Uma Esposa Para o Médico
Uma Esposa Para o Médico
Por: AAdri Ferreira
Capítulo 1

Vitória olhou pela janela do quarto, fixando o olhar nas colinas do pequeno município onde vivia. O sol se punha devagar, tingindo o céu com uma laranja forte que ela raramente tinha tempo de apreciar. As sombras da noite chegaram, e junto delas, as lembranças dos dias de sua infância e juventude, pesadas e vívidas como se nunca tivessem partido.

Crescer no supermercado da família não foi exatamente um sonho, mas um destino decidido. Filha única de Everaldo e Marisa, Vitória sempre sabia que seus pais queriam mais que uma menina. Eles queriam um sucessor, um herdeiro para a “Família Damasceno” e o pequeno império do supermercado que sustentava a casa e a imagem deles na cidade. Mas ela era o que eles tinham, e cabia a ela preencher o vazio da expectativa frustrada.

Desde cedo, sua rotina era meticulosamente traçada: escola, casa, igreja. Aos domingos, Vitória usava seu vestido mais bonito e acompanhava a mãe à missa, ouvindo, no caminho, como ela deveria ser recatada, comportada, "digna de um bom casamento". Suas palavras eram tão claras que lembravam uma profecia. O sonho da mãe era vê-la casada com algum homem de posse, alguém que pudesse elevar o status da família, e talvez até tirar Vitória da obrigação de seguir o legado do supermercado.

Mas Vitória, como qualquer adolescente, tinha outros desejos. Seus olhos não se iluminavam ao pensar em um casamento de conveniência. Ela queria algo mais. Queria um amor de verdade, uma vida que pudesse chamar de sua.

As primeiras faíscas de paixão surgiram na adolescência, com um garoto da escola. Não passando de uma paixonite adolescente, uma troca de olhares no corredor e algumas palavras gentis na saída das aulas. Inspirada, Vitória escreveu uma poesia em uma carta para ele. Guardou a carta com cuidado em seu caderno, entre as páginas de uma velha agenda.

Infelizmente, um dia, a mãe de Vitória encontrou a carta e, ao lê-la, sentiu-se envergonhada e como se ela tivesse cometido um crime. Vitória ainda lembrava de seus olhos severos ao colocar a carta na mesa e ordenar que ela fosse para o quarto, sem direito ao jantar.

Marisa: Não se atreva a sair até seu pai chegar!, falou Marisa.

Vitória mal podia se concentrar no estômago roncando. A tensão a dominava, o medo de encarar o pai, de saber o que viria depois. Os minutos pareciam horas até que a porta da frente se abrisse. Passos firmes ecoaram pela casa, cada um mais ameaçador que o anterior. Logo, o pai entrou em seu quarto, com um cinto nas mãos.

Everaldo: Que vergonha você trouxe para essa casa, Vitória, disse ele, sem dar espaço para explicação.

O primeiro golpe foi rápido e seco, e ela percebeu, no mesmo instante, que seria diferente de qualquer outra angústia. Everaldo não parou até que Vitória já não tinha mais forças nem para gritar, seu corpo exausto, sua visão turva. Quando recuperou a consciência, estava sozinha, uma dor surda em seus ossos e uma tristeza pesada em seu peito. O único alívio foi saber que ninguém veria suas lágrimas naquela noite.

Nos dias que se seguiram, ela faltou à escola. Quando retornou, a cidade inteira parecia saber do ocorrido. Risadas abafadas e vozes acompanhavam seus passos pelos corredores. Os colegas de escola olharam para ela com curiosidade ou desprezo. Sentindo-se exposta e humilhada, Vitória se isolou ainda mais, como uma ostra fechada que só conhece a própria escuridão.

Mas, no fundo do peito, um pensamento: um dia, ela partiria. Deixaria para trás aquela cidade, aquele supermercado, aquela casa. E encontraria um lugar onde pudesse ser livre, onde o amor não precisasse de permissão, onde suas vontades fossem respeitadas.

Por enquanto, tudo o que podia fazer era esperar. Mas, enquanto isso, o Vitória alimentou seus sonhos em segredo, pronta para o dia em que, enfim, poderia vencer.

Vitória vive uma vida de trabalho incessante no interior do Paraná, em uma cidade pequena que cresceu aos poucos, mas ainda mantém suas raízes conservadoras. Desde a infância, passava as horas entre a escola e o supermercado do pai. O pouco dinheiro que recebeu por seu trabalho, ela guardou em segredo, alimentando um sonho que seus pais jamais aprovariam.

Na adolescência, Vitória assistiu a uma palestra sobre carreiras e descobriu o mundo da administração. A ideia de organizar, planejar e liderar a fascinava, e ela começou a pesquisar a profissão, sonhando com o dia em que poderia se tornar uma administradora. Mas, sempre que compartilhava suas aspirações com os pais, recebia a mesma resposta: "Bobagem, menina. A mulher não precisa de faculdade. O que você precisa é de um bom marido."

Esse pensamento não combinava com o que Vitória desejava para sua vida. Ela queria ser mais que uma esposa e, em segredo, alimentava a esperança de cursar uma faculdade, construir uma carreira, e, mais que tudo, sentir o orgulho dos filhos que um dia teria.

O momento mais marcante foi quando, após anos de economia e estudo, finalmente conseguiu se inscrever no vestibular. O nervosismo era intenso, mas, quando viu seu nome na lista de aprovados, a emoção a dominou de uma maneira indescritível. Ela foi abençoada, mesmo com todas as limitações e as críticas dos pais. Vitória sentiu que finalmente um pedaço de seu sonho estava ao alcance.

Mas o retorno para casa, ansiosa por compartilhar a novidade, trouxe uma reviravolta que ela jamais esqueceria. Ao anunciar que havia passado no vestibular e que seu sonho de estudar era, agora, mais real do que nunca, a expressão do pai escureceu. A notícia de que, para ela, era uma conquista, soava para ele como uma frente.

Everaldo: Faculdade?, ele repete, voz áspera e ameaçadora. Você não vai fazer faculdade. Vai arrumar um marido decente e se comportar como uma mulher deve.

Antes que pudesse se defender, ele levantou o cinto e Vitória sofreu os golpes que se multiplicaram com uma violência que supera qualquer outro castigo. A dor física era insuportável, mas a dor emocional de ver seu sonho ameaçado doía ainda mais fundo. Ela mal conseguiu se mexer quando tudo terminou, as lágrimas misturando-se ao suor e ao sangue.

O som das vozes dos vizinhos e a luz da sirene da polícia ao longe trouxeram uma fagulha de esperança. Talvez, pela primeira vez, alguém estivesse ali para ajudá-la. Mas quando os policiais encontraram seu pai, com uma frieza ensaiada, os receberam com uma mentira pronta:

Everaldo: Minha filha estava envolvida com coisas erradas. Só fiz o que qualquer pai faria.

Os policiais, ao invés de ajudá-la, apenas instruíram seu pai a tomar cuidado para que os vizinhos não presenciassem mais "incidentes" como aquele. As palavras dos oficiais ecoavam na cabeça de Vitória:

Policial: Ela merecia mais.

Mas, mesmo assim, Vitória não desistiu. A dor, a decepção, a humilhação, tudo isso não foi suficiente para quebrar o espírito dela. Ela sabia que, um dia, sairia daquela casa. Faria a faculdade, teria a vida que sempre quis. Ela prometeu a si mesma que jamais permitiria que os sonhos que cultivava fossem esmagados, não importava quantos obstáculos surgissem.

A surra e as humilhações daquele dia deixaram marcas profundas em Vitória, mas não foram suficientes para sufocar sua determinação. Ela sabia que não seria fácil seguir o caminho que havia escolhido, mas agora não havia volta. O sonho da faculdade, de uma carreira, e de uma vida independente era mais forte do que qualquer medo ou dor. A partir daquele momento, Vitória fez um juramento silencioso: sairia daquela cidade e começaria uma nova vida, custasse o que custasse.

Com o pouco dinheiro que havia guardado, Vitória conseguiu pagar os primeiros meses da faculdade, economizando cada centavo. Mas sabia que isso não seria suficiente. Para seguir em frente, precisaria de um novo emprego, algo que pudesse manter sua liberdade e garantir que não dependesse de ninguém. Foi assim que começou a trabalhar em uma loja de roupas, onde recebia um salário mínimo, mas que representava sua independência.

Vitória dividia seu tempo entre o trabalho e as aulas. Durante o dia, atendia clientes, arrumava vitrines, e à noite, corria para a faculdade, onde as aulas de administração se tornaram seu refúgio. Os conceitos que aprendi sobre liderança, planejamento e estratégia acenderam nela uma nova paixão. A cada lição, sentir-se mais próximo do futuro que sempre sonhara.

Mas a realidade em casa continuava durando. Os pais viam suas novas rotinas com reprovação, e não perdem oportunidade de menosprezar suas conquistas. As humilhações, as palavras duras e as ameaças não cessaram. Mas Vitória agora tinha algo que não poderia ser tirado: o sonho de uma vida além das barreiras daquela cidade.

Ela aguentava as agressões, o desprezo e os olhares de desaprovação como quem atravessa uma tempestade. As marcas físicas e emocionais estavam todas, mas Vitória se recusou a se dobrar. Cada golpe, cada palavra cruel, tornava-se mais um lembrete de que seu propósito era mais forte do que qualquer obstáculo.

Em silêncio, Vitória construiu sua liberdade. Mantinha em segredo os planos de juntar o máximo de dinheiro possível, de aprender tudo o que poderia, para, um dia, partir definitivamente. Por enquanto, concentrava-se em fazer o que sabia ser o certo para ela, mesmo que isso significasse nunca mais ver seus próprios pais.

Com o passar do tempo, o cansaço físico das longas horas de trabalho e estudo misturava-se ao intervalo de saber que estava, passo a passo, se libertando. Em seu íntimo, Vitória sabia que, apesar de tudo, havia uma luz no fim daquele túnel.

Cada noite passada, cada real guardado com esforço, era uma promessa renovada: Vitória seria dona de sua vida e, um dia, estaria bem longe dali.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo