Após perder seu pai ainda criança e sob os cuidados de uma mãe ausente, Violeta, aos quatro anos de idade, se viu refém dos abusos do seu padrasto. Abuso esse que a deixou marcas com as quais ela teve que lidar até então sozinha. Aos 19 anos, num país em colapso e quase na metade do seu curso superior, ela recebe o que menos esperava: alguém que a possa ouvir.
Ler mais28 de fevereiro de 2019Ser escritora é um tanto quanto complicado a depender do ponto de vista. Sendo eu quem sou: mulher, negra, nordestina, pobre e periférica, chega a ser um ofício quase solitário.Mulheres negras escritoras não costumam se declarar como tal. Elas dizem: “Quando eu for escritora… Um dia eu vou ser…”. Ou no máximo falam: “Eu escrevo umas coisas…”, porque o ser escritora parece que não nos contempla, não nos pertence. Saber manipular as palavras não basta se o seu status social e a cor da sua pele não forem os que são aceitos pelo mercado. Afirmo isso sob um olhar pessoal, de quem vivencia isso diariamente, e não fundamentada em pesquisas científicas e etc.Dia desses, eu buscava no g****e por poetisas negras do início do século XX. Sabe quantas apareceram? Nenhuma. E isso não aconteceu porque elas não existiam, mas sim porque a história e seus registros estão em mãos embranquecidas. O que me importa se Cecília Meireles fora a grande poeta do
14 de agosto de 2020Quando eu comecei a ter interesse por rapazes e a querer ter um relacionamento foi algo muito estranho.Eu cresci vendo os meus pais discutindo a todo o tempo e via as mulheres ao meu redor sendo repetidamente traídas por seus companheiros e achando isso como algo natural. Eu sabia que não queria isso pra mim.No entanto eu também não acreditava que algum dia encontraria alguém que me amasse da forma como eu era. Que aceitaria as minhas particularidades, me respeitasse e me transmitisse confiança.Então, quando eu me interessava por algum cara, eu me moldava a forma como eu achava que o agradaria e o faria me amar. E também os idealizava. Eu não os via como realmente eram. Isso fez com que eu desperdiçasse um bom tempo da minha vida dedicando o meu amor a caras que não mereciam nem me ter por perto.E, como você pode imaginar, eu acreditei ou quis acreditar em falsas promessas de homens, que, tempos depois, eu descobri que só queriam me usar
26 de janeiro de 2018Antes de entrar definitivamente nos pontos que quero tratar, entenda que minhas concepções relacionam-se ao lugar de fala que ocupo socialmente. O lugar de mulher negra de pele clara, pobre e baiana que cresceu tendo sua imagem moldada e ditada pela indústria midiática que atende aos interesses da sociedade patriarcal e estruturalmente racista.Enquanto criança, eu quase não me via na televisão. Não havia quem me representasse. No máximo, eu me encontrava naquela propaganda daquela marca de produtos capilares que colocava uma mulher negra de pele clara, magra, que ao ver o reflexo do seu cabelo crespo e frisado olhava-se com espanto, e a voz da locutora ao fundo perguntava: “Quer ter cabelos lindos e saudáveis?”. E ao fim da pergunta, a mulher negra de pele clara aparecia novamente com seus cabelos lisos e um largo sorriso no rosto. E claro, ela segurava, orgulhosa, a linha completa da marca em questão. Imagine a menina de seis, sete anos que ouvia da sua
Eu não sei dizer ao certo quando começou a minha depressão. Às vezes acho que ela já nasceu comigo. Mas eu me lembro bem da menina quieta demais e que quase não falava. A menina que não confiava nas pessoas, que era ridicularizada por ser baixinha demais, barriguda demais, um cabelo duro demais, uma testa grande demais, sobrancelhas grossas demais e que sorria muito pouco. Eu me lembro bem dessa menina porque eu era essa menina.Tudo foi ficando pior aos dez anos, porque fora a época em que eu comecei a entender as coisas que tinham acontecido comigo, mas eu não soube o que fazer para me ajudar.Eu amava o meu cabelo natural. Porém de tanto ouvir os outros falando que ele era ruim eu comecei a alisá-lo. Passei a odiar o meu corpo, e com dez anos, comecei a fazer abdominal. Dez anos.Aos doze, evoluiu o meu medo de estar sozinha nos lugares. Eu evitava passar perto dos homens porque não queria ouvir as obscenidades que eles me diziam: “Gata”, “Morena”, “Gos
SE você chegou até aqui, o meu mais sincero muito obrigada por ter dedicado o seu tempo para ler o meu livro.Não foi nada fácil escrevê-lo. Foram três anos de escrita e reescrita, muitas leituras de relatos de vítimas de abuso sexual infantil, além de alguns artigos escritos por psicólogos sobre o assunto.Foi muito significante para mim ter construído um elenco majoritariamente negro, ter trazido pautas do feminismo e movimento negros, e, aliado a isso, ter ambientado a narrativa em solo baiano e num contexto universitário.Eu espero que você tenha gostado da obra, e, se assim quiser, recomende-a também para outras e outros.Com carinho,Joelma Santos
ERA final de semestre. A universidade estava quase vazia. Eu ainda não tinha me recuperado totalmente da minha apresentação no Seminário Interdisciplinar de Pesquisa. Eu odiava falar em público; ter todas as atenções voltadas para mim. Mas no fim até que fui bem. A banca tinha me dado 9.8. Dois décimos retirados em razão de uma norma de citação indireta da ABNT esquecida.Cleo estava numa das mesas sob o tamarindeiro, acompanhada por Lucas, sétimo semestre de Vernáculas. Ela tinha me contado que eles se aproximaram durante o Fórum da Juventude Preta. Lucas era poeta. Escrevia, principalmente, poesia marginal. Ela o dizia algo, empolgada, e ele a ouvia atentamente; seus olhos concentrados nos olhos dela. Ela sorria. Ele sorria de volta. Sua mão direita contornava o maxilar dela, e, sem pressa, seus lábios se encaixaram. A proximidade de ambos fazendo com que seus cabelos encrespados formassem um coração.As mãos que envolveram a minha cintura e os lábios que beijaram o me
O calor que Filipe emanava para o meu corpo fora a primeira sensação que tive ao acordar. Sua mão esquerda repousava em minha cintura; minha mão direita contra o seu peito. Ele ainda dormia profundamente. A respiração lenta, o Black amassado, os lábios curvados levemente para cima. A última coisa de que me recordava da noite anterior era dos seus dedos acarinhando o meu cabelo.Afastei sua mão do meu corpo com cuidado para não despertá-lo, levantei-me devagar da cama, calcei as sandálias, peguei minha bolsa sobre a cadeira, lancei-lhe um último olhar e fui embora.Na sala, encontrei com dona Zefa e seu Antônio, que já deviam estar acordados há um bom tempo. Eu os agradeci pela acolhida e pedi para que avisassem a Filipe que eu tinha voltado pra casa.Ainda não passava das 08h30, mas o sol já tinia, sem dó. Eu tentei formular atitudes, palavras que pudessem ser ditas a Silvia, porém não conseguia pensar em nada. Busquei andar o mais lentamente possível. Acho que
MINHAS pernas doíam. Minha respiração estava descompassada. Lágrimas e suor se confundiam em minha face. A noite quente me abraçava. Acho que eu nunca tinha corrido tanto assim. Eu havia parado em frente ao colégio Modelo. Não sabia qual curso devia tomar em seguida. Recostei-me no muro, peguei o celular na bolsa e liguei para o contato que procurava. A rua estava quase deserta, mas ainda assim fiquei com medo de ser assaltada ou coisa pior. Ele tinha me atendido sem demora:— Preta, tá tudo bem? — perguntou, preocupado. Eu podia ouvir pessoas conversando e rindo do outro lado da linha.— Onde você tá? — procurei saber. Minha voz saindo mais chorosa do que deveria.— Em casa. O que aconteceu? Onde você tá?— Na frente do colégio Modelo — respondi, simplesmente.— Tô indo aí — falou antes de desligar. Cinco minutos mais tarde, Filipe estava ao meu lado, oferecendo-me o apoio que eu precisava. Ele não me fez pergunta
TALVEZ já passasse das 19h00. Mainha chegaria do trabalho a qualquer momento. Eu tinha colocado um pouco de café na xícara, esperando que o líquido preto despertasse o meu corpo, inerte. Meus punhos, avermelhados, latejavam a cada mínimo esforço.Eu nunca tinha tido a coragem de contar sobre o meu passado para alguém. Mesmo Cleo e Dona Luci, que eram duas das pessoas que eu mais confiava no mundo, ainda assim, nunca tive coragem de contá-las. Sempre me pareceu errado conversar sobre esse assunto com alguém. Eu tinha medo de ser julgada. Medo que alguém me questionasse por eu ter me calado na época.Eu comecei a escrever no caderno dos medos aos doze anos. Trezentas páginas quase que findadas por pesadelos e mais pesadelos. Muitos deles contados e recontados em intervalos de tempo diferentes. Eu sequer o lia em voz alta. Porque dizer as palavras tornava tudo ainda mais real. “Abusada sexualmente”. “Estuprada”. “Molestada”. São termos que você utiliza para se referir