“Desliguei o computador do meu pai e percebi que já eram cinco da manhã. Passei a noite inteira acordada e não encontrei nada que me ajudasse. Subi as escadas, encaixotei algumas coisas dele e da minha mãe, além das minhas próprias. Coloquei os pertences pessoais deles no porta-malas e peguei as três caixas do tesouro.
Quando eu era pequena, minha mãe me levou até o quarto dela e abriu a grande caixa de tesouro. Mostrou fotos antigas, meu cordão umbilical, a pulseirinha da maternidade, e explicou que naquele dia eu ganharia a minha própria caixa. Ela disse que ali eu deveria guardar tudo o que não tivesse preço, mas que, se perdido, arrancaria uma parte do meu coração. Mostrou a caixa do meu pai, mas avisou que aquela eu só poderia abrir quando ele quisesse me mostrar, e que o mesmo respeito valeria para a minha caixa. Só eu poderia abrir, não importava o que acontecesse, quando estivesse pronta para mostrar o que guardei a eles. Tive vontade de abrir as caixas naquele momento, mas sabia que, com a perda tão recente dos meus pais, não conseguiria. Nem mesmo os meus tesouros, cheios de lembranças de uma família feliz, eu teria coragem de espiar. Coloquei as caixas no banco de trás, como se fossem passageiros, como se estivesse levando meus pais comigo. E, de certa forma, sabia que tudo o que restava deles estava ali. Dirigi até a casa da Alicia, a secretária do meu pai. Parecia que ela já estava me esperando, porque não demonstrou surpresa ao me ver. Ela me abraçou apertado, com os olhos cheios de lágrimas, e perguntou o que eu faria dali para frente. — Não sei, Alicia. O tio Thomas disse que a empresa e a casa dos meus pais foram vendidas. E eu não sei por quê, nem onde está esse dinheiro. As contas pessoais dos meus pais estão zeradas, minha poupança também. Não sei se eles tinham aplicações; pelo aplicativo do banco, não consigo acessar nada, mas suponho que estejam zeradas também. Achei que você poderia me dizer o que aconteceu para eles tomarem essas decisões sem eu saber de nada. — Também não sabemos, Isadora. Tudo o que sei é que, depois do enterro dos seus pais, o Sr. Thomas decretou o fim do luto e anunciou que ele era o atual dono da empresa. Seus pais não tinham testamento; sua mãe sempre disse que isso era desnecessário porque você era a única herdeira. Quando fui checar as informações, tudo já estava em nome dele. — Então foi o tio Thomas quem comprou tudo? — Sim. E eu não entendo por que seus pais fizeram isso. — Alicia, você acha possível que ele tenha hackeado tudo e dado um golpe? — Não sei. Eu chequei. Os recibos de compra e venda e transferência estão datados de antes da morte dos seus pais. — Então, se ele hackeou, foi antes de eles morrerem? — Ou ele deu um golpe enorme nas instituições do governo, como a Receita Federal. E eu acho que, até para ele, isso é impossível. — Nada é impossível, Alicia. Eu achava impossível meus pais me esconderem qualquer problema. Ou morrerem os dois juntos, me deixando sem nada, na miséria. — O Thomas sempre foi muito ligado a você. Talvez ele te devolva alguma coisa. Se não foi um golpe, pode ser que ele tenha tomado para si para proteger o patrimônio de algo que seu pai fez. — É, estou indo para a empresa agora para falar com ele. Quer uma carona? Alicia entrou no carro, e, enquanto dirigia, recebi uma mensagem do Thomas perguntando onde eu estava. Respondi que ia para a empresa para conversarmos, mas ele insistiu que eu fosse para casa. Alicia desceu do carro e me aconselhou a falar com calma, sem acusá-lo de golpe. Quando cheguei em casa, vi o carro do Thomas estacionado na frente. Um frio percorreu minha espinha. Entramos em silêncio. Tentei lembrar os conselhos da Alicia, mas não consegui. Assim que estávamos na sala, explodi: — Não sei o que você fez para tomar tudo dos meus pais. Não esperava isso de você, mas quero que me diga agora o que quer para me devolver o que tirou deles. — Ah, Isadora. Você costumava ser mais dócil. — O que quer, Thomas? — Você! — O quê? — Exatamente isso, docinho. Esperei dezenove anos para ter você. Esperei você completar a maioridade para não parecer um pedófilo. Agora você já é adulta e pode tomar suas próprias decisões. E eu quero você. — Você está louco! — Não estou. Eu assisti de camarote seu pai se apaixonar, encontrar o amor da vida dele e me abandonar. Ele era meu melhor amigo e não ligou para meus sentimentos e as coisas que estávamos fazendo juntos. Então se casou e eu fiquei esperando ele enjoar dessa vidinha mais ou menos, mas eles sempre estiveram apaixonados e fundaram essa empresa. — Empresa que chamaram você para fazer parte e você não quis. — Sim. Eu nunca gostei de trabalhar, docinho. Fundar uma empresa do nada dá muito trabalho. Quando eles começaram a crescer, tiveram você. E eu não me afastei deles por achar que você seria meu troféu, minha bonificação por aturar tanta melação. Por aturar sua mãe me tirar tudo. — Minha mãe não te tirou nada. Vocês eram amigos e meu pai te amava e fazia tudo por você. Como você pode ter esses pensamentos com uma criança pequena, seu pervertido? — Você estava tirando meu sono. Um dia quase te toquei. Perdi a concentração e acabei sendo preso. Foram anos difíceis. Depois que saí, você já era uma mocinha, não sentava mais em meu colo. Tive que aguentar a humilhação de trabalhar pra sua mãe na minha empresa. — A empresa era dela! Eles fundaram juntos! Ela quem trabalhou com meu pai por isso! — Se ela não tivesse aparecido, pra começo de conversa, quem teria feito tudo isso com seu pai? — Você é um psicopata! — rosno, sentindo náusea pelas suas palavras. — Pode ser, docinho, mas você não ouviu falar que psicopatas são muito inteligentes? Nesse momento, tenho tudo o que você acha que te pertence. E você pode ter acesso a tudo, se casar comigo. — Você é nojento! Passou uma vida desejando o que meu pai tinha! Não era ciúmes do meu pai ou ódio da minha mãe, era inveja. Você pode ser muito inteligente, mas não passa de um inútil incapaz. Não teve capacidade de construir nada em sua vida e escolheu roubar o que meu pai teve. Mas tenho uma surpresinha pra você. Eu sou filha deles, tenho o caráter e a honra deles. E você nunca terá. — Como quiser, docinho. Deixei uns trocados em seu cartão para você abastecer seu carro pra voltar para seu apartamento. Você tem meu número. Quando não puder mais se sustentar, me ligue e eu vou te buscar pessoalmente. Senti nojo, uma ânsia de vômito me dominou, e eu não podia acreditar que estava passando por aquilo. Ele ainda disse para eu não me preocupar com as chaves da casa, porque os novos donos iriam trocar a fechadura.” Naquela noite eu me joguei na cama e chorei. Chorei pela morte dos meus pais, chorei pela traição de alguém que eu considerava um tio. Chorei por ter perdido o patrimônio que representava a vida deles. Chorei por cada colaborador da empresa, que meus pais sempre trataram como família e que, agora, teriam que trabalhar para aquele monstro. Depois de tudo, enxuguei as lágrimas, passei por cada cômodo da casa, relembrando momentos com eles, me despedi e fui embora sem olhar para trás.Estacionei no escritório mais cedo que de costume naquela segunda-feira. Estava ansioso. Adiei o quanto pude para conhecer minha esposa, mas quando a conheci sem querer no estacionamento, isso me deixou mais ansioso. Ela era atrevida e isso me atraia de um jeito estranho. Passei um ano inteiro muito bem, sem necessidade de conhecê-la. Quando planejei esse casamento, pensei em inúmeras possibilidades. Podia ter escolhido mal e a maluca querer acabar com minha vida e ficar com meu patrimônio. Eleanor poderia encontrá-la e querer acabar com ela, e eu teria que protegê-la, já que fui eu quem a coloquei nessa situação complicada. Ela podia arrumar outro parceiro e acabar com nossa relação antes do prazo. Eu precisava vigiá-la de perto. Mas a moça parecia até uma freira de tão recatada e civilizada. Não gastava nem dez por cento do que eu tinha disposto para ela gastar. Fiz um cálculo médio do que Juliete gastava em um mês quando morávamos juntos, mas minha nova esposa não chegava nem per
Quando saí da aula, dirigi até em casa com um único pensamento: hoje não vou beber. Já estava mais do que na hora de parar de adiar a tarefa de abrir as caixas do tesouro do meus pais. Mas, por mais que tentasse me concentrar nisso, minha mente insistia em voltar ao beijo que Danilo me deu no rosto. Às vezes, tinha a impressão de que ele estava flertando comigo, de maneira sutil. Mas logo me recriminava por esse pensamento. Quem sou eu para afirmar algo assim? Nunca tive experiência nesse tipo de coisa, e, além disso, ele é casado! Cheguei em casa e fui direto para o chuveiro. Soltei meus cabelos negros, que caíram como uma cascata pelas costas. Meu couro cabeludo estava dolorido por passar o dia todo preso no coque sério e profissional. Depois do banho, me sentei na cama com a caixa do tesouro no colo. Ao abri-la, senti como se estivesse liberando a caixa de Pandora. Um turbilhão de lembranças me envolveu. Fui pegando cada foto, cada desenho disforme, e as memórias surgiam uma a u
Adormeci muito emocionada com a carta da minha mãe. Quando acordei, percebi que estava amassando a carta abraçada a ela como se fosse com mamãe. E envolta em uma grande bagunça.Desamassei a carta e recoloquei no envelope, recolhi todos os meus tesouros e coloquei de volta dentro da caixa. Coloquei a carta da minha mãe por cima, fechei e guardei a caixa ao lado das outras duas.Sabia onde procurar mais tesouros deixados pelos meus pais agora, mas estava numa grande ressaca emocional e não daria conta. E tinha que lidar com todas as coisas que minha mãe já tinha falado.Coloquei um café no fogo, estava apenas de robe, totalmente nua. Gostava da solidão de minha casa e de como podia ficar à vontade. Enquanto o café coava, liguei meu notebook e segui as coordenadas que mamãe deixou no anexo para acessar a conta secreta. Não sou burra, sei que pra abrir uma conta dessas, precisaria de um valor alto. Então, achei que ali teria uma soma considerável.Coloquei o café na minha xícara preferi
Eu queria conhecer minha mulher melhor, essa era a intenção da visita de hoje. Na noite anterior, fiquei acordado pensando nisso. Tive que admitir pra mim mesmo que me apaixonei pela menina inteligente e linda com quem sou casado. Isso eu não tinha planejado quando arquitetei esse plano maluco. O plano deveria ser simples. me lembro quando Alain me perguntou porque uma menina na universidade que tivesse trancado por falta de dinheiro: — Eu preciso de uma mulher nova, culta e que tenha um certo finess. Eleanora não vai acreditar que seja um casamento de verdade, se não for assim. E você só vai encontrar uma mulher nessas características, que aceite se casar por contrato, de preferência sem nem saber quem é o marido, com alguém que esteja em grandes problemas financeiros. E trancar a universidade por causa de dinheiro, é um motivo válido pra aceitar o que eu estou propondo. — Mas sem te conhecer? — Se a mocinha em questão souber quem eu sou, vai querer me seduzir, e esse não é o pr
No carro, eu olhava pela janela em silêncio. Queria evitar uma interação com meu chefe, mas ele parecia alheio a isso. — Posso te fazer uma pergunta, Isadora? — ele fala, quebrando o silêncio.Suspirei pesadamente, para deixar claro o meu desagrado, mas acabei virando para ele com um sorriso educado. — Claro!— Você mora em uma cobertura cara, estuda em uma universidade renomada, dirige um carro do ano. Por que trabalhar como estagiária?Soltei uma risada seca. — Porque a vida de filhinho de papai só serve para pessoas como você. O resto de nós precisa ralar para conseguir as coisas.— Não me leve a mal, Isa, mas o que você ganha na Psy não cobre nem a manutenção do seu carro, quanto mais seu apartamento. E, sinceramente, você não pode me chamar de filhinho de papai baseado apenas em fofocas que Patrícia te contou.Mordi o lábio, envergonhada. — Certo. Então me conta a sua versão, e talvez apague minha primeira impressão. — Sugiro, para desviá-lo de sondar minha vida, mas no fundo,
Coloquei os fones de ouvido e liguei para a Alicia. Precisava desesperadamente saber do paradeiro do Daniel, o funcionário que minha mãe mencionou na carta. Ela me passou o telefone dele, e assim que liguei, ele atendeu e me deu um endereço. Quando cheguei ao local, fiquei surpresa. Era uma casa acolhedora, com uma cerquinha branca e um mini playground onde algumas crianças brincavam alegremente. Outras estavam trepadas em um pé de amora, e foi como se algo dentro de mim despertasse. Um flash de memória me atingiu: já estive naquele lugar, brincando naquele mesmo pé de amora quando criança.Um casal me aguardava, e então, ao me aproximar, reconheci a fisionomia do Daniel. Ele era jovem, talvez tivesse uns trinta anos. A mulher ao lado dele parecia um pouco mais velha, talvez entre 35 e 40.Daniel me perguntou com um sorriso amigável:— Você se lembra de mim? Ou da Tânia, minha esposa?Balancei a cabeça, um pouco sem jeito. — Mais ou menos...Foi então que ele começou a explicar: — Es
Assim que Isadora saiu do quarto, peguei o telefone e liguei para Ronaldo, meu segurança particular. Desde que saí da casa do meu pai, sabia que Eleanor não me deixaria em paz, então contratei um pessoal para me seguir discretamente, garantindo que nada saísse do controle. Quando Ronaldo atendeu, pedi que continuasse seguindo o carro, já que Isadora estava sozinha.Fiquei andando de um lado para o outro no quarto, ignorando completamente Juliete. Minha cabeça estava um caos. Por algum motivo insano, achei que, ao ver o estado de Juliete, Isadora se sensibilizaria e isso a faria ficar comigo. Mas que ideia maluca. Usar minha noiva quase morta para atrair a minha esposa por contrato. Claro que tudo deu terrivelmente errado. Isadora se compadeceu muito mais do que eu esperava. Agora, me via numa situação ainda pior do que antes de ir para Mairiporã. Fiz uma bagunça enorme com tudo. Para completar, percebi que estava apaixonado pela minha própria esposa... e a afastei de mim em seguida.
Assim que vi aquele homem lindo vindo na minha direção, não consegui disfarçar meu sorriso. Soltei o cinto de segurança, abri a porta do carro e deixei a chave no contato.— Pode dirigir? Pelo visto, você conhece bem a cidade. Leve-nos para almoçar. Estou morrendo de fome — ele falou animado. Hesitei por um instante, eu não esperava que ele fosse tão direto e espontâneo: — Você sabe que sou pobre e costumo comer em lugares simples, não é?— Gosto de comida caseira, não tenho problema com isso. Mas, quando te conheci, você estava em um restaurante pra lá de caro.— Só estava acompanhando a minha amiga, Laila. —Vamos, me leve a algum lugar simples.Eu o observei por um instante, antes de responder:— Posso levar, mas depois do almoço quero te levar a uma sorveteria perto da praça central. Eu amo sorvete. Sempre procuro uma sorveteria em todo lugar que vou, mas nenhuma supera essa.Danilo sorriu:— Bom saber. Essa viagem é pra isso mesmo, pra gente conversar e se conhecer melhor.— Pod