A cartomante
NA AVENIDA CRUZES, a dois quarteirões da casa da velha, uma cartomante conversava com a amiga cética sobre o ocorrido:
— Soube da velha? — perguntou Clarice a Morgana.
— Devo confessar que se ela não estiver louca, eu não estou no meu juízo perfeito — afirmou Morgana, virando uma xícara florida de café.
— Isso me lembra o rapaz que namorou Ofélia há doze anos — comentou a cartomante.
— Eu acredito mesmo que a velha está delirando nas maluquices da Ofélia e por mais um tempo se prolonga essa história maluca — Morgana mexia nas madeixas ruivas.
— Você lembra o que a moça disse na consulta? Lembra que recusei? Achei que ela realmente estava delirando… — a cartomante continuou, receosa em demonstrar seu arrependimento perante a amiga.
— Ofélia estava maluca. Ninguém roubou o noivo dela, muito menos uma placa mágica de madeira e a Marta provavelmente alucinou nessa conversa. Nem direi a você o que meu marido pensa sobre isso… — a amiga argumentou, enquanto passeava os dedos pela borda da xícara.
Morgana não acreditava que a Senhora Marta ou Ofélia estivessem falando a verdade. Para ela era mais fácil aceitar a ideia de que a velha ouviu algo sobre o passado e endoidou do que a placa de fato existir e ser um objeto mágico.
— Acredita, ao menos, que Marta sabia sobre Ofélia? — Clarice questionou, tentando convencer a amiga.
— Deveria saber… Quando algo acontece por aqui, sempre acaba sendo comentado.
— Ela se mudou para cá há poucos meses e, você sabe como é, para o Senhor Lopes, o dinheiro sempre vem em primeiro lugar — Clarice referiu-se ao dono da loja de antiguidades onde a velha disse ter comprado o objeto.
— Deixa eu adivinhar…você acredita mesmo que esse objeto existe? Vai dizer que está pensando em fazer uma leitura de cartas? Que está sentindo que deveria ter feito? Eu desisto de tentar colocar alguma lucidez na sua cabeça, minha amiga… — Morgana revirou os olhos.
— Sugere algum baralho específico? — Perguntou Clarice, confirmando a teoria da amiga.
— Você sabe que o único baralho que me agrada é aquele que se usa para jogar truco…— Morgana brincou — Posso apostar que a moça foi deixada pelo noivo e Marta está tão velha que está vendo coisas. Os rapazes que sumiram devem estar se divertindo muito enquanto elas criam essas teorias mirabolantes.
— Bom, vamos lá… — Clarice esfregou as mãos, respondendo de maneira brincalhona a manifestação da amiga sobre baralhos — Se eu tivesse um baralho desses que você gosta… Ah se eu tivesse um baralho desses… — sorriu.
A cartomante abriu a gaveta pálida da escrivaninha, onde guardava vários baralhos e procurou com os olhos de maneira incessante pelo baralho cotidiano que sempre dividia a mesa com ela nas consultas, o bom e velho tarô de Marselha.
De repente, a mulher estremeceu e trocou olhares entre a amiga e a gaveta, como se estivesse perplexa com alguma coisa.
— O que foi? — Morgana se assustou com o comportamento da amiga, pois aquele baralho sempre estava ao alcance e dessa vez ela parecia preocupada.
— Acho que estou ficando maluca… — Clarice revelou.
— É um diagnóstico bem tardio, eu diria… — a ruiva riu.
Clarice estava determinada e olhava novamente para a gaveta, com a impressão de que a estampa da caixa daquele baralho que procurava sumia à frente dos seus olhos sob a caixa de um baralho comum que não se recordava de ter na gaveta.
A impressão foi a de que a caixa costumeira fora trocada de lugar ou se disfarçava muito bem. Como não é comum que baralhos se disfarcem ou que saiam por aí sozinhos, atribuiu o feito à amiga. Certamente, para pregar-lhe uma peça, ela colocava ali aquele baralho de jogos, como bem tinha dito que o único baralho que gostava era o de truco. A cartomante, que esperava encontrar o tarô cotidiano facilmente, teve uma ilusão momentânea de que aquela caixa aparecia sobre a outra na frente dos seus olhos. O baralho que a mulher procurava estava realmente abaixo daquele, mas aquela situação não fazia nenhum sentido em sua criteriosa organização das gavetas; nunca tinha visto ali um baralho de jogos e, por essa razão, decidiu não deixar aquele insulto barato
Sob aquela circunstância engraçada e ao mesmo tempo revoltante de sentir-se enganada pela amiga, decidiu fazer uma leitura de brincadeira só para aplicar uma lição.
— Você brincou comigo, mas agora sou eu que vou brincar com você — Clarice provocou a amiga.
— O quê?! — Morgana estranhou.
— Foi você que colocou na minha gaveta, não foi?! — a amiga exibiu a caixa do baralho.
— Eu não…
— Eu sei que foi você...
— Eu juro que não! — a ruiva sorriu, desconcertada.
— Pois bem… já que não confessou, nunca mais vai subestimar o meu trabalho… — Clarice demonstrou empolgação.
A amiga olhou descrente. Não imaginava que a cartomante tivesse um baralho de truco na gaveta. Não podia negar que estava surpresa, pois a amiga nunca demonstrou o mínimo interesse por essas coisas. Então, atribuiu internamente o feito a algum cliente brincalhão ou a alguma compra equivocada, mesmo que essa última hipótese fosse improvável, já que a amiga era tão exigente. Ao mesmo tempo, ficava curiosa em saber como a cartomante interpretaria um baralho daqueles de maneira esotérica.
Clarice sentou-se à mesa com o baralho em mãos, cortou em quatro, embaralhou, cortou em dois, embaralhou de novo, fechou os olhos e pronunciou euforicamente:
— Aves dos céus, das estações do ano, aves que voam sob o abismo e que nos mares se banham… — Clarice tratava os nipes de cartas como as estações do ano, como se significassem mais do que paus, copas, espadas e ouros — Dois rapazes em doze anos aqui desaparecem, revelem o que existe, o que os anos não esclarecem.
Morgana mexia as unhas, ansiosa, apenas aguardando a interpretação da cartomante. Pensava nas possíveis análises da amiga e nada tirava da sua cabeça o quanto o acaso era engraçado. Em qualquer mesa de jogos, uma cena como aquela seria digna de risadas e o pensamento mór seria: “Se embriagou de tal forma que trocou os baralhos, o do amor pelo da aposta”.
Todas as cartas daquele baralho tinham uma listra preta em uma das bordas, o que poderia ser apenas um defeito de fabricação, mas a cartomante decidiu por sua própria conta que poderia significar a parte de cima das cartas em sua leitura.
Clarice assoprou o baralho como o vento assopra as asas das aves e virou as últimas sete cartas na mesa. Todo o procedimento fora inventado por ela e por mais que fosse difícil forjar uma leitura de cartas, ela simplesmente parecia saber o que estava fazendo, mesmo de brincadeira.
As mãos belas da mulher viraram as cartas aleatoriamente: a primeira, a terceira, a sexta, a segunda, a quarta, a quinta e a sétima carta, as quais, em ordem, revelavam seis de paus invertido e sete de paus, três de espadas, quatro e dois de ouros, nove e dez de copas invertidos.
— Aqui posso ver que o primeiro rapaz se perdeu completamente em suas ambições, depois de passar por algo muito difícil e não conseguir compreender a realidade por detrás das próprias ações. A vida se tornou tão difícil que o medo da morte e a fé cega fez com que fizesse uma péssima escolha, fez o que fez por algo valioso demais, mas a verdade é que fora enganado, usado e agora que está prestes a colher os frutos dos seus atos, percebe que não é o que idealizou, tudo se tornou superficial demais para ele e agora o egoísmo e a soberba já não permitem mais que retorne a ser quem era antes.
— Uau — Morgana se surpreendeu — Você é boa com histórias… Se isso é a realidade, abandonar a noiva custou muito caro para ele.
Clarice estava longe de admitir que aquela era uma brincadeira, quando uma das cartas do baralho saltou da mesa sem nenhuma interferência externa. A cartomante não esperava por aquilo e a amiga ruiva vislumbrava a cena incrédula, com os olhos arregalados procurando uma explicação científica para o ocorrido.
— Algo muito estranho, amiga… — observou Clarice preocupada.
— E bota estranho nisso… — a ruiva se arrepiou — Você sequer tocou nessa carta.
A cartomante pegou a carta que caiu no chão e ficou paralisada por alguns minutos, como se estivesse vendo um turbilhão de imagens passar diante dos olhos, em transe. Seu rosto, normalmente avermelhado, estava agora pálido, seus lábios perdendo a cor natural.
— O que foi? Por que essa expressão? O que tem nessa carta? — perguntou Morgana, percebendo o estranho comportamento da amiga.
A cartomante, que havia feito a leitura de forma improvisada, tremia ao perceber que a linha escura das outras cartas também estava presente naquela. A carta que saltou fazia parte do mesmo baralho, com a mesma estética no verso, mas na frente não era uma carta comum dos naipes; mostrava uma criatura assustadora, com olhos famintos e um semblante distorcido entre o que pareciam ser ossos, pelos e galhos de árvores.
— Cruzes! Que carta horrível! — a ruiva se assustou ao espiar a imagem.
— Nunca vi algo assim... Que coisa! Eu não tinha visto essa carta quando embaralhei...
— O que isso quer dizer? — a amiga perguntou.
— Eu não faço ideia… — a cartomante desabafou.
— Pode ser que seja um engano, uma carta de outro baralho parar nesse… — Morgana cogitou — Sabe… jogos de jovens… algum cliente jovem…
— Não atendo nenhum jovem há muito tempo e as pessoas que eu atendi não tocam nos meus baralhos. Você pode ver que é o mesmo baralho e que nesse baralho em específico, todas as cartas contém essa listra — a cartomante mostrou, revelando sobre a realidade da leitura — Eu fiz uma leitura de brincadeira, Morgana. Tinha certeza de que você tinha colocado isso na minha gaveta…
— Não fui eu e estou falando sério! Vai ver isso é um defeito de fabricação e te venderam esse baralho por engano…
— Eu não comprei esse baralho, eu tenho certeza disso… Isso é muito estranho — Clarice revelou, observando a caixa que continha as cartas.
— Não faz sentido nenhum isso aparecer na sua gaveta, outra história sem pé nem cabeça… — a ruiva concluiu olhando torto.
— Amiga, você também viu a carta se mexer sozinha! Como pode achar que isso ter aparecido inexplicavelmente é uma alucinação minha?! — a cartomante se revoltou.
— Meu Deus… Você está me deixando louca! Louca, tá bom?! Está me fazendo ver coisas que não existem.
— E se existem? — Clarice supôs, assustada.
— Chega! Acho melhor que eu vá pra minha casa… — Morgana se apressou, pois estava confusa, mas, ao sair pela porta, percebeu que a amiga permanecia esquisita e pálida, então continuou — Eu vou pra casa, mas se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, me ligue imediatamente que eu venho.
— Obrigada, amiga. Está tudo bem.
— Se precisar de alguma coisa…
— Eu ligo! Obrigada — Clarice sorriu, tentando se acalmar diante do susto com o baralho.
Com isso, Morgana seguia o caminho de volta para a casa que ficava no Bairro Cortez de Rosas. O ar estava gelado e castigava suas pernas descobertas. O vestido médio que usava era de um tecido leve que ensoparia rápido caso chovesse.
Subiu a rua a pé, temerosa com o fato de que já garoava. Sentia que deveria ter pedido um uber ou taxi para livrar-se da possibilidade de um resfriado, mas agora estava um pouco tarde e desafiaria a noite assim mesmo.
A mulher caminhava encolhida pelo frio que lhe assombrava a pele, arrepiando os pequenos pelinhos que dividiam espaço entre seus poros, quando foi surpreendida por um carro com um homem de boa aparência, cujos cabelos ostentavam um tom grisalho:
— Senhorita?
— Olá? — ela virou-se para trás.
— Quer uma carona? — ofereceu o homem.
Imediatamente, o celular de Morgana tocou, e ela notou que recebia uma ligação de Clarice.
— Olha… eu preciso atender uma ligação! — avisou, se afastando dele.
— A senhorita atende no caminho… é melhor do que pegar um resfriado — o homem interrompeu.
Por alguma razão, Morgana não gostou daquele sujeito e procurou se distanciar dele o mais rápido possível. Não costumava aceitar carona de estranhos, principalmente quando havia certa insistência por parte deles. O homem estava em um heugeb preto recém-fabricado, que deveria ter custado bem caro. Apenas uma vez tinha visto um carro daqueles pelas redondezas, e fazia muito tempo.
— Vamos… — ele insistiu outra vez.
— Eu vou a pé, obrigada — a mulher recusou.
— Mora no Cortez de Rosas? — o homem indagou assertivo, como se tivesse certeza da resposta — é caminho para onde vou.
— Não moro e não estou indo para lá… — Morgana disfarçou trêmula, tentando apressar seus passos — Eu sou casada e estava apenas dando uma volta!
O celular dela continuava tocando; notou que a amiga parecia insistente, mas antes que pudesse atender ou responder a ligação com uma mensagem, o homem a puxou para dentro do automóvel.
— Está louco?! — a mulher gritou, se debatendo — meu destino é a avenida Cruzes!
— Mas não estava voltando de lá? — perguntou o homem.
— Como diabos você sabe?! — a ruiva indagou assustada.
O homem ignorou Morgana e acelerou o carro, dando intermináveis voltas pela cidade.
— Ei, o que está fazendo?! — a mulher temeu diante do comportamento estranho daquele que estava ao seu lado.
— Não está se divertindo, Senhorita?
A mulher se desesperou, avançou as mãos na direção do volante, movendo o carro em um maluco desgoverno que poderia lhe custar a vida.
— Bonita e perigosa… Gostei de você! — o homem parou o carro, analisando por algum tempo as mãos da mulher, que saía abruptamente do veículo.
— Você é um maluco! — Morgana bateu a porta do automóvel e correu, assustada, no entanto, com a rápida desistência do homem em perseguí-la.
Estava na Rua Bordons Verão, longe de casa e mais longe ainda da casa da amiga, levaria muito tempo para chegar até lá, então decidiu, após retornar a ligação da cartomante e não ser atendida, pedir um táxi. Discou o número na tela do smartphone e prosseguiu:
— Alô, estou na Rua Bordons Verão, preciso de uma corrida até a Avenida Cruzes imediatamente, pago à vista!
— Ok, senhora.
Não demorou muito até chegar o carro que a levaria até a casa de Clarice.
Chegando até a casa, Morgana desceu, ligou outra vez para Clarice que não atendia, e então pediu que o motorista aguardasse. Bateu à porta de madeira e constatou que ninguém abria, girou a maçaneta e viu que a porta estava aberta.
Entrou e percebeu que não havia sinal da amiga em lugar algum, chamou e ninguém respondeu, procurou por todos os cômodos da casa e nada… Angustiada, deixou a bolsa entreaberta sobre uma poltrona qualquer e se pôs a observar melhor o cenário.
A mulher ficou ali um tempo, percebendo que tudo estava revirado na casa, a gaveta dos baralhos, as estantes, as almofadas… Aquilo não era nada comum quando se tratava da amiga, que era extremamente organizada, principalmente levando em consideração o fato de que fazia menos de uma hora que havia deixado aquela casa em direção a sua.
— Senhora? Aconteceu alguma coisa? — o taxista chamou na porta, percebendo que a mulher demorava muito.
— Tenho medo de que tenha acontecido algo muito grave… Não faz nem uma hora que eu saí daqui e veja… está tudo bagunçado, a minha amiga não atende o telefone, não está em casa…
— Acalme-se, senhora. Não quer tentar ligar novamente para ela?
O motorista estava certo, poderia tentar ligar outras vezes para Clarice, antes de se desesperar com a sua ausência em casa, mas o acaso foi que o desespero não permitiu que atendesse no momento certo e quando conseguiu retornar a ligação, talvez fosse tarde…
Voltou para a casa trêmula, rezando para que nenhum mal acontecesse, pois depois do sequestro relâmpago, no momento estratégico em que a amiga ligava e sob circunstâncias tão suspeitas como eram aquelas, não duvidava que a cartomante estivesse em perigo.
Era noite e não demorou muito para que os ponteiros do relógio apontassem meia-noite, o tempo passava rápido e o coração da mulher palpitava como se fosse sair pela boca. Quando Vitor chegou, ela contou tudo para ele, mas o marido parecia indiferente até mesmo quanto ao sequestro relâmpago, prometia falar com a polícia imediatamente, mas não demonstrava se preocupar tanto com a esposa, se encontrava inerte. A ruiva, por outro lado, tinha certeza de que a frieza do esposo se dava pelo excessivo cansaço.
Vitor às vezes passava semanas fora de casa, sua vida se resumia em trabalho, trabalho e trabalho.
KlausKLAUS ERA FILHO DE EDUARDO SANZ e essa era a única certeza que teve desde que se tornou órfão com apenas seis anos de idade. Desde o anúncio da morte dos pais, nunca mais os viu, nem mesmo os corpos deles.O menino crescia compartilhando muitas semelhanças com o pai, mas crescia em meio a circunstâncias que pareciam por vezes tão incompreensíveis ou mal explicadas que sempre tinha a sensação estranha de que por detrás da sua vida trágica, havia algum segredo.Quando era pequeno e a morte dos Sanz ainda era um acontecimento recente, teve a impressão de estar em um pesadelo muito realista: uma sombra aparecia, sinistra e aterradora, mas, no entanto, sem expressão nenhuma. Isso se repetia todas as noites ao pé da cama. Talvez fosse apenas um vulto preto produzido pela dor prematura de perder os pais na infância, apenas uma sequela daquela ausência muito recente para ser remediada por qualquer coisa.Estranhamente, conforme o tempo passava, se acostumou com aquela presença vazia al
— Disse que iria processá-los, pelo menos? — o homem perguntou, levando as mãos trêmulas à cabeça.— Fui ameaçado exatamente por isso.— Deveria ter me contado isso antes de pisar aqui…Eu daria um jeito… — Sinceramente, não compreendo a sua preocupação comigo… Que eu saiba, faz anos que trabalha aqui.— A morte do seu pai não é o suficiente para que perceba que este não é um lugar para você?— Que eu saiba, meus pais faleceram em um acidente. Se é essa a questão, o Sr. Silvace perdeu a família toda e este continuou sendo um lugar para ele.— Garoto, você não tem ideia do que está falando… Vou organizar sua viagem para os Estados Unidos ainda hoje, não vai mais pisar aqui.— Você não é o meu pai!Aqueles dizeres cortaram o coração de Otto. Não era mesmo o pai do garoto, mas nutria algum desespero como se fosse, como se tivesse necessidade de cuidar dele.— Garoto, isso não é o que você pensa! Não é só uma fábrica de armas… — o homem desabafou.— E o que isso seria, além de uma fábrica
Basicamente o homem à sua frente acabava de atribuir a ele o cargo de assassino.— Quem são essas pessoas? — perguntou, ainda assustado com o último diálogo — Eu não vou matá-las!— Se não matá-las, você morre, Sanz! São apenas obstáculos… Você não queria ser como seu pai? Seu trabalho é tirá-los do caminho da Árvore o mais rápido possível — Marcos afirmou, deixando a sala.Klaus estava sem chão, não esperava se tornar um assassino e nem ser confrontado com a informação de que o pai era um, mas como poderia fugir agora daquele empreendimento bizarro que descobria aos poucos ser a Árvore?O rapaz ficou ali até amanhecer e já que estava muito tarde, seguiu para o salão principal, mas notou uma movimentação incomum no corredor, alguém gritava e era voz de uma mulher. O rapaz não gostava de se meter nos problemas de Marcos, mas aquilo cheirava mal. Sabendo agora que a Árvore não possuía nenhum apreço pela moralidade, aquilo cheirava péssimo… Abaixou-se na meia-parede que antecedia o balc
Um casamento fracassadoMORGANA ACORDOU UM POUCO TARDE, tarde demais para se dar conta de que o esposo que ficava semanas fora de casa, já tinha ido para o trabalho. Não sabia os motivos pelos quais havia dormido por mais de quatorze horas. Talvez estivesse depressiva, pois o homem já não lhe dava tanta importância, parecia que os tais sentimentos ardentes de antes ficavam desérticos e gelados, sobrevivendo às vezes em uma palavra vazia e outra.Ela o amava, mas aquele relacionamento já não era mais o que prometia ser no início, já não era mais semelhante aos filmes de paixão que costumam deixar os corações dos jovens em chamas, estava em frangalhos.O casamento fracassava a cada dia e a mulher conservava no íntimo uma insolúvel intuição de que o marido lhe escondia algo. Essa impressão se nutria a cada experiência cotidiana, ficava nas perguntas não respondidas, nas perguntas respondidas com raiva ou descaso. Será que Vitor havia se apaixonado por outra mulher? Quem seria a serigaita
Marta e OféliaNO MANICÔMIO, a Senhora Marta e Ofélia conversavam sobre as lembranças que possuíam. Ao menos naquele cômodo, não havia quem as criticasse, conheciam melhor do que ninguém as dores uma da outra.Perder alguém era difícil, mas era ainda pior arcar com a tarja que as encobria, o adesivo de loucas, a determinação de apodrecer ali, até o último instante da vida, por jurar algo impossível que havia acontecido na frente dos seus olhos.O lugar ganhava uma nova enfermeira, que era loira e um pouco mais velha do que Ofélia, vestia branco e sorria pelos corredores, era a única talvez que não se sentia no inferno que percorria a cabeça dos pacientes.A enfermeira, no entanto, passando pelo corredor, se aproximou das mulheres, tocando o braço de Ofélia de uma maneira muito peculiar.— Não acredito… — suspirou a mulher.— Silêncio! — angustiou-se a enfermeira, percebendo que havia sido indiscreta.Ofélia estava pasma e Marta, que estava confusa, resolveu tentar compreender a situaç
Acordando em outro lugarKLAUS SENTIU FORMIGAMENTOS nas costas quando enfim acordou em um lugar densamente neblinado e sombrio, que inicialmente o fez esfregar os olhos, não conseguindo acreditar que estava naquele lugar ou que aquele lugar de fato existia.A terra era escura e úmida, as plantas oscilavam entre o verde-musgo e o preto, os céus eram cinzentos e as nuvens pairavam como uma fumaça cinzenta sobre todo o território.Aquele lugar era imenso e as suas partes mais elevadas eram preenchidas no solo por uma notável bruma indiminuta. Sem dúvidas, percorreria um caminho confuso e difícil, no qual não era possível saber em todo tempo o que havia abaixo de seus pés.Parte das suas memórias eram confusas, não se recordava de muita coisa, seu maior questionamento era o lugar onde estava, ao menos naquele instante, pois só tinha aquele vazio íngreme a vista, ao qual todos os detalhes não pareciam facilmente revelados.Caminhou por ali como o ponteiro de um relógio, às voltas, em círcu
Oslen: O mundo do SaroteuHAVIA UM PEQUENO PEDAÇO DE SOLO no meio da escuridão vazia de um espaço esquecido e sem propósito, onde a única paisagem era uma árvore em um território cinza.Um homem, passeava como de costume pelo terreno escuro em direção à árvore, lugar de seu repouso. E então, em um desses dias, foi visto por Taus, o espírito que escondia o sol da face da Terra.Eram anos muito turbulentos no mundo do qual o espírito vinha e a falta de consciência fazia com que aquele ser desejasse se afastar. Ele havia criado os humanos com todos os poderes que eles precisavam para permanecerem completos e ao se desfazer da consciência, a raiz de todos eles, aos poucos, se esqueciam de que tinham poderes e predominava dentro deles um vazio cruel que causava destruição.No entanto, ao ver o homem repousando naquela árvore em meio à escuridão completa, seu coração se confundiu quanto ao desejo de abandonar a Terra e se afastar das suas criações, percebeu que nem tudo o que vinha de uma d
Histórias de bruxaAslie terminava de contar a história de Oslen, enquanto Klaus a encarava um pouco confuso:— Vocês acreditam mesmo nisso? — ele perguntou.— Da mesma forma que você acredita no que acredita.— E esta figueira que dizem? Tenho a impressão de nunca ter visto.— Eu a vi uma vez, mas não me lembro onde estava — Aslie desabafou.A bruxa encontrava na fragilidade do atirador sem arma bom ouvinte, até deixava escapar que ameaçara Lóbus certa vez de algo improvável, não podia transformá-lo em sapo.O rapaz que antes evitava Aslie, agora não conseguia tirar seus olhos da moça. Pouco importava se era uma ótima ou uma péssima bruxa. Ao passo que a conhecia, ficar perto dela se tornava a cada dia mais instigante.Aquele contato começava a surtir os primeiros raios de sol, milagroso talvez em causar sorrisos tímidos em pedra bruta, pois aqueles jovens não sorriam costumeiramente e agora os lábios, se pudessem enxergá-los… Como estavam ficando bobos…As paixões fazem dessas coisa