na parede, meu corpo tremendo e o estômago doendo de pavor. O medo era tão intenso que me fazia querer desaparecer, mas pulei de susto quando a porta se abriu de repente. Lá estava ele, Nicoll. Seu olhar era como um peso esmagador sobre mim. Ele estendeu a mão, convidativo, mas eu tremi e uma lágrima escapou quando recuei para longe dele.Ele não disse nada. Apenas me olhou, aproximou-se e... me cheirou. Um som baixo e feroz, quase um rosnado, escapou da garganta dele. Tentei me afastar, mas ele segurou meu braço firmemente, não permitindo.— Seu cheiro de perto é ainda melhor.Eu comecei a chorar, as lágrimas escorrendo livremente pelo meu rosto.— Por que está chorando? — ele perguntou, com um tom quase curioso.— Tenho pavor de você. Quero meu pai, minha casa... Por favor! Me deixe ir!Ele suspirou, sua voz baixa e final. — Não pode. Não mais, Analia. Não pode.Antes que eu pudesse reagir, ele abaixou a cabeça e pressionou os dentes contra o meu ombro. O
Eu não tinha certeza de como a noite terminou. Tudo parecia um borrão, como um pesadelo que não se desfazia mesmo quando eu tentava acordar. Lá fora, uma chuva forte começou a cair, as gotas batendo nas janelas com fúria. Mesmo assim, os convidados pareciam indiferentes, terminando o jantar e se despedindo, voltando para suas casas. Eu também queria ir embora, mas sabia que não podia. Não mais.A senhora Edith me levou até o quarto, falando com uma calma que parecia fora de lugar. Quando entramos, corri para o banheiro, como se pudesse me esconder de tudo aquilo. Ela veio atrás de mim, ajudando-me a lavar os cabelos e a esfregar minha pele, mas suas mãos eram diferentes, quase... maternais.Quando desligou o chuveiro e ligou o aquecedor, ela me vestiu com uma camisola longa, macia demais para ser confortável.— Vai passar, criança. — Sua voz era suave, mas firme. — Eu já estive no seu lugar, assustada como você. Mas passou, e hoje sou feliz. Muito feliz. Ouviu?Eu mal conseguia respon
Eu não sei como consegui dormir naquela noite. Talvez fosse o cansaço, a exaustão que finalmente venceu o medo. Mas, por incrível que pareça, em algum momento precisei me encostar em Krampus por causa do frio. Não foi por escolha, foi puro instinto. O calor do corpo dele era a única coisa que me afastava do congelamento que parecia vir de dentro de mim.Quando acordei, ele já não estava ali. Agradeci por isso. Respirei fundo e me levantei, tentando afastar os pensamentos sobre tudo que havia acontecido. Chorei um pouco, sem querer, enquanto me arrumava para o café. Estava atrasada, e sabia que todos já estariam na mesa.Quando cheguei, as conversas diminuíram, e os olhos de todos se voltaram para mim.— Desculpa. Perdi a hora. — Minha voz saiu mais baixa do que eu pretendia.— Não tem problema, minha filha. Sente-se. — O pai de Nicoll falou, sua voz carregada de uma falsa cordialidade que só aumentava minha inquietação.Eu ia me sentar o mais longe possível de Krampus, mas antes que p
Voamos de helicóptero. Nunca havia estado em um antes, e, honestamente, pensei que o medo me dominaria. Mas não foi o que aconteceu. Meu pavor só surgiu quando o helicóptero pousou em um lugar que eu não reconhecia, um lugar que parecia outro mundo. O topo de um prédio alto, cercado por luzes e silêncio opressor.Nicoll – ou Krampus, como ele insistia em ser chamado – estendeu a mão para mim. Eu hesitei, mas sabia que recusar não era uma opção. Peguei a mão dele, quente e firme, e saímos dali juntos.— Krampus... — chamei, minha voz baixa e trêmula.Ele olhou para mim, seu rosto impassível.— Estou apavorada. Pode ser um pouco gentil?Ele arqueou uma sobrancelha, como se a palavra “gentil” fosse um conceito completamente alienígena para ele. — Não faço nem ideia do que isso seja. E, em todo caso, não ganharei nada em troca da minha gentileza. Você tem medo e nojo de mim. O que eu quero, consigo de qualquer maneira, mesmo que seja obrigando, então não há necessidade de gentileza se vou