Era o casal Boamorte, vindos de Irecê para Salvador, ou para a Bahia, como dizia Salustiano, ignorando que Irecê também “é a Bahia”.
Salustiano Boamorte saiu da terra do feijão alegando insucesso pelas sucessivas quebras de safra. Mas sempre recebeu incentivos, principalmente de Fernando seu sogro, que adquiriu fama e fortuna com o cultivo do grão, mas a exposição ao sol também lhe rendera outra herança: pústulas, fissuras na pele e erupções cutâneas que muito temor lhe causavam e suspeitas da doença maldita. Ele, investiu em outros irmãos de Jerusa, mas acreditou também nos apelos de Salustiano, com seu jeito esporreteado, muito confundida por ele com sinceridade, mas que não lograra êxito igual em Cachoeira, sua terra natal onde todos sabiam da sua real fama.
Em Irecê, recebeu um dote de vinte hectares de terra, que ele já cuidava antes mesmo de casar com Jerusa, nas folgas de suas viagens para Salvador com carradas de feijão e milho, que vendia em Água de Meninos. Dizia para Fernando seu sogro, que seu produto ia para os navios das docas e negociava com o governo da Bahia diretamente; mentira que Fernando fazia vistas grossas, pois Salustiano sempre saldava o acordo com ele e entendia que sua carga pequena, era melhor demorar um pouco mais e ser vendida na feira e armazéns da Cidade Baixa. Esse "caô", Fernando, na “verdade verdadeira”, aceitava, pois queria ver em seus filhos esta sugesta de baiano, que lhe traria bons dividendos nas negociações com “os homens da Bahia”.
Fernando precisava de um agregado como Salustiano na família, apesar de suspeitar que as histórias de suas origens em Cachoeira não eram cem por cento confiáveis. Agenor, seu filho mais velho, em pesquisas de campo na mesma cidade nunca se interessou em saber do passado do cunhado, mesmo porque cunhado para ele não significava nada; nem parente era. De Jerusa sua irmã, ele pouco lembrava. Era como uma mosca morta. Achava que Salustiano não era mal partido para sua irmã, que se ela não casasse, ficaria uma moça velha, e que o passado dele não devia ser tão horrendo, pois conhecia amigos de infância "garganteiros" como o cunhado, mas não tinham coragem de matar um sariguê. Um dia, após o feijão lhe dar toda sua autonomia, ele moraria no Rio de Janeiro, veria as garotas de Ipanema. Iria ao Maracanã torcer para o Flamengo, time do seu coração. Quem sabe ver o Flamengo vencer o Santos de Pelé em pleno Mário Filho fervendo. Ele sonhava com isso ouvindo jogos do Flamengo no seu Philco transistorizado. Jerusa quase não existia para ele. A Bahia não existia; era como se fosse o rabo do cachorro, e “nisso Salustiano tá certo”, pensava; pois para ele, Irecê nem no mapa estava, era “onde o cachorro lascou a boca”. “Onde o vento faz a curva”. Terra quente e sem praias.
Fernando, posteriormente tendo confirmado as suspeitas da doença que ele mais temia, passou a incentivar todas as escolhas dos filhos. Jerusa já casada com Salustiano, tornou-se também sua companhia em algumas viagens até Salvador. Não tardou ele tornar-se um mascate de tecidos. Também ia até os curtumes da região e levava todos artigos de couro possíveis para vender “na Bahia”. Salustiano inventou várias desculpas e mostrou que seu interesse em Salvador era só negócios, mas nunca se aproximou de Recife ou do Sudeste.
Quando começou a implantação do Porto de Aratu e Jerusa “volta e meia” na boleia com ele, não foi difícil convencer Fernando que seria melhor para todos, inclusive para ela, que sempre fora anêmica e frágil, irem definitivamente para “a Bahia”. Salustiano adorava a “Boa Terra”.
Jerusa se animou com a ideia de tratar sua condição estéril sem mesmo considerar que podia ser ele o inapto a ter filhos. Para ela, se o marido conquistou seu pai, ele podia muito bem assumi-la sem nenhuma preocupação.
Salustiano tinha um projeto de vida imaginário, de transportar o cimento para a construção do porto e depois crescer junto com a riqueza que seria gerada ao redor dele. Não existia nada consistente em toda sua ideia, mas ele tinha uma economia, um caminhão e cruzeiros suficientes para comprar sua chácara em Brotas. A palidez de Jerusa, contrastada com as negras de ancas fartas, que viviam na mais africana cidade brasileira, o que causava em Salustiano uma inexplicável sensação de prazer. Ele chegava a desenhar em sua mente vários quadros como mandalas junguianas caleidoscópicas se desdobrando em nádegas. Suas taras alucinadas colocava em projeções noturnas, Jerusa sendo abraçada e recebendo um banho de pipocas de pessoas feitas no candomblé; entre outras “manias” mais.
Enfim, ele conseguiu, realmente, transportar cimento para o porto, uma única vez, porém ele tomou gosto pela condição de vendedor de tecidos. Era quase como de porta em porta se não fosse seu grande conhecimento com comerciantes, taxistas, feirantes, professores e tantos outros profissionais liberais que circulavam pelo centro histórico. Dessa maneira, ele achava tempo e público para contar suas “culhudas”. O sonho de riqueza foi trocado por bravatas em pleno Pelourinho e botecos em Brotas. Adotou a brilhantina o quanto pôde e, por vezes, era visto fazendo absolutamente nada na entrada das Sete Portas.
Salustiano não gostava de criança e não conseguia imaginar um bebezinho recémnascido, de pernas para cima com sua genitália exposta enquanto trocadas suas fraudas meladas e fetidamente bafejantes. Nas casas de seus fregueses enquanto mostrava uma peça de tecido, pensava em dar catiripapos na mãe da família por deixar seu filho chorar no berço ou quando os maiorezinhos corriam pela casa enquanto ele fazia desatentas demonstrações. Para ele “Deus era bom”, pois fechou a madre de Jerusa. E ela sentia não ter energia de parir ou cuidar de uma criança. Até rezava e fazia promessas para ter um filho, mas qualquer santo entendia que não havia verdade em seus apelos. Igual a ela estava para nascer, pois seu santo de verdade era Salustiano; o marido para ela, era a reencarnação de Santo Antônio. Salustiano por sua vez, falava de outras mulheres, mas queria se referir a ela que tinha uma missão nessa vida: a missão de ser exatamente nada. Para ele, que era do tipo capaz de colocar a mulher de castigo, ao sentir essa forma de Jerusa ser feliz com a vida, achava de bom gosto e bom grado tal comportamento.
Com três anos de casados e já fixos em Salvador, o próprio Salustiano passou a se incomodar, por Jerusa nem um muxoxo fazer por não ter filho. “A mulher parece oca”, desenrolava da mente irritada. Mas nunca em lugar algum ou circunstância alguma falava de sua esposa; nada em contrário. Porém, passou a amadurecer a possibilidade de uma adoção. Pensava ser “uma boa solução”, pois não queria muito laço afetivo nessa relação de pai e filho. Queria algo parecido com o que ele sentia em contato com as crias de Natividade, que era algo até de certa forma agradável. Vez ou outra, ela precisava levar um ou outro filho até Brotas e deixava “meia dúzia” em Mata Escura, “sabe lá com quem”, Salustiano pensava e se ria. Quando ela falava com seu vozeirão que deixou com “a menina”, ele dizia “mas que peste de menina será essa, é alguma empregada”, pois entendia que era muito pouco o que pagava a ela, mesmo com o que era vendido na porta do corredor da casa. Por outro lado, de uma maneira espírita,
Chegou a manhã de quarta, após a excelente noite de sono, quando chegou da Terça de Benção no Pelourinho. O retorno de Edvaldo para Salvador fora de um pedido feito por sua mãe em um sonho que tivera com ela, se apresentando na figura de Oya, numa noite tempestuosa, flutuado acima da Rua da Poeira, apontando a residência de Queiroz e dizendo “volte filho”. Até o seu retorno, aquela frase ecoou entre os ouvidos de Edvaldo. Salustiano não estava bem. Tinha problemas renais sérios. Nada que alguém pudesse dizer que estava nas últimas, mas Escalabau entendia que o casal Boamorte era “só ele só”. Natividade já havia tempo que não morava mais com eles. Entendia que a preocupação de Jerusa era exagerada, mas não queria deixar os dois assim tão sós. O pai já tinha sua aposentadoria, um pé de meia suficiente para sua terceira idade. Porém, ficar à mercê de secretárias, que faziam um bom trabalho, mas que não supriam a falta de um filho era deprimente para tod
Os nativos acreditam que tudo que acontece na Bahia é verdade; nem que seja lá no fundo, bem no fundo. Nunca é invenção. Dizem que, às vezes, apenas, pode ter um pouco de exagero, mas sempre no final se encontra provas de modo a tornar fidedigno o relato de qualquer acontecido. Rosa era magricela, Natividade era corpulenta, das duas se diziam que eram “cabeças feitas”. Esse termo, “cabeça feita”, nasceu na Bahia, diga-se de passagem. Como também ao se dizer “fulano está bolado”, pois é comum em algum momento na vida do baiano, este “bolar no santo”. Filhas de Rio Fundo, também no recôncavo baiano, as duas irmãs passaram parte de suas infâncias em arredores de Feira de Santana e ainda mocinhas começaram a visitar o município de Lauro de Freitas em caravana ou pau de arara para Roda de Santo na Itinga. Eram unidas, mesmo sendo de naturezas diferentes. Natividade era responsável e de quase nenhuma brincadeira. Rosa era espalhafatosa e moleca e até quando era
Naquela manhã ele não queria moto nem carro; iria andando. Passaria no Dique do Tororó e também pelo estádio da Fonte Nova e depois decidiria o restante do percurso até o Santo Antônio, onde saberia notícias de Queiroz, chamado por ele de “Ceará” e lá também era conhecido como “Pai Véi”. Na Bahia sempre fora assim, se quisesse ser celebridade teria que ter mais de um nome. Pelo menos um na Cidade Alta e outro na Baixa pra que as pessoas entendessem que teria tantas histórias que precisaria de vidas paralelas, dois nomes, assim por diante... Saltou um pouco mais de hora no Aquidabã e subiu rumo ao Santo Antônio. Tinha motivos para não ver Samara agora. E era quase certo que Queiroz não estaria na Rua da Poeira. Passando em frente ao Sanatório São Paulo sentiu arrepios ao ver as seteiras pontiagudas na entrada. A mínima visão do pátio lhe causava desgosto e agonia quase na forma de pânico. O sol estava a pino e ele logo ao chegar ao largo do Santo Antônio foi
Mais ou menos na época em que Edvaldo foi em busca de sua mãe legítima em Feira de Santana, ele conhecera Queiroz na Biblioteca Central dos Barris. Estava realmente confuso.Ele e Neto seu colega ainda de ginásio, passaram apenas a variar nas salas e praças da biblioteca. Era um local charmoso para encontros juvenis furtivos, esse era o principal atrativo da biblioteca para Henry. Inventava pesquisas para namorar nos corredores, elevadores e bancos da centenária instituição.Muito embora vivesse o processo esperado de auto-afirmação de um adolescente, era visto como carismático e elegante com seus um metro e oitenta de altura. Mantinha um jeito descolado e manhoso que seduzia bibliotecárias de várias idades. Era, ao mesmo tempo, marrento e tinha um andar de jogador de futebol. Tinha todos os trejeitos, parecia querer imitar seu jogador predileto. Ele até vivia com a m&atil
O que estava acontecendo agora com Edvaldo era quase uma repetição de anos anteriores, quando ele decidiu se aventurar no Sul do país. Queiroz em crise e ele subindo e descendo ladeira para proteger o amigo, que engolira antidepressivos entre suas cachaças; por uma desculpa de que não desistiria de Edileusa, nas suas palavras, “uma alma gêmea”. Quando em crise, Queiroz costumava dizer que perdera a chance de ser feliz com a sua “alma gêmea” de existências passadas, mas, agora, ele não iria perdê-la novamente. Essa era a única teoria do cearense que Edvaldo rejeitava por completo, para ele era uma fraqueza sua; um orgulho seu não reconhecer que não dava mais, que “ela tá noutra” e que ele não devia “fantasiar tanto a essa altura do campeonato”. Dizia Edvaldo: — Venha cá, Pai Véi, que cearense bimba é você? Que homem é esse, misturando crença com mulé, cachaça e as porra toda? E realmente ninguém entendia; Edvaldo e Samara eram os únicos que se preocupava com
Naquela época, para surpresa de Edvaldo, o cearense não se preocupava em nada sobre a vida sentimental de Samara, se ela tinha algum namorado. Edvaldo, que vez ou outra se achava pensando sobre isso; que, ela ainda mais nova, não era “assanhada para o lado de namoro”. Entendia que Samara tinha a excelente educação que Queiroz lhe proporcionara mas tinha o pensamento torto de que “a menina baiana sempre fora e seria assim, com o quadril solto para saçaricar, mas nem sempre namoradeira”, e Samara era desse jeito, pois já fizera balé e sacudia o esqueleto em qualquer ritmo, mas para namorado ou falar de rapaz, nunca ouvira e para sua surpresa, Queiroz que era um autêntico “Pai Véi”, nesse quesito “nem tava aí nem tava chegando”. Uma vez quando ela tinha quatorze anos, mais ou menos, Edvaldo perguntou ao pai sobre o assunto e Queiroz respondeu “tá preocupado, macho? Nem eu…” e ele disse “não é pra tá?”, pois tinha receio que a menina fosse como a mãe e, na sua linha de raciocín
Era tempo de chuva de dia inteiro em Salvador, rumas de chuva, e já escurecera. Edvaldo, depois da indecisão sobre onde ir, seguiu rumo ao seu apartamento. Também estava inconscientemente indeciso sobre pensar em Samara, mas seria muito difícil não pensar depois daquele olhar. Ele ficou estampado na retina e foi mais fundo. Tentou colocar outra preocupação em sua mente como ligar para o trabalho, dando mais justificativas sobre sua ausência, mas lembrou que Edgar, seu chefe, já havia lhe dito que fosse cuidar de Ceará. Que era muito seu amigo, uma pessoa a quem devia respeito e admirava profundamente por razões que cansamos de repetir. Pensou mais uma vez em Salustiano, tinha plena consciência de quem era Ceará e sua filha e o mesmo respeito que tinha pelo primeiro teria por ela. Pensou nela: “aquela…” Procurava mentalmente uma palavra. Tinha que pensar em pessoas para visitarem o amigo, pessoas de confiança que pudessem passar uma tarde com ele, pois o ex-padre, o desconhecido Quev