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Um casamento fracassado

MORGANA ACORDOU UM POUCO TARDE, tarde demais para se dar conta de que o esposo que ficava semanas fora de casa, já tinha ido para o trabalho. Não

sabia os motivos pelos quais havia dormido por mais de quatorze horas. Talvez estivesse depressiva, pois o homem já não lhe dava tanta importância, parecia que os tais sentimentos ardentes de antes ficavam desérticos e gelados, sobrevivendo às vezes em uma palavra vazia e outra.

Ela o amava, mas aquele relacionamento já não era mais o que prometia ser no início, já não era mais semelhante aos filmes de paixão que costumam deixar os corações dos jovens em chamas, estava em frangalhos.

O casamento fracassava a cada dia e a mulher conservava no íntimo uma insolúvel intuição de que o marido lhe escondia algo. Essa impressão se nutria a cada experiência cotidiana, ficava nas perguntas não respondidas, nas perguntas respondidas com raiva ou descaso. Será que Vitor havia se apaixonado por outra mulher? Quem seria a serigaita que lhe roubara o marido? Ou será que o homem nunca havia sido, de fato, seu?

Embora fosse cética, todas essas perguntas pesavam menos quando frequentava a casa da cartomante, que era e sempre havia sido sua amiga, na proporção certa, de uma propriedade imune às dúvidas, ao tempo e à quaisquer circunstâncias.

Seria bom vê-la de novo, mas agora não lhe restava lembrança alguma a não ser o baralho que ocasionalmente encontrara na bolsa após o sumiço da amiga. Talvez estivesse tão desesperada naquela noite, que o levara consigo sem perceber, depois de voltar à casa da amiga de táxi, depois daquela intrépida ligação que não conseguiu atender. Talvez ali, naquela noite, naquela chamada, houvessem todas as explicações que poderiam ser dadas, mas que lhe foram roubadas por um maluco que cruzou seu caminho em um hélgeb preto.

O acaso era, no entanto, divertido em uma pequena parte, Clarice nunca imaginaria Morgana celebrando tantas vezes um baralho em sua gaveta, olhando-o todos os dias um pouco para diminuir a tristeza causada pelo seu desparecimento.

Durante aquela semana, debruçou todos os dias por cima do notebook pálido e prateado em busca de respostas, em busca de ressuscitar o casamento ou ter mais certezas daquilo que o tempo tornava nítido na frente de seus olhos. Digitava o https que lhe dirigia a página inicial do G****e, de onde obteria uma enxurrada de perguntas, por vezes, iguais as suas, cujas respostas seriam ainda mais confusas do que as que Clarice tirava dos baralhos…

Quais os comportamentos de um esposo traidor? Meu marido está saindo com outra mulher? Por que tenho a sensação de que meu marido me esconde coisas? Como saber se um casamento chegou ao fim?”

Ficou pensando por um longo tempo sobre estas coisas, triste e confusa, um pouco empalidecida pela imaginação que era fértil, intensa e sua inimiga.

Olhava para o espelho, mas ele já não dizia que seus trinta e poucos anos a faziam uma bela mulher que envelhecia como vinho. O espelho não dizia nada… Parava para pensar em um momento que, na verdade, o espelho nunca disse nada, ela que imaginava ser bela e suficiente, ela que ouvia vozes inexistentes, idealizava demais sobre os fios ruivos, o semblante pálido, talvez Vitor não enxergasse beleza nenhuma nisso ou estivesse tão enojado daqueles olhos verdes, daquelas mãos cujas bordas das unhas avermelhavam sem motivo aparente…

A narradora evitou ouvir o restante dos pensamentos da ruiva por pura indignação, pois não lhe caía bem que uma mulher tão bonita deixasse se atingir pelo espelho daquela forma. O bom senso concordaria que algumas mulheres têm vendas nos olhos e não conseguem enxergar a própria beleza.

A mulher fez um belo jantar, cujo aroma seduzia o estômago de qualquer um, mesmo de longe. Embora não seguisse receitas à risca, tinha na culinária um talento quase místico e suas mãos delicadas e sutis sempre produziam boa coisa. Depois de preparar a comida, conformada com a possibilidade de que o marido não voltasse naquela tarde, sentou-se na cadeira de balanço e adormeceu.

O esposo chegou umas três horas mais tarde com um buquê de rosas alaranjadas e bateu à porta como se não tivesse a chave da residência.

A mulher abriu a porta ainda com um semblante desgastado pelo desânimo, mas que rapidamente se desfez em felicidade ao ver o rosto do homem.

Não imaginava que ainda gostasse de mim dessa forma… — sorriu euforicamente ao pegar as flores.

Não imaginava que ainda duvidasse do meu sentimento… — o homem a abraçou.

Como era de costume, sentia que esteve “procurando chifres em cabeça de cavalo”. Era um relacionamento feito de “coincidências”, o marido tinha alguma atitude romântica e sedutora sempre que a mulher duvidava de algo…

Impressionando o inimigo

Klaus demonstrava ter mais sede de competição do que nunca, esforçava-se como atirador no salão de treinamentos, descarregando uma arma após a outra em uma velocidade recorde, sem errar o alvo. Sobrevivendo após as últimas descobertas, enquanto buscava dentro de si alguma força para executar uma vingança.

Surpreendente, Sanz! — comentou Marcos, passeando um pouco distante.

Sabendo que grande parte das autoridades locais estavam compradas ou ameaçadas pela “Árvore” e isso incluía a polícia, cogitou que explosivos fariam um bom trabalho, mas lembrou-se de que alguns funcionários ali apenas trabalhavam em uma fábrica de armas e sequer tinham conhecimento sobre o que de fato acontecia nos bastidores.

O rapaz desejava encontrar o tal “Sarbeth”, ao qual Marcos e Vitor se referiam com tanta discrição, e só estaria feliz quando ele estivesse morto, mas para isso precisava, aos poucos, ganhar a confiança dele.

Aproveitando-se do fato trágico que comprometia as câmeras das salas de energia, ele deu um jeito de salvar Clarice, a cartomante, antes que fosse tarde. Sabia que não a tinham sequestrado à toa e que ela poderia saber algo que o ajudaria. Primeiramente raptou-a, depois convenceu-a a ajudá-lo e elaboraram um plano em conjunto. Na falta de uma faxineira, a mulher se disfarçou como tal e discretamente fugiu com ele.

No entanto, as coisas que Clarice dizia sobre Marcos eram confusas, a carta do monstrengo feio que a mulher escondia no cabelo preso ainda permanecia inexplicável e Klaus, àquele ponto, se recordava de alguma semelhança com os seus pesadelos. O verdadeiro interesse dos homens era o baralho mencionado na gravação, o tal baralho do qual a carta teria pulado, o que o rapaz, sinceramente, tentava acreditar ser uma coincidência superestimada.

Diante do desespero da mulher sobre os motivos que fizeram com que fosse sequestrada, o rapaz explicou que Vitor, marido de Morgana, cuidava dos interesses da Árvore no Brasil e que aparecia quase sempre naquela fábrica de armas. Contou ainda que a amiga da cartomante estava sendo grampeada e que, por isso, Clarice fora raptada com tanta precisão.

Embora estivesse a salvo, Clarice permanecia trêmula, queria avisar a amiga que o seu esposo era, na verdade, um canalha, mas agora que corria riscos, o rapaz não aconselhava que voltasse ao Brasil.

Da conversa com Clarice, restaram apenas impressões estranhas sobre tudo. Ela falava muito sobre Marcos e, segundo ela, como ele, outro rapaz havia desaparecido de maneira sobrenatural na cidadezinha onde morava.

Sinceramente, o rapaz não estava lá tão preocupado com Marcos, nem levava a sério aquelas circunstâncias “sobrenaturais” reveladas pela cartomante. De certa forma, o sujeito ter mentido seu sobrenome para que ele fosse aceito na Árvore tinha sido de grande valia, sem isso nunca poderia ter descoberto nada. Por essa razão, considerava ter uma pequena dívida com ele, mesmo que tivesse ocultado o assassinato dos seus pais.

A mulher estava à salvo, pelo menos por enquanto. Como o rapaz ainda possuía contato com algumas pessoas que salvou, não foi difícil conseguir alguém para protegê-la.

O sumiço da cartomante, por outro lado, gerou um caos catastrófico na 000Pater e logo designaram alguém para procurá-la. Klaus, por sorte, conseguiu entregar um corpo muito parecido e teve sucesso ao afirmar ser o dela.

Naquela semana, o rapaz foi o melhor funcionário daquela “empresa” e muito elogiado nos bastidores aos quais não tinha acesso, aos quais não sabia que existiam. O rapaz ganhava muito destaque e Vitor estarrecia de inveja, não conseguia entender como ele poderia ser tão bom, sendo tão jovem.

Marcos, no entanto, descobriu o que Klaus planejava, descobriu a compra de explosivos e chegou a conclusão de que certamente o Sanz sabia mais do que deveria e seria apenas uma questão de tempo até estragar os seus planos. Por essa razão, chamou-o em sua sala, aguardou-o impacientemente e fechou a porta assim que ele entrou.

Klaus Sanz, meus parabéns por fazer todos da Árvore de idiotas, mas eu tenho algo muito sério a dizer.

Seja breve, Sr. Town — Klaus cobrou.

O que planeja, hein, Sanz?

Não sei do que você está falando.

Salvou a cartomante, colocou pessoas que salvou em perigo para protegê-la, entregou um corpo idêntico ao dela para análise e encomendou seiscentas caixas de explosivos ao Nincomo.

Anda muito informado sobre minhas últimas ações… está entediado?

Klaus, eu não contei sobre seus pais porque sabia que no exato momento em que você soubesse que eles foram assassinados, colocaria tudo a perder. Pelo visto, eu não estava errado.

Não tinha o direito de me esconder algo tão grave.

Digamos que eu estivesse errado. O que faria, Klaus, contra o assassino dos seus pais? Você atiraria nele?

Algum problema se eu atirasse?! — Klaus provocou.

Você está brincando com fogo, não consegue se lembrar de Sarbeth no palácio sombrio? Não consegue se lembrar de nada? Você correrá em direção a um massacre se decidir atacá-lo.

Graças ao que você me fez beber naquela noite, eu não me lembro de nada que não sejam as intermináveis listas de nomes, mas sei que você nunca deve tê-lo atacado para dizer essas coisas.

Eu não o ataquei exatamente por saber quem ele é. Você está agindo como um emocionado e dessa maneira a única coisa que vai conseguir é uma derrota emocionante.

Se me dá licença, Sr. Town, eu tenho coisas a fazer…

Vai se arrepender, Klaus, amargamente, por não me escutar!

O rapaz saiu da sala, deixando Marcos enfurecido e seguindo em direção à própria sala.

Otto ouviu algum murmúrio sobre Klaus se tornar um assassino e não gostou nem um pouco de ouvir tantas coisas sobre ele, parecia que Klaus tomava um rumo ruim, parecia que já não era capaz de reconhecê-lo como o garoto de antes.

O homem recuou por alguns dias, mas não resistiu a tentação de procurar pelo rapaz novamente para acertar algum ponto fora de órbita na cabeça dele, bateu à porta, pela qual ecoou aquela voz de sempre, pálida, no entanto:

Entre!

Olá, Klaus, preciso falar com você!

Algum problema? — perguntou o rapaz, encarando o chão abaixo dos pés.

Um sério problema, Klaus… Você!

Poderia explicar melhor? — Klaus indagou.

Como pode ter se tornado um assassino? Como, Klaus?

O que queria que eu fizesse? — o rapaz cobrou.

Qualquer coisa, menos isso…

Sinto muito… — o rapaz disfarçou.

O seu pai me fez prometer cuidar de você, caso acontecesse alguma coisa… Não consigo acreditar que se tornou isso…

Eu não matei ninguém, Otto… — confessou o rapaz com uma voz baixa — Descanse quanto à isso.

O homem à sua frente estava boquiaberto, não conseguia segurar a felicidade, pois Klaus não se tornava um assassino como havia imaginado.

Por outro lado, matutava os motivos que faziam o jovem agir daquela forma, pois nem mesmo Eduardo Sanz havia chamado tanta atenção e a fama do rapaz atravessava os corredores.

Enquanto eles conversavam, alguém subitamente abria a porta da sala em que estavam, girando a maçaneta. A primeira reação de ambos foi o silêncio imediato e a segunda foi o susto.

Clópis entrou e fechou a porta, estava ali angustiada, pálida, parecia ter visto um fantasma.

O que foi, Clópis? — Klaus perguntou.

Klaus… Não trago notícias muito boas… Querem matá-lo!

Por que querem matá-lo? — Otto se assustou.

Vitor voltou para o Brasil, mas antes disso revelou ao soberano que decidiu rastreá-lo após você entregar o corpo da cartomante e descobriu uma movimentação estranha no seu trajeto, disse que seguiu para a casa dos seus pais mais de cinco vezes essa semana e revelou que mentiu seu sobrenome para ser contratado. Eu ouvi a conversa deles, ele está aqui e sabe que você é um Sanz.

Como Klaus era sempre discreto, a única forma de retirá-lo de cena, seria revelando informações graves sobre ele, o que Vitor fez com maestria.

Será que pode me explicar o que está acontecendo? — O homem cobrou Klaus.

O soberano teme um acerto de contas — Klaus revelou — E ele está certo.

Klaus… ele não é como você pensa, não é um homem comum! Vitor o chama de Sarbeth, ele é pavoroso! Nunca vi algo tão diabólico! Ele me viu correr e eu estou desesperada! Não quero morrer!

Otto olhava fixamente para a porta, um pouco trêmulo, estava no pior lugar possível naquele momento: a sala de Klaus, tinha a pior pessoa possível ao seu lado: Clópis, que Sarbeth viu correr. A qualquer minuto, algo ruim aconteceria com todos eles.

Para o desespero de todos, o Silvace não estava errado, aquele rei esquisito se aproximava e girava a maçaneta da porta, alvejando Clópis e em seguida Otto, deixando Klaus perplexo à sua frente. O rapaz foi pego de surpresa e a sua primeira reação foi atirar várias vezes contra aquele sujeito. No entanto, o corpo daquele ser se reintegrava após cada disparo, revelando que não era possível atingi-lo. Naquele momento, Klaus percebia que o plano arquitetado era inútil, não poderia matar o sujeito que estava a sua frente porque não estavam em condições semelhantes, ele era invencível e qualquer esforço que fizesse seria desnecessário.

Como eu posso ter deixado passar sob meus olhos um Sanz… — o indivíduo gargalhou seguindo em sua direção — Se vingue, Klaus, Vamos! Está com medo? Você foi hábil em me enganar, mas isso não é para sempre, Sanz! Onde estão seus explosivos? Você acha que eu sou um cãozinho para ter medo de bombinhas?

Vai pagar caro pelo que fez! — Klaus bradou enfurecido.

Talvez seu mundo acabe antes disso… — Sarbeth levantou-o pelo pescoço.

Marcos estava certo, se arrependeria amargamente por não ouvi-lo. Klaus gostaria de detê-lo, mas estava diante de algo sobrenatural que parecia roubar sua energia por completo. Naquele momento em que, aos poucos, se acostumava com a ideia de uma morte lenta e dolorosa notou um item no cenário que até então não havia percebido, um retrato grandioso de um homem velho, cuja barba passava um pouco da borda inferior do quadro. Pensou que estivesse alucinando e então teve certeza quando notou que o homem do quadro também olhava para ele.

Sarbeth parecia irritado com alguma coisa, mas Klaus só conseguia ver o retrato, mais precisamente aqueles olhos que pareciam encará-lo com alguma compaixão.

Aos poucos, tudo desaparecia…

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