Barroquinha

Tudo lhe parecia novo, um novo cenário mostrava aquele espaço que tantas vezes ele vira com outros olhos. Era outra maneira de sentir e amar a vida. Ele não via mais como se de fora, mas como se estivesse à porta de entrada para a cena. Não mais como um intruso e sim como uma vitalina que se delicia em ver, sem nada dizer, sem ter que responder nada, apenas repousar na imagem que hora se desenha.

Ali no terminal da Barroquinha, ele presenciou pelejas, desafios, rinhas e birras das mais diversas escolas e clãs de capoeiristas da Bahia; eram magotes que vinham desde o Canta Galo, Ribeira, Central do São Caetano, Engenho Velho, Vasco da Gama, até a Vinte Oito de Setembro e Maciel. Nesses episódios, “o pau comia”, muitas vezes com bênçãos, aús e martelos, sem uso de “pau de fogo” ou qualquer outra arma, pois era uma desonra para qualquer mestre de capoeira saber que um dos seus usara arma “de polícia” para se defender. Bem da verdade, que um golpe desses, era arma branca para os homens da lei.

Antigamente na Bahia defesa para capoeira era o principal ataque; todo discípulo tinha de guardar bem a onça dentro de si. Bastava ser como gato domesticado, um passo de cada vez e ouvir os sinais. Só em casos extremos é que se podia fazer uso da força, pois a raiva junto com um golpe era quase sempre fatal para o oponente ou para ele mesmo; por isso que Edvaldo lembrava que, na maioria das vezes, anos antes, a molecada voltava para seu gueto sem levar às “vias de fato” uma briga; tudo em respeito e honra aos seus mestres que muitas vezes eram sexagenários.

Naquele tempo era diferente, pensava ele, que mestre de capoeira na Bahia era também “boxe misturado”, que, “capoeira só da angola”, que, “a maioria eram mais dançarinos que lutadores”, que logo conheceria uma alemã ou holandesa e “se jogava” rumo à Europa para “ensinar percussão a gringo” e anos depois voltaria por vezes com “suas crias e esposas brancas” ou, em outra hipótese, viciado em alguma droga do velho mundo e com o resto de dinheiro para gastar com uísque barato no Santo Antônio e adjacências, na “dor de corno” da lembrança da paixão de além-mar. Mas tudo isso eram reminiscências suas, sandices, pois não era bem assim desta forma levando em conta que até os melhores artistas marciais queriam conhecer essa arte feita no Brasil e levada por grandes mestres baianos de capoeira. Na infância de Edvaldo o mestre de capoeira era diferente do “tempo de agora”; era como, quase a figura de Oxalá. Na verdade era um tipo de Oxalá Velho, na sabedoria e na reverência devida.

Edvaldo nesse instante olhava seu relógio que marcava onze da noite, ele via tudo a partir daquele ônibus que muitos tentavam entrar, até mesmo pela janela, pois era o último a circular, mas ele garantira seu acento no fundo do lado do motorista, dalí estava admirando o que via por não conhecer esse movimento na noite da Bahia, embora ele tenha passado maior parte de sua vida próximo na Rua da Poeira e bregas da Ajuda e Maciel.

Continuava a conferir as horas, meio que perdido nas lembranças, tocando o círculo do seu relógio de pulso como se o mesmo tivesse conectado aos seus anos de andança; como se deslizando o dedo suavemente na lateral da "mica" ele também podia visualizar melhor e viajar no tempo por décadas passadas. Fatos ocorridos há cinco anos pareciam mais longe que vinte. E parecia que, aquele relógio tinha algo mágico, pois tudo lhe veio de maneira muito clara naquele instante ali. Antes mesmo do ônibus chegar ele já se sentia em cima do palco que criara agora e com o passar dos anos na sua feia e bela cidade do Salvador.

Os combates de capoeiristas que ele lembrava agora, ocorriam quando Salustiano o levava na Baixa dos Sapateiros para comprar cigarros, bombons, jujubas, canetas, elásticos, botões de camisa e outros aviamentos mais, para surtir uma bodega, mais conhecida como “venda” na Bahia de tempos passados, que ele montara para Natividade, aia de Jerusa, sua esposa, na intenção de ajudá-la, pois tinha sete filhos sob seus cuidados e outros mais espalhados. Salustiano dizia não entender, como Natividade conseguia dar de comer pra tanto filho e ainda era mãe de leite para quem mais quisesse; inclusive ele, Edvaldo Escalabau. Moravam no Engenho Velho de Brotas e tinham automóvel, um F350 na garagem mas justificava Salustiano, que só ia à Baixa dos Sapateiros de Lotação, porque “lá não tem onde guardar o carro”, mas que para Edvaldo ou Escalabau — como queiram, pois tinha dois nomes registrados em cartório e outras mais alcunhas — era uma desculpa para flertar com as camelôs, baianas de acarajé e ciganas que pediam sua mão. Esta cena Edvaldo não tragava: seu pai todo de branco, sapato e tudo, com seu revólver calibre 38 no coldre solto, pressionado pelo cinto; algo nojento de ver, pois via em casa o pai chamando o baiano simplesmente de nativo, e que não gostava das presepadas dos nativos, que as baianas eram impetuosas, mas nesses passeios adorava beijar as mãos das baianas de acarajé.

Lembrava de tudo isso agora com o mesmo asco de criança e ainda preso ao relógio de pulso e as lembranças. Pensamentos ao léu não faziam caso do passado ou presente, pois como uma vitalina, calado via afrodescendentes, vestidos de branco, com seus tênis “de marca” entrando pela porta ou janela sem o cobrador nada dizer. “E ele não era doido”, pensava rindo, como homens de tamanha envergadura conseguiam atravessar aquela janela tão pequena e ainda espalmavam a mão com o cobrador, com toda manha e malandragem dizendo “e ai cobra”, que respondia “e ai negão”. Edvaldo ria agora, pois achava que havia se tornado um gentleman após passar anos no Sudeste; havia esquecido daquelas desorderagens.

O terminal estava mal iluminado e isso nunca mudou desde criança quando Salustiano o levava ali. Pensou que o pai levava o revólver só para… “nem sei pra quê”. Sentia abuso de pensar. A Bahia “naquela época era tão diferente dos tempos de agora”; “havia trombadinhas, mas todo mundo sabia quem era quem”. Pensava que “novidade era um atropelo ou quando um carro dos bombeiros saía do pé da Ladeira da Praça aos berros”. “Não tinha necessidade de sair armado em Salvador naquela época”, pensava.

Mas agora ele olhava para as divindades negras que entravam ali. Algumas protegidas por seu homem e outras por seu santo. Negras; na maioria vestidas de branco, e não podia ser diferente pois era Terça da Bênção. Algumas com tez marrom, outras mais para cor do ébano; cílios postiços, outras naturais, mas sempre retocados de dourados ou prateados. Narizes achatados ou poucos afilados, e lábios sempre grossos. Cabelo curto ou megahair; tererê azul ou branco. De uma maneira bem discreta se podia perceber o relevo das calcinhas, que ele podia jurar que eram feitas de prata. Calcinhas de prata das fantasias dele.

No meio do coletivo uma loura, provavelmente europeia, protegida por um musculoso afrodescendente que muito lembrava a figura mitológica de Ogum.

Em Salvador, os ensaios para carnaval já tinham começado. O motorista já se sentava para sair e uma chuva fina caia. Edvaldo sentia cheiro de preto ali; era o mais gostoso cheiro, que Salustiano mentia dizendo que não gostava, mas que volta e meia estava num baticum exatamente para se sentir gente com tal cheiro. Edvaldo adorava, pois era seu próprio cheiro misturado ao batom, perfume, hálito e suor de todos ali exalados.

Outra gringa, uma figura fantasmagórica, ali presente, o devorava com os olhos e também parecia estar fascinada com aquele lugar e instante. Era a vadiagem de Edvaldo, que também era filho dessa terra, mas que voltava de uma longa jornada por outros paraísos do Brasil.

Há muito tempo não ia ao Engenho Velho, portanto os passageiros ali presentes não eram conhecidos.

Ele percebeu que além do zunzunzum fora e dentro do coletivo, existia um som de atabaque distante, mas não conseguia identificar de onde vinha este som. Devia ser alguém exibindo um novo toque e era dessa maneira que novos ritmos surgiam na Bahia. Ele ficou surpreso com a aparição do café, chegando num carro de mão que mais parecia um trio elétrico; ele pensava que “devia ter descido feito helicóptero do Relógio de São Pedro”.

A partir daí, um sentimento poderoso e belo lhe tomou o ser lembrando de Ceará dizendo, que o mundo começou na África e o Brasil na Bahia e que tudo que Deus criou era belo; que não havia raça superior ou inferior e até o esquimó também tinha sua imponência.

Lembrou do interior de São Paulo; crianças com bochechas rosas e olhos azuis, caminhando à beira da estrada acompanhando seus pais, pequenos camponeses, vindos das cidades do interior do Sul, aprendeu como o Brasil era carregado de diversidade.

Passando no Bairro da Liberdade em Sampa Capital, também viu descendentes de japoneses, mas também viu muita diversidade, e agora, de volta à Roma Negra, também achou que valeu a pena sua andança. O Brasil era um colosso e muito belo também por seu povo.

Entretanto, o que ele queria agora, era sair definitivamente de seu exílio de frio e nuvens cinzentas, que no início foi maravilhoso, mas agora a ideia era passear descalço na beira do mar de Itapuã até Jardim de Alá. Passar uma semana em Arembepe; pegar o Ferry Boat e acampar com barraca em Barra do Gil. Redescobrir Salvador; subir e descer ladeira era o que ele queria. Quem sabe com um amigo… “amigo é coisa de criança”, lembrou dessas palavras de Barbosa, colega de copo do Santo Antônio.

Edvaldo sabia que tinha um irmão mais velho, um mestre, um pai, um amigo em Queiroz, mas nesse momento não podia contar com ele.

E Salustiano? O que era Salustiano para ele mesmo? Todos no bairro de Brotas diziam que ele era filho, quase como filho legítimo de Jerusa e Salustiano, mas Edvaldo nunca o viu assim e agora nem queria pensar sobre isso.

Somente aquele relógio continuava a conectá-lo aos seus passeios pela Baixa dos Sapateiros e Comércio, pois alí ele não era apenas um marcador das horas, mas um objeto que remetia a lembranças. Subindo e descendo o Taboão com um pacote de moedas à frente de Salustiano, que parecia ter a mão apoiada no coldre da arma com “a brilhante ideia”, que nenhum meliante suspeitaria, que uma criança negra levaria dinheiro num pacote pardo no Centro Histórico da cidade. Era pesado o pacote, pois continha mais moedas que cédulas. Essa arrumação do pai só não era mais fascinante para Edvaldo, que ver os pernas de pau propagando com um megafone as chitas na Baixa dos Sapateiros; pois ele queria um dia, quando fosse adulto, estar ali em cima, como um perna de pau. Não como ele fora em um campo escondido, cercado de mato e cobras em Campinas de Brotas e onde ele recebeu a alcunha de Escalabau, mas o perna de pau misterioso e poderoso que Salustiano tanto lhe fazia medo.

Em tudo isso, ele via um quê de nobreza no pai, pois ele prestava essa caridade a Natividade: arrumar aquele corredor da casa. No qual até se vendia geladinho e abafa-banca para a meninada da rua. O pai fazia isso até contrariando sua mãe, vinte anos mais nova, no entanto, doente e com energia de uma mulher velha.

Lembrando de Jerusa agora, recordou existir um pouco da natureza da mãe em si, mesmo sabendo não existir os laços consanguíneos entre os dois. Edvaldo era paciente como ela, de tom baixo de voz e às vezes, assumia inexplicavelmente uma condição de acomodado. Edvaldo gostava da paz de Jerusa e, depois dos vinte anos, passou a pensar ser ela uma alma gêmea.

Agora, com um pouco de esforço, ele teria que ir ao Engenho Velho e dormir na casa da mãe. Ele não queria ver amigos antigos, que até os nomes não tinham importância, e “amigo é coisa de criança” como dizia Barbosa, e muitos mudaram para Cajazeiras e outros “morreram da cachaça”. Edvaldo despertava.

    

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