É quase como um redemoinho; as voltas e voltas que o café faz na xícara à medida que misturo o adoçante e o leite em pó ao líquido antes preto. Abro a embalagem do biscoito sete capas e o introduzo à boca, acompanhado por um gole de café com leite.
Eu odiava os finais de semana. Principalmente o sábado. Acordava cedo por costume, e como a Papelaria & Livraria não abria aos fins de semana e naquele semestre eu não tinha aula aos sábados, não tinha muito o que fazer. Eu normalmente gostava de aproveitar o sábado para dar uma geral na casa, mas só começava depois que mainha saía para trabalhar.A espuma que dominava a esponja envolvia a minha pele preta. Pela tampa da frigideira eu vislumbrava o meu reflexo embaçado; os pequenos pontinhos brancos do edredom emaranhados entre os fios do meu cabelo encrespado.— Você pagou a conta de luz ontem? — pergunta minha mãe atrás de mim, me fazendo derrubar a tampa no interior da pia com o susto.
Voltei meu rosto em sua direção e não me surpreendi ao notar que ela evitava fazer contato visual comigo. Era assim desde que eu me entendia por gente. Vez ou outra ela falava que eu era muito parecida com o meu pai, como se isso fosse ruim. Gostaria de poder ter concordado com ela, mas eu não me recordava do rosto dele. As fotos que tinha, Silvia jogou fora depois que se casou com Marcelo. Eu não sabia quase nada sobre quem tinha sido o meu pai. A não ser que seu nome era Fábio, que ele e minha mãe se conheceram na época do colégio, que ele trabalhava como pedreiro e que tinha sido atropelado por um babaca alcoolizado e não sobreviveu. Apenas isso. Informações ligadas por um pronome relativo anafórico e lacunas entre uma oração e outra que eu não tinha como preencher.— Sim, mainha — respondo. — Coloquei o recibo no classificador — Quando comecei a trabalhar, eu me comprometi a pagar uma das contas da casa. Foi a forma que encontrei de ser menos inútil para ela.
Silvia apenas concordou com a cabeça sem olhar para mim, ajeitou sua camisa de trabalho; a logomarca da farmácia Silva Rocha em destaque sobre o seu peito, pegou sua bolsa e saiu sem dizer uma única palavra. Respirei fundo e apanhei a tampa já limpa na pia, mas continuei esfregando-a, como se assim eu pudesse exorcizar o pesadelo que me consumia.Depois de arrumar a casa, preparei o almoço, tomei um banho e assisti a um documentário sobre Variação Linguística que Luzia tinha pedido para assistirmos com a finalidade de fazermos uma roda de conversa sobre o documentário na segunda. Não que eu fosse participar ativamente da discussão, longe disso. Só não queria estar por fora do assunto.
No jornal das 17h00 o jornalista olhava de um jeito dramático para a câmera e anunciava o caso de uma menina de dez anos que foi molestada pelo próprio tio. Ele descrevia repetidamente o sujeito como um monstro. Ele não era um monstro. Era uma pessoa de carne e osso que vivia a sua vida como tantos outros no mundo. Não é como se no seu rosto estivesse escrito "Eu molesto crianças", ele era só mais um homem nojento e sem caráter que por algum motivo acreditava que aquele corpo juvenil o pertencia. Se homens assim fossem monstros seria muito mais fácil manter distância deles. Mas eles são pessoas normais. Não dá pra saber que àquele homem é um estuprador. A não ser que você tenha sido uma vítima dele ou jornais desse tipo anunciem a sua prisão com uma foto do sujeito em destaque, o que muitas poucas vezes acontece. Eu encolhia o meu corpo sobre o sofá de forma involuntária. O jornal não exibia o rosto da menina, obviamente, mas era como se eu pudesse enxergá-la; como se ela fosse um reflexo do meu passado. Um reflexo de quem eu sou.Mainha foi trabalhar. Ela me deixou em casa com ele. Ele não trabalha. Eu ouvi quando ele disse na semana passada que o encarregado tinha botado ele pra fora da firma. Eu não gosto dele. Ele me faz sentir dor. Muita dor.
Por que você me deixou sozinha, painho?— Violeta, venha aqui! — grita Marcelo da sala. Ele pediu para que eu o chamasse de papai, mas ele não é meu pai. — Se você não vier, eu vou te pegar — avisa juntamente com o riso que me deixa com medo.
Fico na ponta do pé, abro a porta do meu quarto e vou devagarzinho para a sala. Ele me observa da poltrona em que está sentado e bate na coxa, me chamando para o seu colo. Balanço a cabeça querendo dizer que não. Ele se levanta com raiva e me tira do chão, me colocando sobre seu ombro. — Eu já lhe disse que não gosto de meninas desobedientes, Violeta — fala numa voz baixa, segurando numa das minhas tranças e enrolando-a nos seus dedos. Marcelo abre a porta da cozinha e segue comigo para o quintal, nos levando para o cômodo que mais odeio, o quartinho dos fundos. Ele pega a chave no seu bolso da frente, destranca a porta e me tira do seu ombro, me deitando no colchonete fedido e sujo. Ele fecha a porta e a tranca, dando mais um riso que me dá medo.— Eu não quero — digo entre soluços.
— Você não tem escolha, Violeta. Você é minha menina — fala subindo suas mãos pelas minhas coxas e puxando minha calcinha para baixo.
— Não! — grito, debatendo-me sob ele. — Não! Tira a mão de mim! Eu não quero!
— Violeta! — chama uma voz desesperada próxima a mim.
— Tira a mão de mim! — suplico entre soluços.
— Minha filha, acorde, por favor — ouço Silvia falar, chorando.
— Mainha? — chamo, assustada, abrindo os meus olhos marejados. Silvia estava parada à minha frente. Seu corpo parecia tremer tanto quanto o meu, e seu rosto estava choroso como eu nunca vira antes. Ela inclinou seu corpo, e, sem jeito, me abraçou. Um gemido escapou da minha garganta como se o seu toque me ferisse, e, ao mesmo tempo, fosse tudo o que eu precisasse. Retribuí o seu abraço e enxarquei seu ombro com minhas lágrimas. Ela chorou tanto quanto eu e eu imaginei tê-la ouvido dizer "Perdão", mas acho que o zumbido que dominava os meus tímpanos me enganaram.
Eu mantive o meu corpo junto ao seu por minutos, horas, não sei ao certo. E fui levada com ela pelas voltas e voltas que nos conduziam a um naufrágio de sentimentos silenciados.Aos leitores: Não se esqueçam de avaliar o romance no ícone "avalie", logo abaixo da sinopse. Isso é muito importante para o crescimento do livro na plataforma. Desde já vos agradeço.
“NÃO há nada de bonito na queda. Não há nada de bonito na mentira. Não há nada de bonito em existir numa vida que mais parece um monólogo entediante sem ambiguidade. Eu sei, nada disso faz sentido. Mas quem disse que precisa haver um sentido para tudo? Às vezes as coisas simplesmente são. A vida simplesmente é.”Soltei a caneta sobre a página recém-escrita, fechei o meu caderno dos medos e o guardei na primeira gaveta do guarda-roupa.Nas últimas semanas eu o tinha preenchido com pensamentos desconexos e memórias que supostamente tinha vivido com a minha mãe. Silvia dormindo comigo, Silvia contando histórias para mim, Silvia dizendo que me amava... Acontecimentos de minha primeira infância que não tenho certeza se inventei ou se relembrei devido a sua proximidade depois de anos em que mal olhara para mim.Nossa relação não tinha mudado. Ela continuava fingindo que eu era apenas um móvel da casa. Mas a forma como cuidou de mim há algumas semanas... Foi como
A manhã toda tinha sido uma correria só. Eu tinha ajudado a Luci a organizar uns produtos que tinham chegado na tarde anterior e tinha passado quase duas horas na fila da lotérica para pagar uma conta de água. Mal tinha tido tempo para almoçar de forma descente, e como se ainda não bastasse, eu tinha perdido o ônibus de 13h10. Quando cheguei na sala a professora de Literatura Lusófona já havia começado a aula há algum tempo. Cleo estava sentada no seu lugar de costume, a expressão abatida, e eu tinha quase certeza de que ela nem me vira entrar. Não pude fazer nala além de me sentar na carteira atrás dela e esperar que os três horários passassem o mais rápido possível.— Oxe, aonde você vai apressada desse jeito? — questionei a Cleo, tentando alcançá-la antes que ela saísse porta afora. Cleo apenas voltou seu rosto para mim, como se estivesse se controlando para não chorar. — Vem cá — chamei ao segurar sua mão e nos conduzir para o estacionamento da universidade, perto d
EU ainda consigo me recordar do cheiro de mofo, da aspereza do colchão velho e sujo contra a minha pele, das teias de aranha que abraçavam cada entulho jogado ali, dos meus gritos abafados pelo espaço pequeno e úmido. Depois que Marcelo foi embora, eu nunca mais entrei no quartinho dos fundos. Era como se ele estivesse trancado ali dentro, e se eu abrisse a porta, todo o pesadelo recomeçaria. Uma vozinha me incitou a continuar; a pegar a chave no armário da cozinha e abrir a porta.— Mostre que você consegue. Prove a si mesma que é forte o bastante — ela diz.Mas não. Aquele não era um bom dia para quedas, e, bem, eu já tinha feridas de mais para cuidar sozinha. Não precisava de mais uma.Eu soltei a respiração que nem percebi que estava segurando, coloquei a vassoura e a pá atrás da porta da cozinha e em seguida a fechei, voltando a fingir que aquele cômodo da casa não existia. — Oi — digo ao atender o celular, ajeitando o laço do turb
O silêncio ecoava por todo o campus. Por mais que eu tentasse, eu não conseguia acreditar… Como aquele homem pôde ganhar as eleições para presidente da república?O primeiro turno tinha sido difícil. A reeleição do governador duvidoso não me descia. E naquele momento, ter que lhe dar com o triste resultado do segundo turno das urnas era insuportável.Talvez aquele silêncio na universidade se devesse aos corpos ensanguentados que foram assassinados pelo espectro intolerante e horrendo que percorria o país... Não sabia ao certo. Mesmo os “minions” presentes no espaço se mantinham quietos. Acho que era porque eles sabiam que apesar de tudo não eram maioria ali. Eu via a incerteza no rosto da senhora do almoxarifado. Sua aposentadoria seria reclamada no ano seguinte. Seria...Dois colegas de sala, Rômulo e William, seguravam a mão um do outro de forma discreta. Pareciam ter medo de demonstrar o amor que existia entre ambos de maneira mais expressiva, e sen
ERA novembro. 2003. E chovia. Chovia muito. O cair da chuva fazia parecer que pedras eram lançadas sobre o telhado da casa. Um trovão balançava o céu, iluminando tudo ao redor. A ventania não deixava uma folha seca pairada sobre o chão. E quase nada se ouvia além do som da natureza. Exceto, talvez, o grito de pavor que cortava os meus ouvidos. Você também consegue ouvi-lo?Marcelo tinha deixado a porta do quarto dos fundos aberta. Mainha tinha saído cedo para o trabalho, eu me lembro. Acho que antes de sair ela me deu um beijo, mas não tenho muita certeza.Da porta da cozinha eu via. O zíper que se abria com destreza, a mão que segurava o falo nojento que se enrijecia a cada vai e vem dos seus dedos, os olhos assustados que pertenciam ao pequeno corpo sobre o colchão velho e fedorento, o sêmen que escorria e profanava o ventre juvenil... Era como observar a um retrato em movimento. Você também consegue vê-lo?A menina chorava. Ela tentava empurrar aquele c
TALVEZ já passasse das 19h00. Mainha chegaria do trabalho a qualquer momento. Eu tinha colocado um pouco de café na xícara, esperando que o líquido preto despertasse o meu corpo, inerte. Meus punhos, avermelhados, latejavam a cada mínimo esforço.Eu nunca tinha tido a coragem de contar sobre o meu passado para alguém. Mesmo Cleo e Dona Luci, que eram duas das pessoas que eu mais confiava no mundo, ainda assim, nunca tive coragem de contá-las. Sempre me pareceu errado conversar sobre esse assunto com alguém. Eu tinha medo de ser julgada. Medo que alguém me questionasse por eu ter me calado na época.Eu comecei a escrever no caderno dos medos aos doze anos. Trezentas páginas quase que findadas por pesadelos e mais pesadelos. Muitos deles contados e recontados em intervalos de tempo diferentes. Eu sequer o lia em voz alta. Porque dizer as palavras tornava tudo ainda mais real. “Abusada sexualmente”. “Estuprada”. “Molestada”. São termos que você utiliza para se referir
MINHAS pernas doíam. Minha respiração estava descompassada. Lágrimas e suor se confundiam em minha face. A noite quente me abraçava. Acho que eu nunca tinha corrido tanto assim. Eu havia parado em frente ao colégio Modelo. Não sabia qual curso devia tomar em seguida. Recostei-me no muro, peguei o celular na bolsa e liguei para o contato que procurava. A rua estava quase deserta, mas ainda assim fiquei com medo de ser assaltada ou coisa pior. Ele tinha me atendido sem demora:— Preta, tá tudo bem? — perguntou, preocupado. Eu podia ouvir pessoas conversando e rindo do outro lado da linha.— Onde você tá? — procurei saber. Minha voz saindo mais chorosa do que deveria.— Em casa. O que aconteceu? Onde você tá?— Na frente do colégio Modelo — respondi, simplesmente.— Tô indo aí — falou antes de desligar. Cinco minutos mais tarde, Filipe estava ao meu lado, oferecendo-me o apoio que eu precisava. Ele não me fez pergunta
O calor que Filipe emanava para o meu corpo fora a primeira sensação que tive ao acordar. Sua mão esquerda repousava em minha cintura; minha mão direita contra o seu peito. Ele ainda dormia profundamente. A respiração lenta, o Black amassado, os lábios curvados levemente para cima. A última coisa de que me recordava da noite anterior era dos seus dedos acarinhando o meu cabelo.Afastei sua mão do meu corpo com cuidado para não despertá-lo, levantei-me devagar da cama, calcei as sandálias, peguei minha bolsa sobre a cadeira, lancei-lhe um último olhar e fui embora.Na sala, encontrei com dona Zefa e seu Antônio, que já deviam estar acordados há um bom tempo. Eu os agradeci pela acolhida e pedi para que avisassem a Filipe que eu tinha voltado pra casa.Ainda não passava das 08h30, mas o sol já tinia, sem dó. Eu tentei formular atitudes, palavras que pudessem ser ditas a Silvia, porém não conseguia pensar em nada. Busquei andar o mais lentamente possível. Acho que