Reconhecer o brasileiro e refletir a sua complexidade é lançar olhares para esse trágico muito particular e se deixar, quase que por compulsão, contar essas histórias.
Em um período de dois anos que trabalhei no interior do estado do Ceará pude reconhecer a densidade que está nos teares do cotidiano. Traços marcantes foram saltando aos olhos, nas relações entre as pessoas, nas famílias, no patrimônio cultural, nas relações do povo com seus políticos. Assim, reconheci outro povo diferente da minha terra natal. Um povo, o mesmo povo, taxista, caminhoneiro, sapateiro, caixa de mercado, gari, as mesmas pessoas do meu antigo cotidiano, mas outros. São batalhadores do tempo e donos das suas verdades defendidas nesse vasto território. Cidadãos do encontro, outros no meu retorno, que muitas vezes eram pouco notados. Esses que, na história da nossa cultura popular, inspiram grandes composições, eternizadas na voz de cantores do Brasil afora. Alguém do comum que, numa jogada de mestre, foi uma inspiração reversa para a figura do Adão de Michelangelo, pois Deus criou o homem e o homem pode criar um certo Adão conforme sua semelhança. Um exemplo claro que me lembro agora é a canção Conceição de Cauby Peixoto. Conceição existiu realmente, como em uma apresentação, Cauby confessou e nos parece alguém sublime que o povo brasileiro aguardava como uma promessa. Cauby, como um sábio popular, um poeta, criou Conceição à imagem de Conceição.
São várias as músicas e os romances que ainda estão por serem compostos para a história de muitos inquilinos dessa terra. Porque um cidadão ordinário não mereceria um livro? São muitas, distintas e relevantes batalhas. Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré é um exemplo, seu cordel escrito de homem simples trouxe todos os tipos.
Assim, também quero contar a história de Edvaldo. Joguei bola com ele na praia de Patamares. Era um daqueles famosos “babas”. Na maioria das cidades brasileiras, o futebol amistoso sem camisa padrão é chamado de pelada, mas em Salvador, tanto na cidade baixa, quanto na cidade alta, é conhecido como baba, pois não é permitido ninguém sair, a menos que a baba seca de sede esteja endurecida no canto da boca. Estavam, nesse dia, no time adversário, dois jogadores profissionais do time do Bahia, Oziris e Heber. No time para o qual fui convidado para agarrar no gol estava Edvaldo, que conseguiu, com sua marcação firme, segurar os ataques dos dois grandes jogadores que marcaram época no futebol baiano. Não posso deixar de confessar a minha admiração pelo vigor físico de Edvaldo. Naquele baba, ele neutralizou todas as investidas contra o gol que eu guardava acanhado debaixo daquele travessão com sete metros de largura.
Quando o vi novamente foi quando ele tinha voltado da Alemanha após uma turnê de capoeiristas baianos naquele país. Isso foi na praia de Arembepe no município de Camaçari. Ele adquiriu uma serenidade que contrastava com a severidade da época do jogo em Patamares. Isso, talvez, também, pelo ultrapassado da casa dos quarenta anos e pelo fato de ter se tornado pai de um belo golfinho querendo sair da infância. Conversamos sobre provas de ruas do atletismo baiano que também participara. Além de goleiro, eu era um atleta maratonista, mas medíocre. Meu cunhado, que tinha parentes naquele município, fez a primeira intermediação para que eu encontrasse com Edvaldo. Mas isso não foi necessário, pois ele lembrava perfeitamente da minha pessoa.
Durante a nossa conversa sobre corridas de rua ele trouxe algo que inundou minha alma de lembranças. Disse que minha chegada à sua casa lhe pareceu com algo que ele sentira nos últimos meses daquele ano: era pego flutuando sobre ele mesmo quando criança numa gangorra amarrada nas galhas de um pé de aroeira. Se sentia como um espírito cuidador dele mesmo em tempos de fura pé na Bahia. Ora parecia só e em outras horas visto por uma comitiva que acompanhava suas aventuras de fazer cocô no pinico debaixo de uma esteira de vime enquanto completava cinco anos, tudo isso no Engenho Velho de Brotas.
Ele e a esposa assumiram a prática artesã com madeiras e artigos folclóricos feitos de barro que tinham encomendas em vários pontos da cidade de Salvador e Lauro de Freitas. Repeti a visita muitas vezes. Em uma das manhãs em que ouvi dele sua história, sua esposa apareceu apenas uma vez com sua criança e lá só passou um pouco tempo enquanto penteava os cachos volumosos.
Foi nesse quadro que senti que era o portador das histórias de Edvaldo. Como, em sua maioria, essas histórias se passam em Salvador, pude ver através dos meus e dos seus olhos. Sou filho dessa cidade e quem nasce na Bahia costuma cultuar, de alguma forma, suas ruas e ladeiras.
É um resumo de quase quatro décadas de uma vida e o desafio é mostrar ao leitor e à leitora a evolução e a mudança de uma cultura. Transformações que desembocam na visibilidade da cultura dessa capital, na resistência à alienação. Algo bonito de se ver em bandas afros como o Ilê, Muzenza e Olodum. A cada dia afirmando sua resistência na sua força, beleza e estilo.
Isso acontece em relação a aspectos religiosos no Brasil. Por exemplo, a Umbanda, que incorporou o sincretismo e a antropofagia se especializou em aperfeiçoar o que é do outro. Ao lado dos cultos evangélicos que não são mais tocados apenas com órgãos e pianos, mas também com instrumentos de percussão que tornam tudo mais que doce de côco duro. Lavagem das escadas que não acontece apenas na igreja do Senhor do Bonfim, mas em muitas outras. Tudo muito singular.
Hoje, morando em Fortaleza, vejo que minha vinda para cá foi fundamental para entender a natureza de um grande amigo de Edvaldo, o Queiroz e seu “jeito desenrolado de ser” como dizem os cearenses. Todos precisam saber que, quem gosta mesmo de rede é o cearense; e muito mais que o baiano. O homem cearense é amante de rede e de novela, acima da média do restante do Brasil. Em Salvador eles chegam como galegos de porta vendendo tudo, o imaginável e o inimaginável. São vistos democraticamente e todos tratados como rei na Bahia. Vemos sempre “um ceará” famoso nas ruas de Salvador e normalmente são grandes comerciantes e estão sempre fazendo desafios matemáticos com os soteropolitanos.
A capoeira, há muito tempo, não é mais atividade de afrodescendentes espadaúdo, tornou-se também produto de “boutique” para garotas loiras e bronzeadas dos bairros nobres.
O mundo mudou, e a Bahia mudou o Brasil e o mundo, não foi apenas berço esplêndido do Brasil, mas do mundo. Olhando pra lá, para a Soterópolis inconsciente de suas capacidades, as longas filas ao redor do Corpo de Bombeiros, na Ladeira da Praça, para tomar vacina, já não existem mais. E as camisas com listas horizontais, largas, chamadas de meningite. Hoje, isso parece algo bizarro como assistir ao Roberto Carlos pela janela do vizinho na sua televisão preto e branco. A rua Chile foi substituída pelos centros comerciais e, logo após, pelos grandes centros comerciais fechados. A Praça da Sé pelo grande buraco de concreto da Estação da Lapa do qual sai, veloz, o metrô. As avenidas que antes eram coloridas por carros também tornou-se algo diferente, mais fluido, os seus asfaltos e as noites iluminadas por lanternas traseiras vermelhas parecem nos querer tirar de um sonho mórbido. Depois de tudo, que a nostalgia tenha um fim.
Tudo lhe parecia novo, um novo cenário mostrava aquele espaço que tantas vezes ele vira com outros olhos. Era outra maneira de sentir e amar a vida. Ele não via mais como se de fora, mas como se estivesse à porta de entrada para a cena. Não mais como um intruso e sim como uma vitalina que se delicia em ver, sem nada dizer, sem ter que responder nada, apenas repousar na imagem que hora se desenha.Ali no terminal da Barroquinha, ele presenciou pelejas, desafios, rinhas e birras das mais diversas escolas e clãs de capoeiristas da Bahia; eram magotes que vinham desde o Canta Galo, Ribeira, Central do São Caetano, Engenho Velho, Vasco da Gama, até a Vinte Oito de Setembro e Maciel. Nesses episódios, “o pau comia”, muitas vezes com bênçãos, aús e martelos, sem uso de “pau de fogo” ou qualquer outra arma, pois era uma desonra para qualquer mestre de capoeira saber que u
Era o casal Boamorte, vindos de Irecê para Salvador, ou para a Bahia, como dizia Salustiano, ignorando que Irecê também “é a Bahia”. Salustiano Boamorte saiu da terra do feijão alegando insucesso pelas sucessivas quebras de safra. Mas sempre recebeu incentivos, principalmente de Fernando seu sogro, que adquiriu fama e fortuna com o cultivo do grão, mas a exposição ao sol também lhe rendera outra herança: pústulas, fissuras na pele e erupções cutâneas que muito temor lhe causavam e suspeitas da doença maldita. Ele, investiu em outros irmãos de Jerusa, mas acreditou também nos apelos de Salustiano, com seu jeito esporreteado, muito confundida por ele com sinceridade, mas que não lograra êxito igual em Cachoeira, sua terra natal onde todos sabiam da sua real fama. Em Irecê, recebeu um dote de vinte hectares de terra, que ele já cuidava antes mesmo de casar com Jerusa, nas folgas de suas viagens para Salvador com carradas de feijão e milho, que vendia em Água de Menino
Com três anos de casados e já fixos em Salvador, o próprio Salustiano passou a se incomodar, por Jerusa nem um muxoxo fazer por não ter filho. “A mulher parece oca”, desenrolava da mente irritada. Mas nunca em lugar algum ou circunstância alguma falava de sua esposa; nada em contrário. Porém, passou a amadurecer a possibilidade de uma adoção. Pensava ser “uma boa solução”, pois não queria muito laço afetivo nessa relação de pai e filho. Queria algo parecido com o que ele sentia em contato com as crias de Natividade, que era algo até de certa forma agradável. Vez ou outra, ela precisava levar um ou outro filho até Brotas e deixava “meia dúzia” em Mata Escura, “sabe lá com quem”, Salustiano pensava e se ria. Quando ela falava com seu vozeirão que deixou com “a menina”, ele dizia “mas que peste de menina será essa, é alguma empregada”, pois entendia que era muito pouco o que pagava a ela, mesmo com o que era vendido na porta do corredor da casa. Por outro lado, de uma maneira espírita,
Chegou a manhã de quarta, após a excelente noite de sono, quando chegou da Terça de Benção no Pelourinho. O retorno de Edvaldo para Salvador fora de um pedido feito por sua mãe em um sonho que tivera com ela, se apresentando na figura de Oya, numa noite tempestuosa, flutuado acima da Rua da Poeira, apontando a residência de Queiroz e dizendo “volte filho”. Até o seu retorno, aquela frase ecoou entre os ouvidos de Edvaldo. Salustiano não estava bem. Tinha problemas renais sérios. Nada que alguém pudesse dizer que estava nas últimas, mas Escalabau entendia que o casal Boamorte era “só ele só”. Natividade já havia tempo que não morava mais com eles. Entendia que a preocupação de Jerusa era exagerada, mas não queria deixar os dois assim tão sós. O pai já tinha sua aposentadoria, um pé de meia suficiente para sua terceira idade. Porém, ficar à mercê de secretárias, que faziam um bom trabalho, mas que não supriam a falta de um filho era deprimente para tod
Os nativos acreditam que tudo que acontece na Bahia é verdade; nem que seja lá no fundo, bem no fundo. Nunca é invenção. Dizem que, às vezes, apenas, pode ter um pouco de exagero, mas sempre no final se encontra provas de modo a tornar fidedigno o relato de qualquer acontecido. Rosa era magricela, Natividade era corpulenta, das duas se diziam que eram “cabeças feitas”. Esse termo, “cabeça feita”, nasceu na Bahia, diga-se de passagem. Como também ao se dizer “fulano está bolado”, pois é comum em algum momento na vida do baiano, este “bolar no santo”. Filhas de Rio Fundo, também no recôncavo baiano, as duas irmãs passaram parte de suas infâncias em arredores de Feira de Santana e ainda mocinhas começaram a visitar o município de Lauro de Freitas em caravana ou pau de arara para Roda de Santo na Itinga. Eram unidas, mesmo sendo de naturezas diferentes. Natividade era responsável e de quase nenhuma brincadeira. Rosa era espalhafatosa e moleca e até quando era
Naquela manhã ele não queria moto nem carro; iria andando. Passaria no Dique do Tororó e também pelo estádio da Fonte Nova e depois decidiria o restante do percurso até o Santo Antônio, onde saberia notícias de Queiroz, chamado por ele de “Ceará” e lá também era conhecido como “Pai Véi”. Na Bahia sempre fora assim, se quisesse ser celebridade teria que ter mais de um nome. Pelo menos um na Cidade Alta e outro na Baixa pra que as pessoas entendessem que teria tantas histórias que precisaria de vidas paralelas, dois nomes, assim por diante... Saltou um pouco mais de hora no Aquidabã e subiu rumo ao Santo Antônio. Tinha motivos para não ver Samara agora. E era quase certo que Queiroz não estaria na Rua da Poeira. Passando em frente ao Sanatório São Paulo sentiu arrepios ao ver as seteiras pontiagudas na entrada. A mínima visão do pátio lhe causava desgosto e agonia quase na forma de pânico. O sol estava a pino e ele logo ao chegar ao largo do Santo Antônio foi
Mais ou menos na época em que Edvaldo foi em busca de sua mãe legítima em Feira de Santana, ele conhecera Queiroz na Biblioteca Central dos Barris. Estava realmente confuso.Ele e Neto seu colega ainda de ginásio, passaram apenas a variar nas salas e praças da biblioteca. Era um local charmoso para encontros juvenis furtivos, esse era o principal atrativo da biblioteca para Henry. Inventava pesquisas para namorar nos corredores, elevadores e bancos da centenária instituição.Muito embora vivesse o processo esperado de auto-afirmação de um adolescente, era visto como carismático e elegante com seus um metro e oitenta de altura. Mantinha um jeito descolado e manhoso que seduzia bibliotecárias de várias idades. Era, ao mesmo tempo, marrento e tinha um andar de jogador de futebol. Tinha todos os trejeitos, parecia querer imitar seu jogador predileto. Ele até vivia com a m&atil
O que estava acontecendo agora com Edvaldo era quase uma repetição de anos anteriores, quando ele decidiu se aventurar no Sul do país. Queiroz em crise e ele subindo e descendo ladeira para proteger o amigo, que engolira antidepressivos entre suas cachaças; por uma desculpa de que não desistiria de Edileusa, nas suas palavras, “uma alma gêmea”. Quando em crise, Queiroz costumava dizer que perdera a chance de ser feliz com a sua “alma gêmea” de existências passadas, mas, agora, ele não iria perdê-la novamente. Essa era a única teoria do cearense que Edvaldo rejeitava por completo, para ele era uma fraqueza sua; um orgulho seu não reconhecer que não dava mais, que “ela tá noutra” e que ele não devia “fantasiar tanto a essa altura do campeonato”. Dizia Edvaldo: — Venha cá, Pai Véi, que cearense bimba é você? Que homem é esse, misturando crença com mulé, cachaça e as porra toda? E realmente ninguém entendia; Edvaldo e Samara eram os únicos que se preocupava com