Danilo

Eu olhava para minha linda Juliete, ali na clínica, em estado vegetativo. Os médicos insistiam para que eu não viesse mais, diziam que era inútil, mas todos os finais de semana eu dirigia até Mairiporã e passava o dia com ela.

A cada dois ou três meses, eu a tirava da clínica e a levava para a casa que comprei especialmente para ela. A casa era toda adaptada, com rampas de acesso para a maca. Sempre dispensava as enfermeiras nesses dias. Queria cuidar dela sozinho. Ainda assim, pagava quatro enfermeiras para acompanhá-la na clínica, para que nunca se sentisse sozinha, mesmo naquele estado.

Naquele domingo, depois de ajeitá-la de volta na clínica, eu aguardava a acompanhante chegar para poder voltar para casa. Enquanto esperava, me lembrei de como foi a semana com ela.

Eu tinha perdido o controle. Não é comum, mas gritei com ela, bêbado, enquanto relembrava tudo o que nos trouxe até aqui. Normalmente, sou calmo. Tento dizer coisas boas, mostro fotos que a família dela manda da França. A casa é calma, aconchegante. Faço questão disso, porque ainda tenho muitas esperanças de vê-la sair dessa situação.

Os médicos dizem que ela tem menos de dez por cento de chances de voltar a ter atividade cerebral, mas eu confio nessa porcentagem. Preciso dela. Preciso me redimir pelo que fiz a ela e àquela família.

As lembranças de como a conheci ainda são vívidas. Foi tão simples começar a namorar e fazer planos com ela.

Eu tinha fugido para a França para fazer faculdade e deixar para trás o que aconteceu em casa. Minha mãe era uma mulher doce e gentil, mas perdeu uma longa batalha contra o câncer quando eu tinha apenas 8 anos. Meu pai, sempre rígido, sofreu demais com a perda, mas nunca deixou de me educar com firmeza. O luto dele durou muito tempo, até que resolveu se casar novamente com Sheila.

Na época, eu tinha 12 anos. Gostei da ideia. Uma nova mãe e uma irmã pareciam algo bom, e Sheila sempre me tratou com muito carinho e cuidado. Mas Eleanor... com ela, tudo foi mais complicado.

Eleanor era mimada, temperamental, cheia de vontades. Ela tratava mal os empregados e fazia birra por qualquer coisa. Aos 14 anos, decidiu que estava apaixonada por mim e que iríamos nos casar. Planejava assumir a casa e a empresa quando meu pai morresse, deixando sua mãe de lado.

Tentei ser paciente, mas disse claramente que nada aconteceria entre nós. Ela era minha irmã, e nunca seria minha namorada.

No ano seguinte, ela surpreendentemente mudou. Começou a agir como uma irmã de verdade, estudava comigo, pedia conselhos sobre meninos, pesquisava universidades. Fiquei feliz e, aos poucos, confiei nela.

Na minha formatura, Eleanor foi minha acompanhante. Estava linda. Quando voltamos para casa, ela apareceu no meu quarto com uma garrafa de champanhe.

— Sei que papai e mamãe não me deixam beber, mas pensei que nós poderíamos brindar sua formatura com uma tacinha… Não conto nada se você não contar.

Eu ri e abri a champanhe. Ela pediu para eu ajudá-la com o vestido e depois serviu duas taças. Depois disso, não lembro de mais nada.

Acordei na manhã seguinte com Eleanor nua ao meu lado. Sheila entrou no quarto nesse momento.

Foi um caos. Meu pai me deu um tapa, o primeiro da vida. Sheila tentou mediar, mas a decisão foi unânime: eu precisava ir embora.

Meu pai conseguiu uma vaga em uma universidade na França. Antes de eu partir, ele teve uma conversa séria com Eleanor, que aceitou minha saída, mas com uma condição que levou o meu pai a mudar seu testamento.

Eleanor era esperta e não sei como conseguiu convencer o meu pai de aceitar seus caprichos. O testamento dizia que, se eu não estivesse casado um ano após a morte do meu pai, ela herdaria tudo.

Dois anos depois, conheci Juliete. Ela era garçonete no restaurante que eu frequentava. Linda, loira, de olhos azuis... começamos a namorar rapidamente.

Organizei uma casa para ela, ajudei-a a entrar na universidade e, quando me formei, pedi sua mão em casamento. Ela só aceitou com a condição de esperar terminar a faculdade para casarmos.

Era um acordo perfeito, mas o destino tinha outros planos. Meu pai adoeceu, e voltei ao Brasil para acompanhá-lo em seus últimos dias. Quando ele morreu, as fronteiras estavam fechadas por causa da pandemia.

Juliete ficou sozinha na casa que projetamos juntos, enquanto eu, preso no Brasil, cumpria o luto.

Quando a pandemia acabou e as fronteiras foram reabertas, eu sabia que precisava resolver a bagunça causada pelo retorno ao trabalho presencial nas empresas do meu pai. Em meio a todo o caos, Juliete recusou-se a vir para o Brasil para se casar comigo. Disse que terminaria a faculdade como havíamos combinado.

Consegui convencê-la a vir para conversarmos, e no primeiro jantar, durante a apresentação dela para a minha família, Eleanor mencionou a cláusula de casamento do testamento. Sheila explicou do que se tratava e sugeriu que Juliete poderia se casar comigo, voltar para a França para terminar a faculdade e, ao fim, vir morar definitivamente no Brasil para começarmos nossa vida juntos. Eleanor ficou furiosa ao perceber que eu só precisava me casar – e não necessariamente com ela.

Naquela noite, Juliete pediu para dormir em um quarto separado e sugeriu que conversássemos no dia seguinte. Achei que, se usasse a manhã para falar com ela, ainda teria o resto do dia para conhecer o simpático casal que apresentaria um grande projeto no qual eu estava interessado em investir.

Pela manhã, Juliete, ainda se adaptando ao fuso horário, levantou-se por volta das 11h. Disse a ela que estava atrasado e que eu precisaria almoçar com possíveis parceiros que vieram do interior. Ela pediu para ir comigo e sugeriu que conversássemos no carro. Achei ótimo e saímos juntos.

Durante o trajeto, Juliete foi direta: disse que não se casaria comigo. Explicou que aceitou inicialmente porque não imaginava que viveríamos no Brasil e afirmou que jamais deixaria o país dela. Tentei argumentar, expliquei que precisava cuidar dos negócios da família, que fui preparado para isso a vida inteira, mas ela estava irredutível.

Quando sugeri deixar tudo para Eleanor e Sheila administrarem e voltar para a França com ela, não percebi que tinha pisado firme no acelerador. Ela olhou para frente e, sem alterar o tom, disse que não queria isso. Acrescentou que conheceu outra pessoa e acabou ficando isolada com ele na pandemia enquanto eu estava no Brasil.

Por um segundo me senti transtornado. A olhei e perguntei: — Na nossa casa?

Por um instante, não notei que estava rápido demais e avancei o sinal vermelho. O lado do passageiro foi atingido em cheio por outro carro. Lembro-me do barulho da batida, do som do ferro se retorcendo. O airbag acionou, e Juliete foi lançada contra mim, batendo a cabeça no vidro do meu lado. Antes de apagar, eu podia jurar ter visto os faróis do outro carro no lugar onde deveria estar o rosto dela.

Quando acordei no hospital, vi Sheila sentada ao meu lado, nervosa, com lágrimas nos olhos. A lembrança de Juliete voando em minha direção e dos faróis do outro carro me dominou.

— Mamãe...

— Ai, Danilo, que bom que você acordou! Rezei tanto por você, meu filho. Não me dê outro susto desses, por favor. Não aguento perder mais ninguém.

— Mãe, a Julie...

— Vocês dois foram colocados em coma induzido, filho.

— Ela está viva?

— Ainda não acordou, mas sim, está viva. Ela se machucou mais que você.

Sheila sempre foi muito sincera e direta, então acreditei nela. Perguntei sobre o motorista do outro carro

— Infelizmente, o casal não resistiu. Morreram no local.

Fiquei desesperado. Não entendia como tive apenas leves escoriações enquanto matei duas pessoas e coloquei outra em coma. Procurei informações sobre a família do casal e descobri que a única filha deles morava na capital, mas não consegui mais detalhes. Depois acabei descobrindo que a empresa deles era em Mairiporã e procurei. Mas fui informado que eles eram apenas funcionários que roubaram o projeto e estavam tentando vender.

O dono quis negociar comigo, mas eu disse que só faria isso quando a filha do casal me procurasse. Sentia que devia isso a ela. Em meio ao desespero, à culpa e à tragédia, Eleanor se ofereceu para casar comigo, já que eu tinha apenas 15 dias para cumprir o testamento.

Foi então que pedi ajuda a Alain, meu melhor amigo. Ele achava que eu estava ficando louco, mas expliquei que precisava de uma esposa temporária para tirar Eleanor do meu pé. Desenhei um plano que havia elaborado há anos, na época da faculdade, para uma eventualidade como essa. Alain encontrou a mulher ideal e, em poucos dias, estávamos casados. Ela assinou um contrato de cinco anos e, em troca, recebeu benefícios financeiros. Nem sequer sabia quem era o marido.

Nos meses seguintes, Alain administrou tudo enquanto eu mantinha minha nova esposa longe dos olhos curiosos. Mas, eventualmente, comecei a me perguntar: quem era essa mulher que, sem saber, agora fazia parte da minha vida?

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