VIOLETA
VIOLETA
Por: js_autora
Gaiola

PASSADO. Palavra confusa. Não é que eu desconheça o seu significado. É que apenas não faz muito sentido pra mim. Porque não é como se fosse realmente "algo que se passou". Ele vive. Faz parte do que sou, da mulher que me tornei. E apesar de em alguns momentos eu conseguir encará-lo de cabeça erguida, durante madrugadas como essa eu volto a me sentir indefesa, frágil, um lixo. 

Deslizo minhas mãos frias mais uma vez pelo meu rosto pegajoso. O suor recobre a minha pele. A vontade de entrar debaixo do chuveiro me consome, mas eu resisto. 

— Apenas respire, Violeta — digo mentalmente. 

Penso em voltar a dormir, mas o medo de tornar a sentir suas mãos ásperas em meu corpo faz a bile subir à minha garganta. Salto da cama, abro a porta do quarto e corro para o banheiro. Ponho todo o meu jantar para fora e dou descarga, com um leve receio de que minha mãe acorde. Retiro a camisa larga e ligo o chuveiro. Esfrego a minha pele com força, acompanhada  pelas gotas mornas, incessantes, que recaem sobre mim, me afogando. 

— Não foi sua culpa, Violeta — repito uma e outra vez na tentativa de me convencer disso, sem sucesso. 

Quero gritar, mas quem me ouviria? Por mais que eu me esforce, ele quase sempre vence.

Marcelo é como um maremoto do qual às vezes eu consigo me afastar da onda e outras que simplesmente eu o deixo me afogar. 

Pelo reflexo da janela do ônibus eu vislumbro os meus olhos cansados. Uma consequência da noite mal dormida e da manhã agitada na Papelaria & Livraria. Janela afora, a cidade de Alagoinhas quase me sufoca, aprisiona-me. As ruas mal planejadas se confundem. E pensar que Ruy Barbosa um dia a nomeou de Pórtico de Ouro do Sertão Baiano. Ouro que desde 1964, sob a forma de petróleo e gás natural, enriquece os bolsos dos burgueses e marginaliza a massa trabalhadora que compõe os bairros reconhecidos e desconhecidos dessa cidade confusa. 

— Iai — cumprimenta Cleo, sentando-se ao meu lado. 

— Oi — respondo quase num sussurro. 

— Oxente, não dormiu não, foi? Ansiosa por causa do primeiro dia de aula? 

— Na verdade, não. Tô de boa quanto a isso. É outra coisa — desconverso. 

— Tá bom. Eu já sei que você não vai me contar mesmo... Será que Luzia vai dar aula hoje? A gente só tem aula com ela na segunda.  

— E tu acha que ela vai faltar? — ironizo. Cleo assente com um sorriso e seguimos em silêncio pelo restante do trajeto. 

O ônibus para em frente à Universidade do Estado da Bahia, e, sem pressa, um a um faz seu caminho para o portão de entrada. 

É estranho estar aqui de novo. Depois de três semanas de recesso eu quase me esqueci que estudava aqui. Não que eu desgoste da universidade, mas o verbo gostar me parece muito forte para empregar a esse espaço acadêmico. 

Quarto semestre. Metade do curso, em tese. A área de Letras sempre me seduziu. Queria me graduar em outra cidade, mas não tinha dinheiro pra isso. E como apesar de tudo a UNEB ainda era uma boa universidade, escolhi cursar Letras – Língua Portuguesa e Literaturas aqui mesmo.  

Alguém passa por mim às pressas, me empurrando para a frente, e eu quase perco o equilíbrio. 

— Merda! — exclamo, apoiando-me em Cleo. 

— Pardon, mademoiselle — pede o rapaz, constrangido. Ele faz menção de estender sua mão para mim, mas eu o detenho. 

— Não encosta em mim — digo, irritada. 

— Vamos, Filipe. Nós já estamos atrasados — chama a moça a alguns centímetros dele. Ele me encara por alguns segundos e segue com passos rápidos para a sala 13. 

— Você tá bem? — questiona Cleo. Aceno em afirmativa. — Essa mania deles de ficar falando francês me irrita. 

— Disse a mulher que no semestre passado vivia falando uma palavra ou outra em latim — brinco. 

— É diferente, Vi — protesta. 

— É diferente por quê? Se eles estudam francês é natural que o falem, né? — replico. 

Letras com habilitação em Língua Francesa era a minha primeira opção, mas quando eu vi que na grade do curso não se estudava a literatura brasileira, eu preferi me matricular no curso de Vernáculas. 

— Tá bom. E por que você não deixou o cara te tocar? 

— Eu não gosto de estranhos me tocando. Você sabe disso. 

— É, eu sei. Vamos logo porque senão quem vai chegar atrasada é a gente — Seguimos pelo pátio e passamos pela sala 13, com sua porta entreaberta. Visualizo o rapaz e a moça sentados lado a lado, seus olhos fixos na professora à suas frentes. Devem ser namorados, imagino. 

Continuo andando logo atrás de Cleo e adentramos juntamente com mais cinco colegas de classe à sala 5. 

— Gostaria de lembrar-lhes que a nossa aula começa às 13h30 e não às 13h38. Não é porque é nosso primeiro dia de aula que vou tolerar a irresponsabilidade de vocês. 

— O ônibus atrasou, professora — ouço alguém argumentar. 

— Eu não quero desculpas, Márcia, quero que estejam aqui no horário — Eu ignoro o permanente estado de mau humor da professora Luzia e sigo com Cleo para o canto da sala, tomando os nossos lugares. 

Ela exibe em formato de slide a ementa da disciplina de Diversidade Linguística e explica que vamos estudar as variantes do português brasileiro, fundamentando-se na Sociolinguística e na Dialetologia. Seriam aulas maravilhosas se não fosse ela a professora. Luzia é do tipo que adora ressaltar seus títulos acadêmicos e se faz de militante da Sociolinguística nas palestras da universidade. Mas em sala, corrige quando algum de nós fala a segunda pessoa do singular sem conjugar o verbo segundo as regras da gramática normativa. 

Eu me mantenho em silêncio por quase toda a sua aula. Às vezes acho que ela nem sabe o meu nome, mesmo sendo minha professora desde o primeiro semestre. 

Abro o caderno, anoto uma coisa ou outra que ela diz e percebo a passagem das horas à medida que o sol forte se ameniza janela afora. 

— Eu juro, se no próximo semestre essa mulher tiver com alguma disciplina eu tranco o curso — protesta Cleo assim que saímos da sala. 

— Você só está dizendo isso porque sabe que ela não ensina nenhuma disciplina do quinto semestre — ironizo. Cleo esboça um sorriso, que desaparece aos poucos quando vê sua irmã, Beatriz, abraçada a Adilson. 

— Eu achei que o curso de Educação Física só tivesse aulas pela manhã. 

— Beatriz está como funcionária voluntária do UATI, sabe? O projeto que dá aulas a pessoas da terceira idade — explica. Seus olhos viajam do corpo de Beatriz para o seu próprio corpo. 

Cleo e Beatriz são irmãs de pais diferentes. Uma em nada lembra a outra. Cleo dizia que ela tinha melanina de mais e Beatriz tinha melanina de menos. O nariz e lábios carnudos de uma em comparação ao nariz e lábios médios da outra; o cabelo 4c crespo e volumoso de uma em contraste aos cachos 3b e comportados da outra; o corpo magro e sem muitas curvas de uma ao oposto corpo curvilínio e sarado da outra faziam com que Cleo se achasse menos atraente que a irmã. Eu a achava linda, mas Cleo não enxergava nenhuma beleza nela mesma. 

Os homens olhavam para Beatriz como se ela fosse um objeto sexual. O tipo de olhar que me causa ânsia de vômito. Adilson a abraça com um sorriso presunçoso no rosto. Ele é um babaca. Sexto semestre de História, que é um curso noturno, mas a qualquer hora é fácil encontrá-lo pelo campus. Ele é um machista que se faz de anarquista. Um completo idiota. Mas por algum motivo a Cleo gosta dele. 

Beatriz e Adilson vêm ao nosso encontro, e eu rezo para que o ônibus de 16h25 chegue o quanto antes. 

— Oi, Cleonice — diz Beatriz, mesmo sabendo que a irmã não gosta do seu nome completo. — Oi, Violeta. 

— Oi — respondo, mas Cleo permanece quieta. 

— Cleo, Violeta — cumprimenta Adilson. 

— Oi — retorque Cleo com um sorriso, mas dessa vez sou eu quem não digo uma única palavra. 

Beatriz percebe a mudança na postura de Cleo e se afasta do abraço de Adilson. Às vezes eu acho que Cleo quem dificulta um bom relacionamento entre as duas, sustentando uma rivalidade que não faz o menor sentido. Um silêncio desconfortável repousa entre nós e por sorte o ônibus chega. Adilson faz menção em aproximar seus lábios do rosto de Beatriz mas ela se esquiva e segue logo atrás de mim para a fila que começa a se formar para entrarmos no ônibus. Olho para trás e vejo que Adilson diz algo a Cleo que a faz sorrir. Rolo meus olhos em desaprovação e me concentro nas pessoas à minha frente. 

Pego um lugar num dos assentos no fundo do ônibus, perto da janela. Cleo e Beatriz se sentam no banco ao lado do meu; apenas o corredor entre nós. Seguem todo o caminho sem olhar uma na cara da outra. Quando o ônibus para um pouco depois do viaduto, elas se levantam. Beatriz passa direto, emburrada, e Cleo sorri de leve para mim. 

Lucimar sempre diz que cada um tem a família que merece. Eu não acho. Acredito que família é aquilo que a gente constrói. Mas, bem, eu não sou a melhor pessoa para julgar a família de ninguém. 


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