Bazzard era uma cidade de pedra e ferro, com ruas fervilhantes de mercadores, guardas e viajantes. Kael e Ágata passaram pelos portões sem dificuldades, exibindo o selo do rei.
— Vamos direto à prisão — disse Ágata. O prédio era sombrio e úmido, impregnado pelo cheiro metálico de ferrugem e algo mais… algo que Kael reconheceu no instante em que cruzou a entrada. Ódio. Quando a cela de Yoran foi aberta, a reação dele foi imediata. Um soco certeiro atingiu Kael no queixo, jogando-o para trás. — Acha que eu sou idiota?! — rosnou Yoran. — Acha que eu não ia sentir esse cheiro podre em você?! Kael se ergueu, limpando o canto da boca, o olhar endurecido. — Filho da— Antes que terminasse, revidou o golpe, arremessando Yoran contra a parede. Ágata segurou seu braço antes que ele avançasse de novo. — Chega. Yoran cuspiu no chão e estreitou os olhos para ela. — O que vocês querem? — Falar com você — respondeu Ágata, soltando Kael. — Mas, se preferir continuar bancando o idiota, podemos deixá-lo aqui. Yoran bufou. — Eu não me importo de estar aqui, eu est— — Aqui por vontade própria, blá-blá-blá… — Ágata revirou os olhos. — Podemos acabar com isso antes do jantar? Yoran ficou em silêncio. Kael saiu da sala a pedido de Ágata, encostando-se à parede do lado de fora. — Isso vai demorar… Mas, para sua surpresa, minutos depois, Ágata surgiu com um pequeno sorriso. — E aí, Aghi? Ele vem com a gente? Ela balançou a cabeça. — Sim. Kael fechou a mão. Sem aviso, girou o corpo e socou Yoran no rosto. O impacto o jogou para trás, caindo pesadamente no chão de pedra. — Se quiser dizer algo ao meu pai, diga direto pra ele. Eu não sou um garoto de recados — rosnou Kael. Yoran se ergueu devagar, limpou o sangue do lábio e… sorriu. — Então esse é o nosso capitão? Kael bufou. Ágata massageou as têmporas, exausta. — Já começaram com isso… Não esqueçam, meninos, meu jantar. A volta para casa foi silenciosa. Nem mesmo o vento soprava. De vez em quando, Kael olhava para Ágata, que não parava de encarar a lua como se houvesse uma tempestade dentro dela. — Tudo bem, Aghi? — Sim… Só odeio ficar com fome. Fico irritada e pouco tolerante. Yoran riu, mas não comentou nada. Assim que chegaram em casa, Ágata foi para a cozinha. Mexia na panela com concentração, os movimentos leves como os de uma maga treinada. Mas havia algo estranho. O cheiro não era exatamente apetitoso. Kael, observando atentamente, percebeu o problema. Ágata não sabia cozinhar. Yoran, deitado numa cadeira próxima, sorria divertido. — Então essa é sua ideia de refeição? — provocou, o humor evidente na voz. — Não tem nada mais… comestível? Ágata o encarou e riu nervosa. — Não sou uma chef, Yoran. — Mexeu a colher na panela, frustrada. — Talvez eu devesse deixar a culinária para depois. Ele cruzou os braços, ainda sorrindo. — Olha, não sou exigente… — Fez uma pausa, analisando o conteúdo da panela. — Mas isso aqui… Nem meu estômago aceita. Ágata revirou os olhos, mas, para sua própria surpresa, riu junto com ele. — Certo, você venceu. — Ela ergueu as mãos em rendição. — Cozinha não é o meu forte. Kael se divertiu com a cena, mas logo voltou sua atenção para algo mais importante. — Yoran… — começou, casualmente. — Aquele artefato místico que você encontrou… O que exatamente é? O sorriso de Yoran desapareceu por um instante. Ele lançou um último olhar para Ágata, que já tinha aceitado a crítica culinária, e se recostou na cadeira. — Ah, esse artefato… — murmurou, um brilho nostálgico e preocupado nos olhos. — Bom, não foi exatamente "encontrado" de forma limpa. Kael manteve o olhar atento. — Na verdade, foi meio… desastroso — continuou Yoran, a voz mais baixa. — Eu tinha acabado de perder um amigo. Um dos poucos que eu tinha. Fiquei desnorteado. Passei dias vagando sem rumo e, sem perceber, entrei no Reino das Fadas. Ele fez uma pausa, mordendo o lábio. — As fadas… não são fãs de humanos. Me cercaram antes que eu percebesse. Eu sabia que precisava sair dali, então fui até um rio beber água. Foi lá que vi algo estranho… algo brilhando numa nascente. O silêncio pesou na sala. — Tentei me aproximar, mas o chão cedeu e caí. Só que, em vez de cair na água gelada, encontrei uma caverna. O estranho era que, apesar do som da cachoeira, o lugar era quente… seco. Kael não piscava, absorvendo cada palavra. — Tentei voltar, mas não achei a saída. Então percebi… que não havia saída. Eu tinha atravessado um portal. A respiração de Ágata ficou mais pesada. — Foi quando vi uma chama fraca, como uma vela solitária. E então, senti… Ele hesitou, os olhos escurecendo. — Senti que ela me rejeitava. Kael sentiu um arrepio subir pela espinha. — E então — Yoran sussurrou — uma voz quebrou o silêncio.Kael estava quase sem fôlego com a história. A tensão aumentava a cada palavra, mas Yoram continuou, impassível: — A voz me ofereceu algo... algo que eu nem sabia que queria. Falou de riquezas, conforto, e até me mostrou uma visão do que poderia ser meu futuro, caso aceitasse. Sei o que você está pensando: que tipo de idiota cai num poço, encontra uma vela falante e ainda escuta o que ela tem a dizer? — Ele riu, sem humor, balançando a cabeça. — Eu concordo. Mas eu estava desnorteado, sem saber o que fazer. E quando a vela me prometeu que eu poderia trazer Yure de volta, eu não hesitei. Aceitei na hora. O silêncio pairou por um instante antes de Yoram continuar, sua voz levemente rouca. — Assim que aceitei... a vela se apagou. E eu caí. Caí sem parar. O mundo ao meu redor desmoronava, e a cada vez que meu corpo colidia contra algo, eu amaldiçoava aquela maldita vela. Mais uma pancada, e eu teria morrido. Kael respirou fundo, processando as informações, tentando encaixar as peça
O aroma forte e envolvente do café recém-passado preenchia o ambiente, despertando lentamente os sentidos de quem ainda repousava. O sol da manhã filtrava-se pelas janelas da cozinha, projetando sombras suaves sobre a madeira envelhecida da casa. As paredes de pedra e a mesa rústica de carvalho compunham o cenário onde Boldar estava, encostado no batente da porta, a xícara de barro entre os dedos longos. Seus olhos vermelhos eram uma lâmina na penumbra—um brilho inquietante, quase melancólico. O cabelo negro escorria sobre os ombros, com uma única mecha branca destoando no topo da cabeça. Ele parecia uma obra-prima inacabada—força crua e beleza trágica em uma só figura. "" Kael inclinou-se para trás na cadeira, despreocupado. O brilho cortante dos olhos âmbar denunciava que sua letargia era enganosa—ele estava sempre pronto para agir. As cicatrizes sob sua pele contavam histórias que ele jamais se daria ao trabalho de narrar." O cabelo castanho, desgrenhado, caía preguiçosamente so
A Taverna do Falcão Negro era um buraco decadente. O chão de madeira rangia sob os pés dos clientes embriagados, e o ar cheirava a cerveja fermentada, suor e carne assada. Homens riam alto, engrossando suas histórias de batalha, enquanto outros apostavam em jogos de dados e cartas. O grupo se sentou em um canto discreto, observando. Não demorou para que notassem Lake, o comandante dos Fúria da Noite e um dos chefes da guarda real. Ele estava no centro do salão—grande, robusto, com uma barriga ligeiramente protuberante, mas ombros largos e braços fortes. Sua armadura, embora gasta, ainda parecia imponente, e sua espada repousava sobre a mesa ao lado de uma caneca cheia. Falava alto, gabando-se de feitos passados, enquanto os homens ao redor riam e brindavam. Bêbado e descuidado, em um gesto brusco, ele atirou uma garrafa na direção da porta. Kael, que passava naquele momento, desviou com facilidade, mas a garrafa estourou contra a parede. — Ei, cuidado aí. Lake se viro
O cheiro de terra molhada ainda impregnava o ar quando Kael, Yoran e Ágata deixaram a taverna. A chuva havia transformado a estrada em um lamaçal infernal, mas quem ali tinha tempo para reclamar? Eles tinham um objetivo: chegar a Merlin e tirar Kaito da prisão antes do almoço. Poderiam enfrentar qualquer coisa, menos a fome de Ágata ao meio-dia. O caminho era longo, mas nada que os três já não estivessem acostumados. Kael seguia na frente, focado, calado como sempre. Yoran caminhava ao lado de Ágata, que ajeitava a capa, tentando ignorar o frio que insistia em se infiltrar em suas roupas. — Então… Kaito, hein? — Yoran quebrou o silêncio, lançando um olhar de canto para Ágata. Ela bufou. — O quê? Vamos ficar calados até Merlin? Ágata ergueu a sobrancelha. — Sim, me agradaria, de fato, ser agraciada pelo som inebriante do seu absoluto silêncio. Kael soltou um riso abafado, sem tirar os olhos do caminho. — Eu, hein? Que mau humor. — resmungou Yoran, ajeitando a cap
O aroma de carne assada e pão recém-saído do forno tomou conta do ar, e isso foi o bastante para Yoran mudar de foco. — Certo. Já que temos tempo até nosso “amigo” decidir voltar… Eu voto por comer alguma coisa. Ágata assentiu. — Eu também. Kael passou a mão pelo rosto, incrédulo. — Vocês não prestam. Mas, no fundo, ele também estava com fome. Foram para uma taverna discreta, afastada do centro da cidade. O tipo de lugar onde as pessoas falam baixo, trocam informações e evitam perguntas desnecessárias. Escolheram uma mesa no fundo, longe de olhos curiosos. Pediram carne, pão e cerveja. Ágata comeu calada, ainda ruminando a audácia de Kaito. Aquele homem era insuportável. Kael percebeu. — Não gostou dele? Ela bufou. — Ele flerta com qualquer coisa que respira. Yoran riu. — Verdade. Mas duvido que seja tão bom quanto acha que é. Kael pegou um pedaço de pão, pensativo. — Ele é um manipulador nato. Não duvide do que ele é capaz. — Ótimo
A noite já caía quando chegaram. O céu estava pintado de tons de púrpura e azul, e a brisa trazia o cheiro fresco da terra molhada. O silêncio da estrada contrastava com a bagunça que encontraram ao entrar. Kael foi o primeiro a falar: — Precisamos de quartos para todo mundo. Ágata olhou para Kaito, avaliando-o. — Você vai dividir com quem? Kaito sorriu de canto. — Se for com você, não me importo. Kael bufou. — Escolhe outro. — Ora, ora, que defensivo. — Kaito apoiou o queixo sobre a mão, olhando para os outros com curiosidade. — Então... opções? Yoran estalou a língua. — Posso dividir com outro, mas com você não. — Também não quero dividir com você — retrucou Kael. — Eu não me importo — disse Boldar, chegando com um prato de frutas nas mãos. Todos olharam para ele. — O quê? Ele me ajuda na cozinha, diferente de vocês, preguiçosos. Yoran sorriu. — E eu sou um ótimo colega de quarto. Kael cruzou os braços. — Fechado, então. Fique
A cozinha estava carregada de tensão. — Somos uma equipe. Vamos lutar juntos, e eu daria minha vida pela nossa causa. — Yoran manteve a voz firme. — E dependendo da situação, eu salvaria você de um possível ferimento grave... — Ele inclinou ligeiramente a cabeça. — Mas não volte a olhar para o que é meu. Kaito não desviou o olhar. O maldito ainda carregava aquele meio sorriso desenhado no rosto, como se tudo aquilo fosse um jogo cujo resultado ele já conhecia. — Você está bravo? — O tom era calmo, mas provocativo. — O cozinheiro é seu amante? A pergunta veio tão casualmente que quase passou despercebida. Mas Yoran não mordeu a isca. — Não foque em nos rotular, Kaito. Apenas certifique-se de não tocar ou sequer pensar no que é meu. Kaito segurou o olhar dele por um longo instante antes de finalmente dar um passo à frente, invadindo seu espaço. — Eu não faria isso. — Sua voz veio baixa, quase um sussurro. — Apesar de não ser um especialista em emoções, sei que ser
Outro impacto sacudiu a casa, desta vez mais forte. Mas aquela não era uma simples construção de madeira e pedra. Era um refúgio encantado, forjado para resistir a ataques de alto escalão. Se estavam sentindo os tremores, então quem quer que estivesse lá fora era poderoso o bastante para desafiar essa proteção. — Se for outra maldita tempestade, eu juro que vou… — Yoran começou, mas sua voz morreu assim que abriu a porta. Kael estava recostado na mureta da varanda, os olhos semicerrados e uma expressão azeda de quem fora arrancado de um sonho bom. Suspirou, exausto. — Eu estava sonhando… — murmurou, esfregando o rosto. — Mas, claro, alguém decidiu me arrancar do único lugar onde a vida ainda faz sentido. Kaito estava ao lado dele, um copo de vinho ainda na mão, como se não tivesse tido tempo para processar nada. Mais afastada, Ágata subia as escadas do porão, segurando um tomo pesado, claramente irritada pela interrupção. Todos estavam ali. E todos olhavam na mesma direção.