Dele

Eu caminhava, o som das árvores rangendo sob o peso do gelo preenchia o silêncio ao meu redor. O inverno parecia interminável, e eu contava os dias para que o sol chegasse à Áustria e trouxesse consigo um pouco de calor. Nos dias quentes, tudo ficava mais suportável. Eu poderia caminhar sem medo, ver pessoas, me sentir parte de algo além daquela solidão gelada.

Enquanto seguia pela trilha, senti algo estranho, como se estivesse sendo observada. Parei, olhei ao redor, mas não vi nada. Apenas o vento dançando entre os galhos secos e o som distante de algum animal na floresta. Respirei fundo e continuei. Devia ser coisa da minha cabeça, me convenci. Mas o medo já se instalava, lento e implacável.

Então, eu o vi. Um lobo. Enorme, majestoso, de pelagem branca como a neve. Seus olhos me encaravam com uma intensidade que me fez congelar. Não parecia um animal comum. Ele me olhava como se eu fosse sua presa, sua refeição preciosa.

O instinto me tomou, e corri. Corri como nunca havia corrido antes. Meu coração batia tão rápido que parecia explodir, mas os passos do lobo atrás de mim eram inconfundíveis. Ele estava me seguindo, e eu sabia que não podia escapar. Minhas pernas fraquejaram, e eu caí na neve, sentindo o gelo queimando minha pele.

O lobo me alcançou, seu peso cobrindo meu corpo, seu focinho próximo ao meu rosto. Ele me cheirava, e o calor de sua respiração contrastava com o frio cortante da neve. Quando sua língua áspera tocou meu rosto, achei que fosse desmaiar de puro terror.

Mas então, algo inexplicável aconteceu. O lobo parou, levantou a cabeça e recuou. Em poucos segundos, ele desapareceu no meio da vegetação, deixando-me sozinha, confusa e ainda tremendo. Meu corpo inteiro estava paralisado, como se o gelo tivesse me prendido ali, incapaz de me levantar.

Foi então que vi os pés descalços. Um par de pés pálidos e firmes contra a neve. Levantei o olhar devagar, e meu coração afundou. Krampus. Nicoll estava ali, me observando com aquele olhar que era pior que o do lobo. Um olhar que penetrava minha alma e não deixava escapatória.

Naquele momento, preferia o lobo. O lobo parecia menos predador do que ele.

Ele me ofereceu a mão, mas recusei. Levantei-me sozinha, com a determinação impulsionada pelo medo, e voltei a correr. O pavor dele me deu forças que eu nem sabia que tinha. A neve pesava sob minhas botas, cada passo era uma luta contra o gelo que parecia me prender, mas eu continuei. Corri sem olhar para trás, o coração batendo tão rápido que me fazia sentir que ia desmaiar. Só parei quando alcancei a segurança do meu quarto.

Cai exausta na cama, minha respiração ofegante ecoando pelo quarto vazio. Ainda tremendo, senti algo que me gelou até os ossos: a impressão de um riso distante. O riso dele. Krampus. Mas era impossível, não era? Não podia ser real.

Fiquei ali encolhida, como se pudesse desaparecer sob as cobertas, até que a porta se abriu, e meu pai entrou.

O que estava fazendo lá fora, Analia? — Sua voz era dura, mas carregava algo além de preocupação.

Eu levantei os olhos para ele, ainda trêmula. — Fui caminhar um pouco. Quando o inverno acabar, vou estudar e fazer um curso. Quero sair dessa casa, papai. Quero ter amigos, viver longe daqui. Já sou maior de idade, o senhor não pode me impedir, mas eu volto, não voiu abandoná-lo.

Ele suspirou, como se o peso de minhas palavras fosse uma carga que ele já esperava carregar.

Eu, Analia, sou o menor dos seus problemas. Ingênua como sempre. Devia ter deixado você fugir enquanto havia tempo. Agora é tarde.

Minha respiração ficou presa. — Tarde? Tarde para quê, papai?

Ele hesitou por um momento, mas depois seus olhos encontraram os meus com uma dureza que fez meu estômago revirar.

Nicoll te quer, menina. E dele, ninguém foge.

As palavras rodaram na minha mente, me atingindo como um golpe. Meu corpo inteiro gelou, e um grito escapou dos meus lábios, carregado de pura incredulidade e desespero. Eu não sabia o que aquilo significava completamente, mas sabia que não era algo bom.

De repente, as imagens do Natal da infância invadiram minha mente, como se meu subconsciente quisesse me alertar. O garoto maligno que eu tinha visto pela primeira vez quando criança, representando algo além do medo, algo monstruoso. O rosto pintado como uma caveira, os olhos que pareciam ver mais do que deveriam, e aquela presença esmagadora que fazia meu coração parar.

Agora, ele não era apenas uma figura de memórias. Ele estava aqui, real e impossível de evitar. E ele me queria.

Por que eu? Uma garota comum, do interior da Áustria, quase uma caipira comparada ao mundo dele, às altas rodas da sociedade onde ele reinava como um deus sombrio? Eu não fazia sentido naquele universo de riqueza e poder. Pensar nisso só me fazia acreditar que ele não me queria de verdade. Talvez fosse um jogo, uma brincadeira cruel para passar o tempo antes de seguir em frente, deixando-me ainda mais quebrada do que já me sentia com a atenção dele.

Mas mesmo assim, mesmo que fosse só isso, eu não queria. Não queria ele por perto. Não queria os olhos dele em mim, aquela presença que me fazia sentir como se estivesse sendo despida, exposta, como se ele pudesse ver partes de mim que nem eu conhecia.  

Eu tinha o direito de decidir. Ou pelo menos era o que eu achava. Mas no fundo, sabia que com Nicoll, esse direito não existia. Ele tomava o que queria, quando queria, e ninguém ousava desafiá-lo. Muito menos eu.  

A sensação de impotência me consumia. Ele era como uma tempestade inevitável, se aproximando devagar, mas com força suficiente para destruir tudo no caminho. E eu? Eu só queria desaparecer antes que isso acontecesse, mas a correnteza que ele era já havia me alcançado, quem iria em salvar de Nicoll?

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