Kael estava quase sem fôlego com a história. A tensão aumentava a cada palavra, mas Yoram continuou, impassível:
— A voz me ofereceu algo... algo que eu nem sabia que queria. Falou de riquezas, conforto, e até me mostrou uma visão do que poderia ser meu futuro, caso aceitasse. Sei o que você está pensando: que tipo de idiota cai num poço, encontra uma vela falante e ainda escuta o que ela tem a dizer? — Ele riu, sem humor, balançando a cabeça. — Eu concordo. Mas eu estava desnorteado, sem saber o que fazer. E quando a vela me prometeu que eu poderia trazer Yure de volta, eu não hesitei. Aceitei na hora. O silêncio pairou por um instante antes de Yoram continuar, sua voz levemente rouca. — Assim que aceitei... a vela se apagou. E eu caí. Caí sem parar. O mundo ao meu redor desmoronava, e a cada vez que meu corpo colidia contra algo, eu amaldiçoava aquela maldita vela. Mais uma pancada, e eu teria morrido. Kael respirou fundo, processando as informações, tentando encaixar as peças do quebra-cabeça. — Então... o que é esse artefato? — perguntou, estreitando os olhos. Yoram sorriu de canto e deslizou os dedos sobre a pulseira de ouro em seu pulso, uma joia simples, marcada por uma única linha preta na vertical. — Esta pulseira... — Ele fez uma pausa, olhando Kael com um brilho travesso no olhar. — Ela não faz nada. — Como assim, nada? — Kael franziu a testa. — É só um lembrete físico — Yoram deu de ombros. — Mesmo sem ela, desde o momento em que despertei naquela cela do castelo, sou mais rápido, mais forte. Algumas habilidades ainda são um mistério para mim, mas outras foram fundamentais nas lutas na prisão. Consigo roubar energia vital dos meus inimigos para aumentar minha força e velocidade — velocidade essa que ultrapassa os limites humanos. Posso criar ilusões incrivelmente realistas por um curto período, o que me dá uma vantagem estratégica. E, claro, minha regeneração. Qualquer ferimento, grave ou não, se cura. A velocidade depende da gravidade do dano... mas acredito que seja um bônus da imortalidade. Kael se inclinou para frente, os olhos carregados de curiosidade. — Eu já sabia que havia algo de estranho em você, Yoram... — murmurou, sorrindo de leve. — Mas isso... isso ultrapassa qualquer noção de normalidade. Yoram riu suavemente, mas se limitou a isso. O assunto ficou pendente, uma incógnita que Kael sabia que ainda precisaria desvendar. Foi então que Ágata se levantou da mesa, recolhendo os pratos. Ela havia permanecido em silêncio durante a conversa, mas agora, observava Yoram com uma expressão desconcertada. — Eu sei... — começou ela, forçando um sorriso. — Sou uma ótima maga, mas como cozinheira... bem, digamos que essa não é a minha especialidade. A comida... bom, não é a melhor que você já provou. Ela riu, um toque de autodepreciação na voz. Yoram arqueou uma sobrancelha, segurando o riso. — Não está tão ruim assim — disse, esforçando-se para parecer convincente. — Mas só por curiosidade... você estava tentando fazer feijão ou isso foi uma invenção sua? Ágata revirou os olhos, mais relaxada agora. — Ok, ok, admito. Sou uma péssima cozinheira. Boldar normalmente cuida disso... quando não está ocupado sendo um gatinho, claro. Kael e Yoram trocaram um olhar confuso. — Um gatinho? — Kael repetiu, cético. — Sim, Boldar é um demônio menor — Ágata explicou, dando de ombros. — Ele pode se transformar em um gato fofo. Foi assim que me enganou. Achei que fosse só um bichano de rua e o convidei para entrar... só para descobrir depois que ele era um demônio. Mas, pra ser sincera, ele nunca me mostrou sua forma verdadeira. Para mim, ele sempre teve um palmo de altura... até a noite em que acordei de madrugada e o encontrei martelando panelas na cozinha. Desde então, ele é o responsável por cozinhar. Yoram soltou uma risadinha. — Um demônio menor... — murmurou, pensativo. — Onde ele está agora? — Provavelmente roubando alguma coisa. Ele é bom nisso. — Ágata deu de ombros e lançou um último olhar para a cozinha, resignada com o desastre culinário. O clima ficou mais leve depois disso, mas Kael não conseguiu evitar seu incômodo com a situação do quarto. A casa estava em reforma, o que significava que ele e Yoram teriam que dividir um espaço. Kael, obviamente, não ficou nada satisfeito com a ideia. Após uma breve discussão (quase uma disputa de território), ficou decidido que Yoram ficaria com o quarto, enquanto Kael dormiria na varanda coberta. Ele não era do tipo que fazia drama por uma cama, mas não estava exatamente feliz com a solução. Yoram, por outro lado, parecia indiferente, pronto para descansar enquanto o trabalho de reforma continuava. Antes de se separar dos dois, Kael lançou um olhar para Ágata e viu a preocupação em seus olhos. Ela também tinha suas batalhas internas. E, de alguma forma, Kael sabia que ela estava tentando fazer o melhor por todos ali.O aroma forte e envolvente do café recém-passado preenchia o ambiente, despertando lentamente os sentidos de quem ainda repousava. O sol da manhã filtrava-se pelas janelas da cozinha, projetando sombras suaves sobre a madeira envelhecida da casa. As paredes de pedra e a mesa rústica de carvalho compunham o cenário onde Boldar estava, encostado no batente da porta, a xícara de barro entre os dedos longos. Seus olhos vermelhos eram uma lâmina na penumbra—um brilho inquietante, quase melancólico. O cabelo negro escorria sobre os ombros, com uma única mecha branca destoando no topo da cabeça. Ele parecia uma obra-prima inacabada—força crua e beleza trágica em uma só figura. "" Kael inclinou-se para trás na cadeira, despreocupado. O brilho cortante dos olhos âmbar denunciava que sua letargia era enganosa—ele estava sempre pronto para agir. As cicatrizes sob sua pele contavam histórias que ele jamais se daria ao trabalho de narrar." O cabelo castanho, desgrenhado, caía preguiçosamente so
A Taverna do Falcão Negro era um buraco decadente. O chão de madeira rangia sob os pés dos clientes embriagados, e o ar cheirava a cerveja fermentada, suor e carne assada. Homens riam alto, engrossando suas histórias de batalha, enquanto outros apostavam em jogos de dados e cartas. O grupo se sentou em um canto discreto, observando. Não demorou para que notassem Lake, o comandante dos Fúria da Noite e um dos chefes da guarda real. Ele estava no centro do salão—grande, robusto, com uma barriga ligeiramente protuberante, mas ombros largos e braços fortes. Sua armadura, embora gasta, ainda parecia imponente, e sua espada repousava sobre a mesa ao lado de uma caneca cheia. Falava alto, gabando-se de feitos passados, enquanto os homens ao redor riam e brindavam. Bêbado e descuidado, em um gesto brusco, ele atirou uma garrafa na direção da porta. Kael, que passava naquele momento, desviou com facilidade, mas a garrafa estourou contra a parede. — Ei, cuidado aí. Lake se viro
O cheiro de terra molhada ainda impregnava o ar quando Kael, Yoran e Ágata deixaram a taverna. A chuva havia transformado a estrada em um lamaçal infernal, mas quem ali tinha tempo para reclamar? Eles tinham um objetivo: chegar a Merlin e tirar Kaito da prisão antes do almoço. Poderiam enfrentar qualquer coisa, menos a fome de Ágata ao meio-dia. O caminho era longo, mas nada que os três já não estivessem acostumados. Kael seguia na frente, focado, calado como sempre. Yoran caminhava ao lado de Ágata, que ajeitava a capa, tentando ignorar o frio que insistia em se infiltrar em suas roupas. — Então… Kaito, hein? — Yoran quebrou o silêncio, lançando um olhar de canto para Ágata. Ela bufou. — O quê? Vamos ficar calados até Merlin? Ágata ergueu a sobrancelha. — Sim, me agradaria, de fato, ser agraciada pelo som inebriante do seu absoluto silêncio. Kael soltou um riso abafado, sem tirar os olhos do caminho. — Eu, hein? Que mau humor. — resmungou Yoran, ajeitando a cap
O aroma de carne assada e pão recém-saído do forno tomou conta do ar, e isso foi o bastante para Yoran mudar de foco. — Certo. Já que temos tempo até nosso “amigo” decidir voltar… Eu voto por comer alguma coisa. Ágata assentiu. — Eu também. Kael passou a mão pelo rosto, incrédulo. — Vocês não prestam. Mas, no fundo, ele também estava com fome. Foram para uma taverna discreta, afastada do centro da cidade. O tipo de lugar onde as pessoas falam baixo, trocam informações e evitam perguntas desnecessárias. Escolheram uma mesa no fundo, longe de olhos curiosos. Pediram carne, pão e cerveja. Ágata comeu calada, ainda ruminando a audácia de Kaito. Aquele homem era insuportável. Kael percebeu. — Não gostou dele? Ela bufou. — Ele flerta com qualquer coisa que respira. Yoran riu. — Verdade. Mas duvido que seja tão bom quanto acha que é. Kael pegou um pedaço de pão, pensativo. — Ele é um manipulador nato. Não duvide do que ele é capaz. — Ótimo
A noite já caía quando chegaram. O céu estava pintado de tons de púrpura e azul, e a brisa trazia o cheiro fresco da terra molhada. O silêncio da estrada contrastava com a bagunça que encontraram ao entrar. Kael foi o primeiro a falar: — Precisamos de quartos para todo mundo. Ágata olhou para Kaito, avaliando-o. — Você vai dividir com quem? Kaito sorriu de canto. — Se for com você, não me importo. Kael bufou. — Escolhe outro. — Ora, ora, que defensivo. — Kaito apoiou o queixo sobre a mão, olhando para os outros com curiosidade. — Então... opções? Yoran estalou a língua. — Posso dividir com outro, mas com você não. — Também não quero dividir com você — retrucou Kael. — Eu não me importo — disse Boldar, chegando com um prato de frutas nas mãos. Todos olharam para ele. — O quê? Ele me ajuda na cozinha, diferente de vocês, preguiçosos. Yoran sorriu. — E eu sou um ótimo colega de quarto. Kael cruzou os braços. — Fechado, então. Fique
A cozinha estava carregada de tensão. — Somos uma equipe. Vamos lutar juntos, e eu daria minha vida pela nossa causa. — Yoran manteve a voz firme. — E dependendo da situação, eu salvaria você de um possível ferimento grave... — Ele inclinou ligeiramente a cabeça. — Mas não volte a olhar para o que é meu. Kaito não desviou o olhar. O maldito ainda carregava aquele meio sorriso desenhado no rosto, como se tudo aquilo fosse um jogo cujo resultado ele já conhecia. — Você está bravo? — O tom era calmo, mas provocativo. — O cozinheiro é seu amante? A pergunta veio tão casualmente que quase passou despercebida. Mas Yoran não mordeu a isca. — Não foque em nos rotular, Kaito. Apenas certifique-se de não tocar ou sequer pensar no que é meu. Kaito segurou o olhar dele por um longo instante antes de finalmente dar um passo à frente, invadindo seu espaço. — Eu não faria isso. — Sua voz veio baixa, quase um sussurro. — Apesar de não ser um especialista em emoções, sei que ser
Outro impacto sacudiu a casa, desta vez mais forte. Mas aquela não era uma simples construção de madeira e pedra. Era um refúgio encantado, forjado para resistir a ataques de alto escalão. Se estavam sentindo os tremores, então quem quer que estivesse lá fora era poderoso o bastante para desafiar essa proteção. — Se for outra maldita tempestade, eu juro que vou… — Yoran começou, mas sua voz morreu assim que abriu a porta. Kael estava recostado na mureta da varanda, os olhos semicerrados e uma expressão azeda de quem fora arrancado de um sonho bom. Suspirou, exausto. — Eu estava sonhando… — murmurou, esfregando o rosto. — Mas, claro, alguém decidiu me arrancar do único lugar onde a vida ainda faz sentido. Kaito estava ao lado dele, um copo de vinho ainda na mão, como se não tivesse tido tempo para processar nada. Mais afastada, Ágata subia as escadas do porão, segurando um tomo pesado, claramente irritada pela interrupção. Todos estavam ali. E todos olhavam na mesma direção.
Fechando os olhos novamente, ele se concentrou. Seu poder demoníaco se espalhou pelo ambiente, captando resquícios de energia mágica ao redor. Precisavam de cura, e qualquer vestígio de magia restauradora poderia ser sua única esperança. — Há um traço… — Kael franziu a testa. — Não é forte, mas é recente. E está… na montanha. — Claro, porque as coisas nunca podem ser fáceis. — Yoran bufou, ajustando Boldar em seus braços. O guerreiro estava desacordado, mas sua respiração ainda era firme. — Se você morrer, eu mato você. — Boldar murmurou com um sorriso fraco. — E a Águi? Ela ainda está inconsciente. Se a movermos, podemos piorar a situação. — Então eu fico com ela. — Eu não esperava menos. Trocaram um olhar breve antes de se separarem. — Vamos. Kael e Yoran começaram a subir a montanha, os passos apressados pela urgência da situação. Mas, antes que pudessem alcançar o topo, um movimento na vegetação os fez parar. Folhas se agitaram, gravetos estalaram, e, de