Eu olhava para minha linda Juliete, ali na clínica, em estado vegetativo. Os médicos insistiam para que eu não viesse mais, diziam que era inútil, mas todos os finais de semana eu dirigia até Mairiporã e passava o dia com ela.
A cada dois ou três meses, eu a tirava da clínica e a levava para a casa que comprei especialmente para ela. A casa era toda adaptada, com rampas de acesso para a maca. Sempre dispensava as enfermeiras nesses dias. Queria cuidar dela sozinho. Ainda assim, pagava quatro enfermeiras para acompanhá-la na clínica, para que nunca se sentisse sozinha, mesmo naquele estado. Naquele domingo, depois de ajeitá-la de volta na clínica, eu aguardava a acompanhante chegar para poder voltar para casa. Enquanto esperava, me lembrei de como foi a semana com ela. Eu tinha perdido o controle. Não é comum, mas gritei com ela, bêbado, enquanto relembrava tudo o que nos trouxe até aqui. Normalmente, sou calmo. Tento dizer coisas boas, mostro fotos que a família dela manda da França. A casa é calma, aconchegante. Faço questão disso, porque ainda tenho muitas esperanças de vê-la sair dessa situação. Os médicos dizem que ela tem menos de dez por cento de chances de voltar a ter atividade cerebral, mas eu confio nessa porcentagem. Preciso dela. Preciso me redimir pelo que fiz a ela e àquela família. As lembranças de como a conheci ainda são vívidas. Foi tão simples começar a namorar e fazer planos com ela. Eu tinha fugido para a França para fazer faculdade e deixar para trás o que aconteceu em casa. Minha mãe era uma mulher doce e gentil, mas perdeu uma longa batalha contra o câncer quando eu tinha apenas 8 anos. Meu pai, sempre rígido, sofreu demais com a perda, mas nunca deixou de me educar com firmeza. O luto dele durou muito tempo, até que resolveu se casar novamente com Sheila. Na época, eu tinha 12 anos. Gostei da ideia. Uma nova mãe e uma irmã pareciam algo bom, e Sheila sempre me tratou com muito carinho e cuidado. Mas Eleanor... com ela, tudo foi mais complicado. Eleanor era mimada, temperamental, cheia de vontades. Ela tratava mal os empregados e fazia birra por qualquer coisa. Aos 14 anos, decidiu que estava apaixonada por mim e que iríamos nos casar. Planejava assumir a casa e a empresa quando meu pai morresse, deixando sua mãe de lado. Tentei ser paciente, mas disse claramente que nada aconteceria entre nós. Ela era minha irmã, e nunca seria minha namorada. No ano seguinte, ela surpreendentemente mudou. Começou a agir como uma irmã de verdade, estudava comigo, pedia conselhos sobre meninos, pesquisava universidades. Fiquei feliz e, aos poucos, confiei nela. Na minha formatura, Eleanor foi minha acompanhante. Estava linda. Quando voltamos para casa, ela apareceu no meu quarto com uma garrafa de champanhe. — Sei que papai e mamãe não me deixam beber, mas pensei que nós poderíamos brindar sua formatura com uma tacinha… Não conto nada se você não contar. Eu ri e abri a champanhe. Ela pediu para eu ajudá-la com o vestido e depois serviu duas taças. Depois disso, não lembro de mais nada. Acordei na manhã seguinte com Eleanor nua ao meu lado. Sheila entrou no quarto nesse momento. Foi um caos. Meu pai me deu um tapa, o primeiro da vida. Sheila tentou mediar, mas a decisão foi unânime: eu precisava ir embora. Meu pai conseguiu uma vaga em uma universidade na França. Antes de eu partir, ele teve uma conversa séria com Eleanor, que aceitou minha saída, mas com uma condição que levou o meu pai a mudar seu testamento. Eleanor era esperta e não sei como conseguiu convencer o meu pai de aceitar seus caprichos. O testamento dizia que, se eu não estivesse casado um ano após a morte do meu pai, ela herdaria tudo. Dois anos depois, conheci Juliete. Ela era garçonete no restaurante que eu frequentava. Linda, loira, de olhos azuis... começamos a namorar rapidamente. Organizei uma casa para ela, ajudei-a a entrar na universidade e, quando me formei, pedi sua mão em casamento. Ela só aceitou com a condição de esperar terminar a faculdade para casarmos. Era um acordo perfeito, mas o destino tinha outros planos. Meu pai adoeceu, e voltei ao Brasil para acompanhá-lo em seus últimos dias. Quando ele morreu, as fronteiras estavam fechadas por causa da pandemia. Juliete ficou sozinha na casa que projetamos juntos, enquanto eu, preso no Brasil, cumpria o luto. Quando a pandemia acabou e as fronteiras foram reabertas, eu sabia que precisava resolver a bagunça causada pelo retorno ao trabalho presencial nas empresas do meu pai. Em meio a todo o caos, Juliete recusou-se a vir para o Brasil para se casar comigo. Disse que terminaria a faculdade como havíamos combinado. Consegui convencê-la a vir para conversarmos, e no primeiro jantar, durante a apresentação dela para a minha família, Eleanor mencionou a cláusula de casamento do testamento. Sheila explicou do que se tratava e sugeriu que Juliete poderia se casar comigo, voltar para a França para terminar a faculdade e, ao fim, vir morar definitivamente no Brasil para começarmos nossa vida juntos. Eleanor ficou furiosa ao perceber que eu só precisava me casar – e não necessariamente com ela. Naquela noite, Juliete pediu para dormir em um quarto separado e sugeriu que conversássemos no dia seguinte. Achei que, se usasse a manhã para falar com ela, ainda teria o resto do dia para conhecer o simpático casal que apresentaria um grande projeto no qual eu estava interessado em investir. Pela manhã, Juliete, ainda se adaptando ao fuso horário, levantou-se por volta das 11h. Disse a ela que estava atrasado e que eu precisaria almoçar com possíveis parceiros que vieram do interior. Ela pediu para ir comigo e sugeriu que conversássemos no carro. Achei ótimo e saímos juntos. Durante o trajeto, Juliete foi direta: disse que não se casaria comigo. Explicou que aceitou inicialmente porque não imaginava que viveríamos no Brasil e afirmou que jamais deixaria o país dela. Tentei argumentar, expliquei que precisava cuidar dos negócios da família, que fui preparado para isso a vida inteira, mas ela estava irredutível. Quando sugeri deixar tudo para Eleanor e Sheila administrarem e voltar para a França com ela, não percebi que tinha pisado firme no acelerador. Ela olhou para frente e, sem alterar o tom, disse que não queria isso. Acrescentou que conheceu outra pessoa e acabou ficando isolada com ele na pandemia enquanto eu estava no Brasil. Por um segundo me senti transtornado. A olhei e perguntei: — Na nossa casa? Por um instante, não notei que estava rápido demais e avancei o sinal vermelho. O lado do passageiro foi atingido em cheio por outro carro. Lembro-me do barulho da batida, do som do ferro se retorcendo. O airbag acionou, e Juliete foi lançada contra mim, batendo a cabeça no vidro do meu lado. Antes de apagar, eu podia jurar ter visto os faróis do outro carro no lugar onde deveria estar o rosto dela. Quando acordei no hospital, vi Sheila sentada ao meu lado, nervosa, com lágrimas nos olhos. A lembrança de Juliete voando em minha direção e dos faróis do outro carro me dominou. — Mamãe... — Ai, Danilo, que bom que você acordou! Rezei tanto por você, meu filho. Não me dê outro susto desses, por favor. Não aguento perder mais ninguém. — Mãe, a Julie... — Vocês dois foram colocados em coma induzido, filho. — Ela está viva? — Ainda não acordou, mas sim, está viva. Ela se machucou mais que você. Sheila sempre foi muito sincera e direta, então acreditei nela. Perguntei sobre o motorista do outro carro — Infelizmente, o casal não resistiu. Morreram no local. Fiquei desesperado. Não entendia como tive apenas leves escoriações enquanto matei duas pessoas e coloquei outra em coma. Procurei informações sobre a família do casal e descobri que a única filha deles morava na capital, mas não consegui mais detalhes. Depois acabei descobrindo que a empresa deles era em Mairiporã e procurei. Mas fui informado que eles eram apenas funcionários que roubaram o projeto e estavam tentando vender. O dono quis negociar comigo, mas eu disse que só faria isso quando a filha do casal me procurasse. Sentia que devia isso a ela. Em meio ao desespero, à culpa e à tragédia, Eleanor se ofereceu para casar comigo, já que eu tinha apenas 15 dias para cumprir o testamento. Foi então que pedi ajuda a Alain, meu melhor amigo. Ele achava que eu estava ficando louco, mas expliquei que precisava de uma esposa temporária para tirar Eleanor do meu pé. Desenhei um plano que havia elaborado há anos, na época da faculdade, para uma eventualidade como essa. Alain encontrou a mulher ideal e, em poucos dias, estávamos casados. Ela assinou um contrato de cinco anos e, em troca, recebeu benefícios financeiros. Nem sequer sabia quem era o marido. Nos meses seguintes, Alain administrou tudo enquanto eu mantinha minha nova esposa longe dos olhos curiosos. Mas, eventualmente, comecei a me perguntar: quem era essa mulher que, sem saber, agora fazia parte da minha vida?Eu percebi que já tinha acabado com uma garrafa de vinho, mas não estava bêbada. Nem mesmo o torpor que eu buscava para aliviar a dor nos finais de semana aparecia. Sempre me obriguei a ser a menina responsável, estudiosa e, agora, trabalhadora como meus pais queriam. De segunda a sexta-feira, não bebia nada, não saía, só fazia o que era esperado de mim. Sorri, um sorriso amargo, enquanto me levantava para buscar outra garrafa de vinho. Talvez fosse esse meu comportamento discreto que aquele homem, que se aproveitou da minha fragilidade, procurava quando me fez assinar a certidão de casamento.Nos finais de semana, eu me desligava do mundo. Bebia, mal saía de casa. Às vezes, só ia ao mercado comprar algo. Fora isso, ficava trancada. Às vezes, pensando em como me vingaria do tio Thomas. Não, do nojento do Thomas. De tudo o que ele fez comigo e com a memória dos meus pais. Outras vezes, me dedicava ao salvamento das informações dos notebooks do meu pai e da minha mãe, destruídos no acid
“Desliguei o computador do meu pai e percebi que já eram cinco da manhã. Passei a noite inteira acordada e não encontrei nada que me ajudasse. Subi as escadas, encaixotei algumas coisas dele e da minha mãe, além das minhas próprias. Coloquei os pertences pessoais deles no porta-malas e peguei as três caixas do tesouro. Quando eu era pequena, minha mãe me levou até o quarto dela e abriu a grande caixa de tesouro. Mostrou fotos antigas, meu cordão umbilical, a pulseirinha da maternidade, e explicou que naquele dia eu ganharia a minha própria caixa. Ela disse que ali eu deveria guardar tudo o que não tivesse preço, mas que, se perdido, arrancaria uma parte do meu coração. Mostrou a caixa do meu pai, mas avisou que aquela eu só poderia abrir quando ele quisesse me mostrar, e que o mesmo respeito valeria para a minha caixa. Só eu poderia abrir, não importava o que acontecesse, quando estivesse pronta para mostrar o que guardei a eles. Tive vontade de abrir as caixas naquele momento, mas
Estacionei no escritório mais cedo que de costume naquela segunda-feira. Estava ansioso. Adiei o quanto pude para conhecer minha esposa, mas quando a conheci sem querer no estacionamento, isso me deixou mais ansioso. Ela era atrevida e isso me atraia de um jeito estranho. Passei um ano inteiro muito bem, sem necessidade de conhecê-la. Quando planejei esse casamento, pensei em inúmeras possibilidades. Podia ter escolhido mal e a maluca querer acabar com minha vida e ficar com meu patrimônio. Eleanor poderia encontrá-la e querer acabar com ela, e eu teria que protegê-la, já que fui eu quem a coloquei nessa situação complicada. Ela podia arrumar outro parceiro e acabar com nossa relação antes do prazo. Eu precisava vigiá-la de perto. Mas a moça parecia até uma freira de tão recatada e civilizada. Não gastava nem dez por cento do que eu tinha disposto para ela gastar. Fiz um cálculo médio do que Juliete gastava em um mês quando morávamos juntos, mas minha nova esposa não chegava nem per
Quando saí da aula, dirigi até em casa com um único pensamento: hoje não vou beber. Já estava mais do que na hora de parar de adiar a tarefa de abrir as caixas do tesouro do meus pais. Mas, por mais que tentasse me concentrar nisso, minha mente insistia em voltar ao beijo que Danilo me deu no rosto. Às vezes, tinha a impressão de que ele estava flertando comigo, de maneira sutil. Mas logo me recriminava por esse pensamento. Quem sou eu para afirmar algo assim? Nunca tive experiência nesse tipo de coisa, e, além disso, ele é casado! Cheguei em casa e fui direto para o chuveiro. Soltei meus cabelos negros, que caíram como uma cascata pelas costas. Meu couro cabeludo estava dolorido por passar o dia todo preso no coque sério e profissional. Depois do banho, me sentei na cama com a caixa do tesouro no colo. Ao abri-la, senti como se estivesse liberando a caixa de Pandora. Um turbilhão de lembranças me envolveu. Fui pegando cada foto, cada desenho disforme, e as memórias surgiam uma a u
Adormeci muito emocionada com a carta da minha mãe. Quando acordei, percebi que estava amassando a carta abraçada a ela como se fosse com mamãe. E envolta em uma grande bagunça.Desamassei a carta e recoloquei no envelope, recolhi todos os meus tesouros e coloquei de volta dentro da caixa. Coloquei a carta da minha mãe por cima, fechei e guardei a caixa ao lado das outras duas.Sabia onde procurar mais tesouros deixados pelos meus pais agora, mas estava numa grande ressaca emocional e não daria conta. E tinha que lidar com todas as coisas que minha mãe já tinha falado.Coloquei um café no fogo, estava apenas de robe, totalmente nua. Gostava da solidão de minha casa e de como podia ficar à vontade. Enquanto o café coava, liguei meu notebook e segui as coordenadas que mamãe deixou no anexo para acessar a conta secreta. Não sou burra, sei que pra abrir uma conta dessas, precisaria de um valor alto. Então, achei que ali teria uma soma considerável.Coloquei o café na minha xícara preferi
Eu queria conhecer minha mulher melhor, essa era a intenção da visita de hoje. Na noite anterior, fiquei acordado pensando nisso. Tive que admitir pra mim mesmo que me apaixonei pela menina inteligente e linda com quem sou casado. Isso eu não tinha planejado quando arquitetei esse plano maluco. O plano deveria ser simples. me lembro quando Alain me perguntou porque uma menina na universidade que tivesse trancado por falta de dinheiro: — Eu preciso de uma mulher nova, culta e que tenha um certo finess. Eleanora não vai acreditar que seja um casamento de verdade, se não for assim. E você só vai encontrar uma mulher nessas características, que aceite se casar por contrato, de preferência sem nem saber quem é o marido, com alguém que esteja em grandes problemas financeiros. E trancar a universidade por causa de dinheiro, é um motivo válido pra aceitar o que eu estou propondo. — Mas sem te conhecer? — Se a mocinha em questão souber quem eu sou, vai querer me seduzir, e esse não é o pr
No carro, eu olhava pela janela em silêncio. Queria evitar uma interação com meu chefe, mas ele parecia alheio a isso. — Posso te fazer uma pergunta, Isadora? — ele fala, quebrando o silêncio.Suspirei pesadamente, para deixar claro o meu desagrado, mas acabei virando para ele com um sorriso educado. — Claro!— Você mora em uma cobertura cara, estuda em uma universidade renomada, dirige um carro do ano. Por que trabalhar como estagiária?Soltei uma risada seca. — Porque a vida de filhinho de papai só serve para pessoas como você. O resto de nós precisa ralar para conseguir as coisas.— Não me leve a mal, Isa, mas o que você ganha na Psy não cobre nem a manutenção do seu carro, quanto mais seu apartamento. E, sinceramente, você não pode me chamar de filhinho de papai baseado apenas em fofocas que Patrícia te contou.Mordi o lábio, envergonhada. — Certo. Então me conta a sua versão, e talvez apague minha primeira impressão. — Sugiro, para desviá-lo de sondar minha vida, mas no fundo,
Coloquei os fones de ouvido e liguei para a Alicia. Precisava desesperadamente saber do paradeiro do Daniel, o funcionário que minha mãe mencionou na carta. Ela me passou o telefone dele, e assim que liguei, ele atendeu e me deu um endereço. Quando cheguei ao local, fiquei surpresa. Era uma casa acolhedora, com uma cerquinha branca e um mini playground onde algumas crianças brincavam alegremente. Outras estavam trepadas em um pé de amora, e foi como se algo dentro de mim despertasse. Um flash de memória me atingiu: já estive naquele lugar, brincando naquele mesmo pé de amora quando criança.Um casal me aguardava, e então, ao me aproximar, reconheci a fisionomia do Daniel. Ele era jovem, talvez tivesse uns trinta anos. A mulher ao lado dele parecia um pouco mais velha, talvez entre 35 e 40.Daniel me perguntou com um sorriso amigável:— Você se lembra de mim? Ou da Tânia, minha esposa?Balancei a cabeça, um pouco sem jeito. — Mais ou menos...Foi então que ele começou a explicar: — Es