Anália
Eu estava deitada, tentando me enterrar nos lençóis e esquecer o mundo, quando Marlene entrou apressada no meu quarto. Ela parecia agitada, as mãos tremiam, e o olhar estava mais assustado do que o normal.
— Menina, eu o vi! — disse ela, sem esperar que eu respondesse.
Virei o rosto para o outro lado, fechando os olhos com força. — Não quero saber, Marlene.
— Mas eu preciso contar para alguém! Preciso, preciso contar, por favor!
Sua voz estava carregada de urgência, mas eu sabia aonde aquela conversa ia levar, e não queria ouvir. Não queria. Mesmo assim, ela continuou, como se minha resistência fosse inútil, e talvez fosse.
— Eu o vi. Nu. Nu! Achei que ele estava fora, nesse frio... Mas ele estava ali. Grande. Branco. Ele parecia um animal.
Tapei meus ouvidos, minha respiração acelerada. Era como se as palavras dela fossem se materializando ao meu redor, formando uma imagem que eu não queria na minha cabeça.
— Saia, Marlene.
Ela hesitou, mas não parou. — Você não entende, Analia. Ele... ele é... ele parecia... não sei nem explicar!
— Pare, Marlene! — gritei, minha voz saindo mais alta do que eu queria. — Eu não quero saber! Por favor, saia.
Marlene finalmente parou, seus olhos arregalados com o meu tom. Ela hesitou por um momento, mas então deu um passo para trás, balançando a cabeça e murmurando algo que eu não consegui ouvir direito.
Quando a porta se fechou, eu respirei fundo, ainda tremendo. Não sabia o que era mais assustador: o que ela tinha visto, ou o fato de que eu já sabia, no fundo, que ela estava certa. Algo em Nicoll era mais que humano. Mais que perigoso.
Eu só queria fingir que não sabia. Fingir que não existia.
Marlene se foi, mas deixando o quarto num silêncio desconfortável. Por alguns minutos, fiquei sentada na cama, tentando organizar os pensamentos e empurrar para longe o peso que parecia ter se instalado no ar. Quando o frio começou a entrar pelas frestas da janela, decidi me levantar.
Fui para o chuveiro, deixando a água quente escorrer sobre mim, como se pudesse lavar o desconforto daquela noite. Depois, vesti um pijama grande, feio e confortável, que quase parecia um escudo contra o mundo. Coloquei um roupão por cima e fui até a janela, espiando para fora.
Meu pai estava lá fora, conversando com o pai de Nicoll. Seus gestos eram tensos, como se as palavras que trocavam fossem mais pesadas que o machado que ele usava para cortar lenha. Esperei até que o senhor Krueger saísse, e então desci as escadas devagar, sentindo o peso do que sabia que viria.
Encontrei meu pai ainda no pátio, com o rosto endurecido pelo frio e pela conversa. Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele virou-se para mim, os olhos cheios de algo que parecia uma mistura de raiva e preocupação.
— Eu disse para você não ir naquela casa, Analia. Eu avisei.
— A senhora me mandou chamar, papai. O que eu ia fazer?
Ele balançou a cabeça com força, como se quisesse afastar minhas palavras. — Devia ser feia. Nem mandei você para a escola para não me causar problemas, e ainda assim atiça os olhos dos homens.
Aquilo me acertou como um tapa. — Eu não fiz nada, pai! Nada! Juro! Nem quero fazer! Não tenho amigos, nunca tive, porque as pessoas se afastam de mim. Porque você não me deixou ter amigas, amigos de escola. Todo mundo me esquece, e isso não é culpa minha!
Por um momento, ele ficou em silêncio, seus olhos fixos nos meus. Então, sua voz saiu mais baixa, mas não menos firme.
— Entre. Lá dentro. Agora.
Fiz o que ele mandou, sem contestar. Não havia espaço para discutir. Não com ele. Não aqui. Meu coração estava apertado, mas o medo que eu sentia dele era diferente do que sentia de Nicoll. Um era familiar, o outro era como uma sombra que nunca me deixava.
Eu entrei em casa, mas o ar ali parecia ainda mais sufocante que o frio lá fora. Em silêncio, saí pela outra porta, como uma fuga silenciosa. Queria caminhar um pouco, sentir o vento gelado no rosto, o frio cortante que, de certa forma, era mais acolhedor do que a tensão da casa.
Estava de botas, meias grossas e o o roupão grande. Mesmo assim, o frio me envolvia por completo, congelando cada exalação minha. Mas, de alguma maneira, isso me ajudava. Por alguns instantes, o frio fazia com que eu me esquecesse dos problemas. Me afastava do peso constante de tudo que eu vivia, nada acontecia de verdade, mas ao mesmo tempo tudo acontecia, algo me espreitava e eu sabia que viveria um pesadelo em breve..
Caminhei devagar até um ponto mais afastado da propriedade. A neve rangia sob meus pés, e o silêncio era tão profundo que eu podia ouvir até meu coração batendo., o frio passou. Acenei para uma senhora que vi à distância, uma figura encurvada que carregava lenha em um trenó pequeno. Ela parou por um momento, como se tivesse notado meu gesto, mas logo desviou o olhar e continuou andando.
Ninguém entrava nos limites da propriedade dos Krueger. Ninguém. Não era só respeito, era medo. Medo do desconhecido. Ou talvez medo do que já sabiam. Era como se o ar ao redor das terras fosse diferente, mais pesado, carregado de algo que afastava as pessoas. Eu não entendia. Não entendia por que meu pai trabalhava para eles se ele mesmo parecia desconfortável ali. Ele dizia que era por necessidade, que não tínhamos outra escolha. Mas eu questionava se era verdade. Esse lugar não era bom para nós, nem para ninguém. Por que ficávamos? Por que ele insistia?
A verdade era que, mesmo com todas as minhas dúvidas, eu também ficava. Como se algo me mantivesse ali, presa por correntes invisíveis que nem eu conseguia explicar. E, por mais que quisesse entender, uma parte de mim preferia não saber. Era como se aquele lugar fosse meu destino. Como se minha vida não pudesse existir de verdade longe daquela casa, longe daqueles monstros estranhos das montanhas sombrias da Áustria. Algo em mim estava preso ali, um laço invisível que me mantinha conectada, mesmo quando todo o meu ser queria fugir.
Não conseguia me imaginar longe dali, mas ao mesmo tempo, sabia que não podia ficar. Não podia. Havia algo naquele lugar que parecia me devorar por dentro, lentamente, a cada dia. Algo que não podia ser explicado, mas que eu sentia em cada sombra que se alongava sobre as árvores, em cada sussurro do vento frio entre os galhos.Enquanto caminhava, era como se o próprio ar estivesse impregnado por um cheiro estranho, algo doentio e maligno. Não era real, mas parecia tão tangível quanto o gelo sob meus pés. O mal que eu sentia não era apenas nos outros, era em mim também, como se estivesse se infiltrando, se espalhando devagar, querendo me engolir.
Fiquei parada por um momento, olhando ao redor, tentando encontrar uma explicação racional para o peso que carregava no peito. Mas não havia explicação. Não ali. Era o tipo de sensação que só podia existir naquela casa, naquelas terras. Como se o próprio lugar estivesse vivo, pulsando com uma escuridão que ninguém podia escapar.
Queria fugir. Mas parte de mim sabia que, mesmo que tentasse, nunca estaria realmente livre daquele lugar. Nunca estaria livre dele, de alguma maneira eu sentia Krampus me cercando, mas por que?
Eu caminhava, o som das árvores rangendo sob o peso do gelo preenchia o silêncio ao meu redor. O inverno parecia interminável, e eu contava os dias para que o sol chegasse à Áustria e trouxesse consigo um pouco de calor. Nos dias quentes, tudo ficava mais suportável. Eu poderia caminhar sem medo, ver pessoas, me sentir parte de algo além daquela solidão gelada.Enquanto seguia pela trilha, senti algo estranho, como se estivesse sendo observada. Parei, olhei ao redor, mas não vi nada. Apenas o vento dançando entre os galhos secos e o som distante de algum animal na floresta. Respirei fundo e continuei. Devia ser coisa da minha cabeça, me convenci. Mas o medo já se instalava, lento e implacável.Então, eu o vi. Um lobo. Enorme, majestoso, de pelagem branca como a neve. Seus olhos me encaravam com uma intensidade que me fez congelar. Não parecia um animal comum. Ele me olhava como se eu fosse sua presa, sua refeição preciosa.O instinto me tomou, e corri. Corri como nunca havia corrido a
O Primeiro Encontro com o KrampusAnaliaA memória daquele Natal, tantos anos atrás, ainda me causa arrepios. Eu tinha dez anos e vivia com meus pais na propriedade da família Krueger, nas montanhas da Áustria. Naquele ano, a neve caía mais densa, cobrindo tudo em um silêncio sufocante. Papai dizia que o frio era mais intenso porque era "um ano de renascimento". Eu não entendia o que aquilo significava, mas o que vi naquela noite ficou gravado para sempre em minha mente.Foi a primeira vez que vi Nicoll, o "Krampus". Ele tinha quatorze anos e parecia... um ser que não deveria existir. Alto e magro, mas com uma presença que gelava mais que o vento lá fora. Ele andava pelo pátio como se o frio não pudesse tocá-lo, vestido apenas com uma bermuda escura. No rosto, uma pintura grotesca de caveira que contrastava com seus olhos sombrios, olhos que pareciam enxergar a alma das pessoas.Minha curiosidade infantil me levou a observá-lo pela janela da cozinha, mas assim que ele virou a cabeça e
AnaliaO som do carro chegando é inconfundível. Primeiro, o ronco do motor que ressoa pelas montanhas cobertas de neve. Depois, as vozes abafadas dos senhores Krueger. Mas eu sei que ele está lá. Ele sempre está lá.Nicoll voltou para casa a tempo do Natal, o que significa que o desfile de horrores também está para começar. O ritual. A celebração grotesca que me aterroriza desde a infância. Decido que não vou sair. Não hoje. Não com ele por perto.Sento-me em frente à lareira, tentando me aquecer com o pouco calor que ela oferece. Mas o frio parece entrar por todos os cantos da casa, como se fosse uma extensão dele. O som da madeira estalando no fogo deveria ser reconfortante, mas, em vez disso, me lembra o estalo de passos na neve – pesados, firmes, inevitáveis.Tento me distrair com um livro, mas as palavras dançam nas páginas sem sentido. Minha mente insiste em retornar àquele dia. A visão dele com aquela máscara grotesca, pintada como uma caveira, sua silhueta alta destacada contr
AnáliaEu caminho até a casa principal, tremendo como uma folha ao vento, com a mala ainda apertada contra o peito. Meus passos ecoam no chão de madeira polida, cada som mais alto do que eu gostaria. Quando paro diante da senhora Edith, meu coração parece sair pela boca.— Mandou me chamar, senhora? — pergunto, tentando manter a voz firme, mas ela treme junto comigo.Ela me encara com seus olhos frios, aquele olhar de superioridade que me fazia querer desaparecer. Então ri, um som baixo e zombeteiro, e responde:— Mandei, criança medrosa. Não precisa tremer. Como está?— Bem... posso ir? — A pergunta escapa antes que eu possa evitar, carregada de uma urgência que ela percebe imediatamente.Ela ri de novo, com mais gosto, como se minha inquietação fosse a coisa mais divertida que já viu. Eu não queria ficar ali. Não queria mesmo.— Queria ver como está. Está ainda mais bonita. Agora eu entendo.Fico paralisada. Ela entende o quê? Eu não entendia nada. Nada, nada...— Terminou seus estu
NicollEu caminhei pelo quarto dela naquela noite. Os passos eram silenciosos, como se o próprio chão soubesse que era inútil tentar me trair. Analia era minha. Sempre foi. Desde o dia em que a escolhi, quando tinha quatorze anos. A garota das montanhas sombrias da Áustria me pertencia, mesmo que ela ainda não soubesse disso.Nunca fui um anjo, nunca me vesti como um. Nasci com uma mensagem ruim gravada no sangue dos meus ancestrais. Gélido. Perigoso. Eu era apenas mais um Krueger, um herdeiro dos legados mais nefastos que andavam sobre essas terras antigas. Não buscava redenção porque sabia que ela não existia para mim. Somente o poder era meu, e agora, finalmente, eu tinha todo ele em minhas mãos.E Analia... ah, Analia. A doce criança medrosa que fugia de mim como um cervo assustado. Ela corria, é verdade, mas estava certa em cada passo que dava. Ela sabia o que eu era, mesmo sem entender completamente.Eu era um demônio selvagem. Um predador das sombras alpinas. E ela estava na mi