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Klaus

KLAUS ERA FILHO DE EDUARDO SANZ e essa era a única certeza que teve desde que se tornou órfão com apenas seis anos de idade. Desde o anúncio da morte dos pais, nunca mais os viu, nem mesmo os corpos deles.

O menino crescia compartilhando muitas semelhanças com o pai, mas crescia em meio a circunstâncias que pareciam por vezes tão incompreensíveis ou mal explicadas que sempre tinha a sensação estranha de que por detrás da sua vida trágica, havia algum segredo.

Quando era pequeno e a morte dos Sanz ainda era um acontecimento recente, teve a impressão de estar em um pesadelo muito realista: uma sombra aparecia, sinistra e aterradora, mas, no entanto, sem expressão nenhuma. Isso se repetia todas as noites ao pé da cama.

Talvez fosse apenas um vulto preto produzido pela dor prematura de perder os pais na infância, apenas uma sequela daquela ausência muito recente para ser remediada por qualquer coisa.

Estranhamente, conforme o tempo passava, se acostumou com aquela presença vazia ali e não deu mais tanta importância a ela. Sinceramente, até se sentia confortável com aquela visão sombria, dava-lhe a impressão de que era protegido por algo.

Todas as crianças carregavam a possibilidade de tornarem-se, mais adiante, adultos medrosos e inseguros diante de qualquer hipótese sobrenatural. Mas, ele, em face do costume, contava com a força necessária para considerar qualquer coisa que lhe causasse medo apenas como uma parte desagradável de si mesmo, um resquício de dor e apenas isso.

Ele era neto de Eugênia Sanz e dividia em seu sangue a ascendência brasileira da mãe, Luíza, e espanhola por parte do pai. Segundo a avó, o nome dele havia sido uma inspiração romântica, um acordo entre o casal, que apreciava muito um poeta norte-americano desconhecido ao qual fora atribuído o nome Klaus Robes.

Por mais que, de início, tivesse certa curiosidade sobre o homem misterioso que lhe inspirava o nome, o neto de Eugênia Sanz crescia com vagas memórias de infância, recordava cada vez menos dos seus pais, passava a conservá-los como figurantes das curtas passagens de um filme antigo do qual, com o passar do tempo, não se lembraria com frequência. Talvez essa plasticidade nos sentimentos do menino fosse resultado do trauma, do contato com a morte precoce dos pais, a notícia difícil de superar até mesmo para Eugênia Sanz, que parecia nunca se conformar com o vazio deixado pelo filho.

Ao lado do pequeno Sanz, sempre estavam a avó paterna e Otto Silvace, seu vizinho e melhor amigo do pai, que sempre, por alguma razão, fazia questão de estar ali. A avó gostava muito dele, mas tinha um pé atrás com a 000Pater, fábrica de armas localizada em Sevilha, em que a maioria dos funcionários eram brasileiros, onde Otto e Eduardo Sanz trabalhavam juntos. Algo a fazia pensar que se o filho tivesse escolhido qualquer outro caminho para a sua vida, estaria vivo. Intuição?

Os avós maternos, pais de Luíza Rocha Sanz, Klaus viu pouquíssimas vezes e todas as vezes que os encontrou, teve certeza de que não gostavam muito do pai, nem dele por consequência. A Senhora Ana ao menos tentava agradá-lo, mas o Senhor Francisco não tinha nenhuma simpatia por ele.

Para Klaus, Otto fazia as vezes do pai, se sentia próximo dele porque o homem também colecionava várias perdas e mesmo assim permanecia firme em seu propósito.

O Silvace perdeu a esposa, o filho, o irmão, o melhor amigo e mesmo assim foi capaz de seguir adiante, dispondo-se até mesmo a se preocupar com o que restava da família do amigo.

Otto trabalhou por longos anos na 000Pater com o pai do menino e, por mais que não quisesse trazer Klaus para este caminho, era inevitável que fosse visto com admiração por ele.

Embora se esforçasse, não conseguiu impedir o primeiro contato do menino com armas, já que a avó materna evitava o pequeno, segura do desinteresse do marido pelo neto, mas sempre cedia aos pedidos natalinos que lhe chegavam pelo correio. O pequeno Sanz queria uma arma potente e perigosa que a Senhora Ana sequer titubeou em fornecer. Em meados de dezembro, chegava em um pacote uma sutil recordação da ausência da avó: um rifle americano de brinquedo.

Para o azar de quem amava o pequeno Sanz, conforme o tempo passava, ele se empolgava ainda mais com as armas e mencionava a 000Pater mais do que Otto gostaria. Quando o rapazinho enaltecia a fábrica de armas, Otto subitamente mudava de assunto como se fugisse. O amigo do pai tentava afastá-lo de qualquer contato com a fábrica que existia ali, talvez porque acreditava que o menino estaria melhor longe de tudo aquilo.

A avó paterna não gostava de ver nem mesmo a réplica do winchester antigo nas mãos do neto, pois Eduardo Sanz também desde pequeno gostava muito de armas e foi essa apreciação que o levou às portas da fábrica de Sevilha. A matriarca não desejava de maneira nenhuma perder o neto da mesma forma que perdeu o filho, embora não houvesse uma relação direta entre o trabalho na fábrica e a morte acidental dos Sanz, que estamparam fotos de capa em um jornal famoso que relatava com impacto a ocorrência do inesperado acidente com um avião renomado de uma empresa aérea famosa que os dizimara junto a cerca de quatrocentas pessoas.

A narradora não sabe à esse momento se concorda com Eugênia Sanz sobre os perigos de se trabalhar em uma fábrica de armas. Há um fato inequívoco: “tem armas lá”, mas como diria um conhecido seu: “Não são as elas que atiram” e isso pode também ser verdade. A preocupação da mulher beira a preocupação de mãe, a intuição, o amor, mas o fato é que qualquer lugar em que houver um homem e ele tiver uma má intenção, carrega a possibilidade de uma tragédia e isso não envolve necessariamente a presença de armas.

A avó era tradicionalmente católica e tinha uma visão um pouco rudimentar das coisas, para ela seus vizinhos eram todos bruxos. Não perdia a oportunidade de falar de Carmem, a vizinha dos vestidões vermelhos e pretos que sempre estava em todas as festas e comemorações locais. Sempre que a velha começava a falar, Otto se segurava para não gargalhar das suas conspirações e o jovem Sanz falhava em não conseguir imitá-lo, cedendo a risadas que a avó encarava com desprezo.

Aos poucos, o menino crescia e para o desespero da mulher, bem rápido. Parecia que quanto mais Otto e Eugênia tentavam afastá-lo da ideia de se aproximar da fábrica de Sevilha, mais instigante essa ideia se tornava. Sabe-se lá porque os jovens, quando tem de se encantar com alguma coisa, sempre brilham mais ávidos pelas proibições.

O amigo do pai o convenceu a tentar um cargo em uma empresa de imóveis, pensando que talvez o costume e o conforto da profissão, tirassem dele o desejo pelas armas, mas ele não sabia ou não estava a par do que acontecia com os orçamentos da empresa e o futuro breve dessa escolha foi frustrante, pois a empresa não podia pagar seus funcionários.

Otto seguia tentando descartar a 000Pater como uma opção para o Sanz, mas para o seu desespero, todas as empresas que sugeriu estavam falidas e queriam apenas funcionários para iludir com promessas. O último emprego de Klaus foi o de auxiliar em um jornal famoso, mas o Diário da Espanha também quebrou. Se tornava uma prática comum daquelas empresas ostentar uma base sólida, sem compromisso com a verdade, e ao tentar dialogar com a gerência ou com o departamento pessoal da empresa, o rapaz foi ameaçado.

Se já nutria alguma apreciação por armas, aquela foi a gota d'água para que batesse às portas da 000Pater imediatamente, sem falar com a avó ou com o Silvace. Era um jovem forte, ambicioso e pela influência involuntária de Otto, entendia muito sobre armas.

Dentro do empreendimento, um homem grisalho olhava-o dos pés a cabeça, lhe fazia várias perguntas sobre suas motivações, seus outros trabalhos, sua família e, principalmente, sobre Eduardo Sanz. Por último, fez perguntas sobre o processo de fabricação de armas, as quais o rapaz respondia com mais facilidade do que as anteriores.

O homem que o analisava se apresentou como Marcos Town e se mostrou intrigado com a presença dele ali, uma vez que não sabia que Eduardo Sanz tinha um filho.

Muito bem, Sanz! Vou enviá-lo para análise e se for aprovado, receberá uma comunicação minha.

Ok, Senhor Town.

Enquanto o rapaz passava pela porta, Otto empalidecia. Não acreditava que tomava uma decisão daquele porte sem consultá-lo.

O que está fazendo aqui?! — Otto se desesperou.

O homem sentia-se decepcionado e chamava o rapaz para um canto:

Está louco?! O que o faz pensar que esse é um lugar para você? — indagou revoltado, olhando à sua volta para certificar-se de que ninguém os escutava.

O fato de não ter conseguido um outro lugar em Sevilha que fosse de fato meu… — o rapaz desabafou.

Sua avó sabe que está aqui? Ela sabe?! — o homem perguntou irritado.

O que acha? — Klaus deu de ombros.

Deveria estar no Diário da Espanha e não aqui! — Otto bradou, se referindo ao jornal no qual o rapaz trabalhava.

Pois bem, mais uma empresa falida… Suas sugestões foram péssimas, Otto Silvace!

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