Você torna o inferno bonito pra mim
Você torna o inferno bonito pra mim
Por: Ana Paula de Souza
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Um corvo faminto na minha janela

EM UM DIA QUALQUER, em uma simples janela de uma casa velha, apareceu um pequeno vulto voador: destemido, brincalhão, sério, elegante e misterioso. Poderia ser um presságio, uma premonição, um alerta, um mau agouro, como dizem, mas era apenas um corvo que queria milho.

Como um bom negociador, pedia insistentemente a atenção que lhe pertencia, e eu o ignorava no início. Corvos não eram comuns ali, e eu, se bem me recordava, nunca fui fã deles.

Não acreditava que pudesse me mostrar algo importante; qualquer coisa além do fato de que estava faminto e que sabia imitar meus resmungos tão bem quanto um papagaio.

Como permanecia ali, trouxe um pequeno pote de milho, que ele fez questão de recusar... Agia de maneira esquisita, foi a única impressão que tive inicialmente. Mas quem era eu para dizer que um corvo agia de maneira esquisita se nunca estivera tão perto de um? A ave parecia me encarar até que eu retribuísse o olhar. Ainda que eu evitasse aquele pequeno abismo à minha frente, cedi, acenei com a cabeça como quem cumprimenta alguém importante. Aparentemente, corvos são mais exigentes do que eu imaginava, e só depois de ter a atenção desejada ele comeu o que eu havia trazido.

Não era só milho o que ele queria; ele desejava mostrar que eu não era a única que tinha algo a oferecer.

Ao fitá-lo outra vez, percebi que não era uma ave comum; imagens passeavam pela minha cabeça enquanto ele mexia suas asas para levantar voo.

Tantas imagens confusas sendo costuradas pouco a pouco, enquanto seu olhar fugitivo se tornava distante...

Abriu meus olhos...

Não os deste mundo...

E agora vejo tudo...

Mais uma daquelas antiguidades

NO FRIO E NO CALOR, no sol e na chuva, na alegria e na tristeza, a Senhora Marta estava sempre ali, observando cuidadosamente a loja de antiguidades à procura de uma “novidade velha”. Era incrível que, por mais que sua casa já estivesse lotada de bugigangas empoeiradas, a mulher sempre arrumava espaço para mais uma.

Naquela tarde, o objeto que lhe chamou a atenção foi uma placa de madeira que, à primeira vista, parecia sem qualquer utilidade. Aquele artefato possuía ao todo nove pedras fixadas de alguma forma na madeira: cinco cristais na parte superior, menores, em cores pastéis — azul, amarelo, roxo e vermelho — ao lado de outro três vezes maior, de cor branca perolada, contrastando com quatro pedras pretas localizadas na parte inferior, à esquerda de uma marca preta que simbolizava a palma de uma mão aberta, com os dedos separados. Tudo ali era interligado por linhas desenhadas que mais pareciam veias. Aquilo tinha um aspecto rústico, antigo e empoeirado; era visualmente sem graça, o que levava a pensar que, se despertasse o interesse de um colecionador, certamente este estaria muito entediado.

Sinceramente, sabe-se lá por que a mulher queria aquilo em casa, já que não chegava aos pés dos quadros de Pedro Xaravioli, um pintor talentoso, mas falido, os quais ela havia comprado na semana passada.

Foi tomada de um desejo irrecusável e inexplicável de levar o objeto de madeira. Perguntou: “Quanto é?”. Responderam: “Vinte contos”, e ela retrucou: “Eu levo!”.

Aquela mulher, cuja idade beirava setenta anos, caminhava saltitante com sua mais nova aquisição, pois, refugiando-se no calor das coleções velhas e sem utilidade, descobria uma nova forma de lidar com a idade. Não sentia tanto o peso de envelhecer sozinha, compartilhando a velhice com a própria casa.

É admirável o talento que as pessoas mais velhas adquirem de lidar com a vida e a morte das coisas (ou fugir disso), mas não se iluda o leitor em pensar que a Senhora Marta daria tanta importância a uma placa de madeira pouco formosa como aquela. O item que fumegou nos olhos antigos da mulher, na tarde que iniciou esse capítulo, alguma curiosidade e desejo de propriedade, logo habitou a mesinha de canto como um mero objeto de decoração.

Passada uma semana, em uma quinta-feira na qual o relógio parado deveria apontar quatorze horas, mas marcava treze e quarenta e cinco, a velha cochilava levemente na cadeira de balanço da sala, uma das aquisições mais vantajosas que dizia ter obtido naquela loja de velharias.

Enquanto seus olhos se abriam preguiçosamente, ela percebeu uma iluminação diferente da usual no ambiente. De imediato, não conseguia atribuir uma origem decifrável àquela luz, uma vez que o teto era lajeado e das venezianas fechadas não se percebia nenhuma fresta aberta. Havia uma janela de vidro enorme na sala, mas não era dali também que saía aquela luz, pois costumeiramente, à tarde, pela localização do imóvel, o sol iluminava apenas uma parte da casa: a varanda particular que a mulher lotava de roseiras.

Alguém em casa? — uma voz masculina ecoava na porta da casa.

Ainda sonolenta, Marta percebeu que alguém chamava e batia à porta, trazendo de volta à sua memória uma voz inconfundível e familiar aos ouvidos: a voz do sobrinho Dário, que sonhava em ser político e que, já há muitos anos, morava na cidade grande. Ela se recordava de que, quando o rapaz partiu, estava convicto de que em uma cidade maior encontraria maiores oportunidades, mais conhecimento, influência e todos os prazeres que uma boa vida podia oferecer.

A mulher queria muito rever o sobrinho, pois fazia anos que não se viam e o que restava em sua mente eram apenas lembranças antigas e empoeiradas de uma época que parecia remota. Por mais maluca que fosse a verdade, lembrava-se desse passado com mais facilidade do que dos simples horários de seus remédios.

O sobrinho agora deveria ser um homem barbado, pois já se passava muito tempo desde que o viu pela última vez, eufórico com a experiência da primeira viagem à cidade grande. A tia queria vê-lo, mas não tinha forças suficientes para levantar-se da cadeira, parecia que algo a deixava inerte. Talvez fossem os anos que, de repente, de maneira impiedosa, lhe pesavam, acometendo-a de uma enfermidade súbita e inesquivável.

Oh, céus, não consigo me levantar daqui! Quanto me pesam esses anos... Não imaginava que já estava assim tão velha! — desabafou a senhora.

Tia? — chamou o rapaz novamente à porta, reconhecendo a voz da mulher nos resmungos que vinham do interior da sala.

A tia não conseguia se levantar; lhe faltava força, ânimo, coragem. Temia não sobreviver sequer para contemplar a visita do sobrinho, e esse derradeiro estado, que a fazia se sentir imóvel como em um tabuleiro de xadrez, a curtos passos do xeque-mate oponente, lhe deu alguma força para apoiar-se na mesinha que estava ao seu lado, sem sequer perceber que ali estava sua última aquisição.

A mão velha não diferenciou a mesa de mogno da antiga peça de madeira, que agora fervia como brasa “nas veias” que interligavam as pedras. Era dali que vinha a iluminação diferenciada. Entre aquelas pedras agora pareciam correr pequenos rios de fogo, rios estes que fizeram a mulher gritar de dor ao queimar a mão.

Ao ouvir o grito, o rapaz imediatamente pensou no pior e arrombou a porta, temendo que algo ruim tivesse acontecido com a tia Marta. Quando entrou, contemplou a mulher aos prantos, segurando a mão trêmula com a outra, como se a dor que sentia fosse insuportável.

Tia? — Dário estranhou. — O que foi? O que houve com a sua mão? — caminhando na direção dela para observar melhor o que acontecia.

A queimadura era feia. O que será que a tia tinha aprontado para se queimar daquela forma? O sobrinho se assustou, pois nunca tinha visto uma queimadura como aquela.

Essa coisa que eu comprei... — justificou a velha Marta, apontando para a placa de madeira.

Isso? — desconfiou o sobrinho, tentando relacionar em mente uma coisa com a outra.

Não encosta, filho... Isso queima! — alertou a tia.

O rapaz não conseguia acreditar que a queimadura da mão da mulher tivesse origem em algo feito de madeira, principalmente algo tão ultrapassado como aquilo. Mas, ao observar o objeto, ficou nítido que ele ardia em chamas por cada uma das finas veias que ligavam as pedras àquela marca de mão, que agora brilhava como se estivesse preenchida por lava.

Onde a senhora arrumou isso? — perguntou Dário, assustado com aquela tecnologia que julgava estranha.

Aos poucos, seus olhos não conseguiam evitar o artefato, e ele percebia que a vista embaçava sempre que tentava afastar sua atenção para outro lugar. Só Deus sabe o quanto evitou ser seduzido por aquilo, mas sua mão direita não o obedecia e seguia ferozmente em direção ao objeto.

Filho! — bradou a mulher, desesperada, percebendo que o sobrinho perdia aos poucos o controle do próprio corpo.

A tia percebeu que havia algo errado com o sobrinho, que parecia lutar dentro de si contra alguma coisa. O rapaz tentou com todas as forças recuperar o controle do corpo, mas a mão já não o obedecia, e aquele desejo o venceu, fazendo com que tocasse a marca presente na placa, tocando a mão física sobre aquela desenhada. Uma mão tocava a outra: a mão direita do rapaz com a mão esquerda do objeto. Dário simplesmente desaparecia em meio à sala, sob o semblante boquiaberto e assustado da mulher que o assistia.

A Senhora Marta, ainda trêmula e com a mão dolorida, não conseguia acreditar no que via. Não mais podia culpar a velhice ou os olhos falhos por uma alucinação, já que tinha provas dolorosas de que aquela fora uma aquisição m*****a. Assustada e observando que o objeto não parecia mais arder em chamas, tocou outra vez nele, percebendo, no entanto, que dessa vez estava frio. Notou também que se levantar daquela cadeira se tornava agora um ato patético.

O domínio sobre o corpo era uma sensação positiva, mas, por outro lado, perder o sobrinho em uma circunstância como aquela era algo aterrador. Os pensamentos faziam verdadeiros malabarismos em sua mente. Era como se sentisse culpada por ter adquirido um item “amaldiçoado”, por ter colocado em risco a própria vida e agora, principalmente, pelo que acontecia com Dário.

Nunca saberia sozinha se o rapaz estava morto e não conseguia acreditar que ele ainda estava vivo. Eram muitas as perguntas e, conforme as horas passavam, sentia que precisava de ajuda; precisava falar com alguém para tentar desvendar o que havia de fato acontecido.

Mas ela não contava que aquelas perguntas difíceis, expostas a outrem, a levariam ao manicômio. Contar tudo foi um erro grosseiro; ninguém acreditou nas suas palavras ou na origem que afirmou ter a cicatriz presente na mão, uma vez que, quando voltou para a casa com outras pessoas, o objeto que levou o sobrinho havia desaparecido, e foi mais sábio para aquela multidão pensar que ela teria se queimado com outra coisa e estava delirando.

Não bastasse o caráter fantasioso dos fatos que mencionava insistentemente como verdadeiros, caiu ainda em descrédito por um relatório de anos atrás, do qual, pelo pouco tempo que morava na cidade, não tinha até então conhecimento da existência.

A explicação para a internação forçada da Senhora Marta baseou-se em um fato ocorrido doze anos atrás, quando uma moça foi submetida à mesma pena por carregar argumentos muito semelhantes aos seus e perturbar a ordem pública, forçando uma investigação cansativa e inconclusiva sobre o desaparecimento sobrenatural do noivo.

Como era a mesma cidade em pauta, definiram o problema da tia de Dário como histeria e nenhuma autoridade quis dar aos fatos novos fé suficiente para uma melhor investigação. Nem o novo prefeito quis que os burburinhos daquela sociedade faladeira se tornassem um problema maior para ele.

Apenas jogaram a velha mulher ali, em um quarto que mais parecia abandonado, a fim de que não mais agitasse a cidade com aquelas histórias sem pé nem cabeça.

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