Houve um tempo em que os gigantes esculpiam montanhas com as mãos nuas, as fadas dançavam em florestas de cristal e os demônios brindavam com vinho sob a luz de duas luas. A Terra era uma tapeçaria de raças, tecida com magia e sangue. Mas o equilíbrio é frágil, e a ganância dos deuses, ainda mais. Nas ruínas de um mundo outrora grandioso, Andrômeda observava o céu, o olhar perdido entre as estrelas. O eco da voz de Kael era longínquo, mas presente. Ela sentia o sangue escorrer entre os dedos, que freneticamente pressionavam o ferimento profundo em seu ventre. — Não, não, não… Mil vezes eu, mas minha Deusa, não! Kael estava no centro de uma planície destruída, onde a terra rachada se estendia até onde os olhos podiam ver. O cheiro de cinzas e sangue impregnava o ar, enquanto nuvens negras rodopiavam no céu como presságios de um destino inevitável. A voz dele se tornou um lamento desesperado. — Abre os olhos, por favor… Fica comigo. Não me deixa. Eu não quero… Eu não consigo fi
Doze dias se passaram até que Kael finalmente abriu os olhos. Seu corpo estava pesado, e sua visão demorava a se acostumar com a luz fraca que atravessava a janela estreita. O cheiro de ervas amargas pairava no ar, misturado ao aroma de cera queimada. — Sente-se melhor? — A voz feminina soou suave, mas carregada de intenção. Kael virou a cabeça com dificuldade e encontrou uma mulher ao lado da cama, depositando uma bandeja com frascos e unguentos sobre o criado-mudo. Ele se sobressaltou, mas conteve a reação. — Quem é você? Ela sorriu, inclinando-se levemente na direção dele. Seus dedos pairaram sobre a faixa que cobria o ferimento em seu ventre. — Tenho muitas respostas, mas nenhuma convincente o suficiente para não parecer uma ameaça. — Seu tom era divertido, mas os olhos mantinham um brilho calculista. — Mas não se preocupe. Quando o encontrei, você já estava morto, capitão. Se quisesse que morresse, bastava deixá-lo onde estava. Kael se recostou contra os travesseiros,
Horas depois, o cheiro de carne assada e especiarias o despertou. O quarto estava escuro, exceto pela lareira ainda acesa. Kael se levantou devagar, sentindo as dores no corpo protestarem. Vestiu uma camisa negra dobrada ao lado da cama e seguiu pelo corredor estreito de pedra, guiado pelo aroma da comida. A sala de jantar era menor do que esperava. Uma mesa de madeira robusta ocupava o centro, iluminada por velas suspensas por correntes no teto. Ágata estava sentada, servindo-se de um prato generoso. — Você demorou, Capitão. Pensei que ia desmaiar de novo — ela sorriu, tomando um gole de vinho. Kael puxou a cadeira e sentou-se sem responder de imediato. Pegou um pedaço de pão e levou à boca, mastigando lentamente. — Agora me diga. O que realmente quer de mim? Ágata ergueu uma sobrancelha. — Direto ao ponto. Gosto disso — ela girou a taça de vinho entre os dedos. — Eu quero que você viva, Kael. Ele riu, seco. — Você roubou metade da minha alma — Kael rosnou, esmagando o
Cambaleando pelo corredor estreito, Kael sentia o mundo girar a cada passo. O vinho pesava em seu sangue mais do que deveria, e algo lhe dizia que Agatha, apesar de ter bebido ainda mais, permanecia sóbria por um motivo que ele ainda não conseguia decifrar. Mas seus pensamentos estavam turvos demais para isso agora. Tudo o que queria era dormir. Fechar os olhos. Esquecer. Quem sabe, se tivesse sorte, sonharia com Andrômeda. Mas nem mesmo a embriaguez foi capaz de enganá-lo. A realidade era implacável. Andrômeda estava morta. A dor veio como uma lâmina afiada, cravando-se fundo em seu peito. O ar fugiu de seus pulmões, os músculos travaram, e ele desabou contra a porta do quarto. O chão frio sob seu rosto não trouxe alívio algum. Com esforço, arrastou-se até a fechadura, forçando a porta a se abrir. Assim que o fez, um perfume familiar o envolveu. Kael parou. O cheiro delicado pairava no ar, preenchendo cada canto do cômodo. Lírios. Andrômeda amava lírios. Dizia que eram flo
Kael desceu do sótão, ainda perdido em pensamentos sobre o encontro inesperado com Boldar. Caminhava pelo corredor rumo ao quarto quando algo do lado de fora chamou sua atenção. Ao passar por uma das janelas, parou abruptamente. Lá fora, uma das árvores se moveu. Não foi um simples balançar de vento ou o farfalhar rotineiro das folhas. Ela deslizou pelo solo, como se estivesse viva. Franziu o cenho, inclinando-se para enxergar melhor. Outra árvore repetiu o movimento, depois outra, e mais outra, como se a floresta inteira estivesse… caminhando. Foi então que as palavras de Agatha ecoaram em sua mente: "A casa anda em reforma." Ele piscou. Aquilo não era uma metáfora. A casa realmente andava. Kael recuou um passo, observando melhor a estrutura ao redor. Por fora, parecia pequena, quase insignificante, mas lá dentro… era imensa, confortável, aconchegante de um jeito estranho. Aquilo exigia um nível altíssimo de magia. Ele soltou um riso curto. — Uma maga de primeiro nível
Nos três dias seguintes, Kael e Ágata permaneceram na vila. Kael reforçou as cercas, cavou um novo poço e inspecionou os estábulos. Ágata, por sua vez, canalizou sua magia para restaurar parte das plantações ressecadas. Apesar dos esforços, os ataques às carroças dos viajantes continuavam sem sentido, e Kael precisava descobrir a verdade. À noite, na taverna da aldeia, ele espalhou um boato: um novo carregamento de cerveja estava a caminho, escoltado por um mercador rico, dono da fabricação. Como esperado, o "lobo" atacou novamente. Mas não havia mercador, apenas uma armadilha cuidadosamente montada para revelar a verdade. Durante o confronto, Kael percebeu que não era um lobo atacando as carroças — eram homens. Os bandidos usaram a lã das ovelhas desaparecidas para criar disfarces e encobrir seus rastros. Após um combate breve, Kael os capturou e os levou ao ancião da vila. Exausto, retornou à casa onde estavam hospedados. Quando o terceiro dia amanheceu, a vila respirava com ma
Bazzard era uma cidade de pedra e ferro, com ruas fervilhantes de mercadores, guardas e viajantes. Kael e Ágata passaram pelos portões sem dificuldades, exibindo o selo do rei. — Vamos direto à prisão — disse Ágata. O prédio era sombrio e úmido, impregnado pelo cheiro metálico de ferrugem e algo mais… algo que Kael reconheceu no instante em que cruzou a entrada. Ódio. Quando a cela de Yoran foi aberta, a reação dele foi imediata. Um soco certeiro atingiu Kael no queixo, jogando-o para trás. — Acha que eu sou idiota?! — rosnou Yoran. — Acha que eu não ia sentir esse cheiro podre em você?! Kael se ergueu, limpando o canto da boca, o olhar endurecido. — Filho da— Antes que terminasse, revidou o golpe, arremessando Yoran contra a parede. Ágata segurou seu braço antes que ele avançasse de novo. — Chega. Yoran cuspiu no chão e estreitou os olhos para ela. — O que vocês querem? — Falar com você — respondeu Ágata, soltando Kael. — Mas, se preferir continuar bancando o
Kael estava quase sem fôlego com a história. A tensão aumentava a cada palavra, mas Yoram continuou, impassível: — A voz me ofereceu algo... algo que eu nem sabia que queria. Falou de riquezas, conforto, e até me mostrou uma visão do que poderia ser meu futuro, caso aceitasse. Sei o que você está pensando: que tipo de idiota cai num poço, encontra uma vela falante e ainda escuta o que ela tem a dizer? — Ele riu, sem humor, balançando a cabeça. — Eu concordo. Mas eu estava desnorteado, sem saber o que fazer. E quando a vela me prometeu que eu poderia trazer Yure de volta, eu não hesitei. Aceitei na hora. O silêncio pairou por um instante antes de Yoram continuar, sua voz levemente rouca. — Assim que aceitei... a vela se apagou. E eu caí. Caí sem parar. O mundo ao meu redor desmoronava, e a cada vez que meu corpo colidia contra algo, eu amaldiçoava aquela maldita vela. Mais uma pancada, e eu teria morrido. Kael respirou fundo, processando as informações, tentando encaixar as peça