O cheiro de terra molhada ainda impregnava o ar quando Kael, Yoran e Ágata saíram da taverna. A chuva havia transformado a estrada em um lamaçal infernal, mas quem ali tinha tempo para reclamar? Eles tinham um objetivo: chegar a Merlin e tirar Kaito da prisão antes do almoço. Poderiam enfrentar qualquer coisa, menos a fome de Ágata ao meio-dia.
O caminho era longo, mas nada que os três já não estivessem acostumados. Kael seguia na frente, focado, calado como sempre. Yoran caminhava ao lado de Ágata, que ajeitava a capa, tentando ignorar o frio que insistia em se infiltrar em suas roupas. — Então… Kaito, hein? — Yoran quebrou o silêncio, lançando um olhar de canto para Ágata. Ela bufou. — O quê? Vamos ficar calados até Merlin? Ágata ergueu a sobrancelha. — Sim, me agradaria, de fato, ser agraciada pelo som inebriante do seu absoluto silêncio. Kael soltou um riso abafado, sem tirar os olhos do caminho. — Eu, hein? Que mau humor. — Disse Yoran entre dentes, ajeitando a capa. Depois de algumas horas de caminhada, a cidade de Merlin surgiu diante deles. Ruas estreitas de pedra, casas gastas pelo tempo — um lugar onde ninguém confiava em ninguém. Os olhares desconfiados dos moradores eram um sinal claro de que aquele lugar escondia mais segredos do que deveria. Mas eles não estavam ali para socializar. Seguiram direto para a Prisão do Coração de Ferro, um pedaço do inferno fincado no meio da cidade. Muitos entravam ali, poucos saíam. E os que saíam… saíam quebrados. O selo do rei lhes garantiu passagem segura e rápida. Os guardas os levaram até a cela onde Kaito estava. — É isso? — Disse Yoran, surpreso. — Isso parece um mendigo. — Completou com desdém. Kaito estava sentado no chão, encostado na parede de pedra, os braços cruzados sobre o peito nu. Seus cabelos pretos desgrenhados caíam sobre os olhos amendoados, e a barba malfeita dava ao seu rosto um ar mais bruto. Mesmo preso há tanto tempo, sua presença ainda era marcante. Forte, corpulento, mas o que mais chamava atenção eram aqueles olhos astutos, sempre avaliando tudo ao redor. Ao perceber a presença deles, Kaito ergueu o olhar e sorriu. Seus olhos deslizaram até Ágata, brilhando com interesse. — Posso ajudar, senhorita? Ágata cruzou os braços, sem dar muita abertura. — A gente veio com ela, cara. — Disse Yoran. — Foi mal, cara. Não tenho nada contra, mas não gosto de homens… só de mulheres. Kael foi direto ao ponto. — Viemos te tirar daqui. Kaito inclinou a cabeça, curioso. — E por que eu iria com vocês? Ágata respondeu antes que Kael pudesse abrir a boca: — Porque precisamos de um estrategista. Alguém que saiba como um inimigo pensa antes mesmo dele agir. — Ah… então querem usar meu talento, é isso? — Ele sorriu de canto, divertido. Kael sustentou o olhar. — Se preferir pensar assim. Kaito se levantou, alongando os músculos. Mesmo preso, continuava imponente, cada movimento calculado. Então, aproximou-se das grades e, sem disfarçar, fixou os olhos em Ágata. — E você? Também precisa de mim? Ela segurou o olhar, firme. — Preciso de um aliado. O sorriso de Kaito cresceu. — Você sabe escolher as palavras… gostei disso. Os guardas destrancaram a cela. Kaito saiu, sacudindo os ombros como se tirasse o peso dos anos de confinamento. Passou os dedos pelos cabelos negros, ajeitando-os sem pressa. — Certo. Vamos sair daqui. Vou tomar um banho, cortar o cabelo e fazer a barba. Preciso de um trato para ficar perto de você, minha deusa. — Ele beijou a mão de Ágata quase com devoção. — Vejo vocês daqui a algumas horas. — Disse, desaparecendo como fumaça. Os três permaneceram perplexos, parados, sem reação. — Ele fugiu? Vamos atrás dele? — Sim… depois do almoço. — Está pensando em comida agora?! — Agora? Enfim… Vamos. Garanto que ele vai voltar. Só não sei quando. Kael não parecia nem um pouco surpreso. Apenas suspirou, ajeitando a capa sobre os ombros. — Se ele disse que volta, ele volta. Yoran, por outro lado, não conseguia acreditar no que acabara de acontecer. — Mas ele simplesmente sumiu! Sumiu! Como é que vocês estão tão tranquilos? Ágata, que já caminhava em direção à saída da prisão, lançou um olhar entediado por cima do ombro. — Por que a surpresa? Queria ficar com ele mais um pouquinho? — Ele é bonitinho, mas não faz o meu tipo. Não posso falar por você, seu coração estava tão acelerado que achei que ele fosse sair daí de dentro e pular em cima do Kaito. Ágata revirou os olhos e bufou. — Ele é um cretino que manipula emoções, então não vale. — Ah, com certeza — Kael murmurou, ajustando a espada na cintura. — Mas um cretino útil. Saíram da prisão sem pressa. Kaito que se virasse para encontrá-los depois. Se fosse esperto — e ele era — sabia onde estavam hospedados. O cheiro de carne assada e pão recém-saído do forno logo tomou conta do ar, e foi o bastante para Yoran mudar de foco. — Certo, já que temos tempo até nosso “amigo” decidir voltar… Eu voto por comer alguma coisa. Ágata assentiu. — Eu também. Kael passou a mão pelo rosto, incrédulo. — Vocês não prestam. Mas no fundo, ele também estava com fome. Foram para uma taverna discreta, na parte mais afastada da cidade. Aquele tipo de lugar onde as pessoas falam baixo, trocam informações e não fazem perguntas desnecessárias. Escolheram uma mesa no fundo, longe dos olhos curiosos. Pediram carne, pão e cerveja. Ágata comeu calada, ainda ruminando a audácia de Kaito. Aquele homem era insuportável! Kael percebeu. — Não gostou dele? Ela bufou. — Ele flerta com qualquer coisa que respira. Yoran riu. — Verdade. Mas duvido que ele seja tão bom quanto acha que é. Kael pegou um pedaço de pão, pensativo. — Ele é um manipulador nato. Não duvide do que ele é capaz. — Ótimo — Ágata cruzou os braços. — Acabamos de recrutar um homem que pode nos manipular sem que percebamos. — Você percebeu, não percebeu? — Kael ergueu uma sobrancelha. Ágata abriu a boca para responder… mas nada saiu. Kael sorriu de canto. — Então, você já está um passo à frente. Ela odiava quando ele estava certo. Horas se passaram. O sol já começava a baixar no horizonte quando uma figura apareceu na porta da taverna. — Kaito? — disse Yoran, surpreso. — Seu barbeiro é um mago? Não sabia que barbeiro fazia mágica. Todos riram da piada. Os olhos de Ágata, que ainda não tinham se voltado para Kaito, agora estavam paralisados com o que viam. Os cabelos negros estavam mais curtos, alinhados. A barba por fazer havia sumido, revelando a pele lisa e impecável. As roupas gastas da prisão tinham sido trocadas por um traje escuro bem ajustado ao corpo. Mas o olhar… aquele continuava o mesmo. Ele caminhou até a mesa deles, um sorriso insolente brincando nos lábios quando seus olhos encontraram os de Ágata. — Sentiu minha falta, deusa? Ágata se recusou a reagir. Kael fez um gesto com a cabeça. — Sente-se. Kaito puxou uma cadeira e se acomodou, relaxado. O cheiro dele agora era limpo, com um leve toque amadeirado. — Então… para onde vamos agora? — A gente eu não sei, mas se o coração da Águi continuar acelerado assim, ele vai parar em outro continente. Ele riu, brincalhão, mas antes que pudesse continuar se divertindo, as pontas dos dedos de Ágata brilharam em azul, movendo a cadeira e fazendo Kaito cair desajeitado no chão. — Idiota. Devo repreender o Boldar por andar seminu pela casa, Yoran? — A visão de um gatinho na casa é muito boa, todos nós perderíamos. — Ele respondeu, se levantando e acariciando a cabeça, onde provavelmente tinha se ferido. — Vamos embora, está vindo uma tempestade, e eu quero estar em casa antes de ela chegar. — Posso levar você nos braços, minha deusa? — disse Kaito prontamente. — Eu posso levitar, mas agradeço. Ele suspirou, frustrado. — Quem chegou por último paga. Não houve protestos. — Você pagou a comida, então acho justo que decidamos pra onde vamos agora — disse Ágata, pousando a taça na mesa. Kaito ergueu as mãos em rendição. — Justo. Vamos pra casa, então. Yoran suspirou. — E lá vamos nós.A noite já caía quando chegaram. O céu estava pintado de tons de púrpura e azul, e a brisa trazia o cheiro fresco da terra molhada. O silêncio da estrada contrastava com a bagunça que encontraram ao entrar.Kael foi o primeiro a falar:— Precisamos de quartos para todo mundo.Ágata olhou para Kaito, avaliando-o.— Você vai dividir com quem?Kaito sorriu de canto.— Se for com você, não me importo.Kael bufou.— Escolhe outro.— Ora, ora, que defensivo. — Kaito apoiou o queixo sobre a mão, olhando para os outros com curiosidade. — Então... opções?Yoran estalou a língua.— Posso dividir com outro, mas com você não.— Também não quero dividir com você — retrucou Kael.— Eu não me importo — disse Boldar, chegando com um prato de frutas nas mãos.Todos olharam para ele.— O quê? Ele me ajuda na cozinha, diferente de vocês, preguiçosos.Yoran sorriu.— E eu sou um ótimo colega de quarto.Kael cruzou os braços.— Fechado, então. Fique com meu quarto, é o segundo à esquerd
Outro impacto sacudiu a casa, dessa vez mais forte. Mas a casa não se partiria. Não era apenas uma construção de madeira e pedra, mas um refúgio mágico, resistente a qualquer ataque. Então, se estavam sentindo o impacto… quem quer que estivesse do lado de fora era forte. Forte o bastante para querer derrubar uma casa feita para suportar magias de alto escalão.— Se for uma maldita tempestade de novo, eu juro que vou… — Yoran começou, mas parou assim que abriu a porta e viu o caos do lado de fora.Kael estava encostado na mureta da varanda, olhos semicerrados, a expressão azeda de quem foi despertado à força. Ele suspirou, exausto.— Eu estava sonhando… — murmurou, esfregando o rosto. — Mas claro, alguém decide me arrancar do único lugar onde a vida ainda faz sentido.Kaito estava parado ao lado dele, com um copo de vinho ainda na mão, como se tivesse acabado de se levantar da cama sem tempo para processar nada. Mais afastada, Ágata subia as escadas do porão, segurando um livro pes
O frio da madrugada cortava como lâminas, e Kael sentia cada rajada de vento atravessar suas roupas. Ele andava rápido, mas atento, guiando o médico pelo caminho irregular da floresta. O céu escuro parecia pesar sobre eles, e a neblina rasteira fazia o chão desaparecer aos poucos.— Faz tempo que não vejo alguém tão jovem carregar tanto peso nos ombros. — O médico quebrou o silêncio.Kael apenas lançou um olhar de esguelha. Talvez, em outro momento, ele tivesse respondido, mas agora não tinha paciência para conversa. Não estava ali para filosofar sobre fardos.— É por aqui. Cuidado onde pisa.— Não se preocupe, eu moro aqui. Sei onde pisar. — O médico passou à frente de Kael, que o olhou de cima a baixo.— Exibido.Eles não demoraram a chegar, mas, quando o fizeram, encontraram Ágata deitada na cama de Kaito. Estava gelada, pálida demais, com a testa coberta de suor. Seu peito subia e descia devagar, como se seu corpo lutasse para continuar funcionando.O médico ajoelhou-se ao
A manhã seguiu seu curso, trazendo consigo um ar de alívio e renovação. Kaito, ainda pálido e visivelmente cansado, havia acordado. Seus olhos claros e brilhantes encontraram os de Ágata, e um sorriso fraco, mas reconfortante, surgiu em seu rosto. Ele não precisava dizer nada; a gratidão e o afeto estavam estampados em seu olhar. Ágata, por sua vez, sentiu um peso sair de seus ombros. Ele estava bem. Isso era o que importava. Mas a inquietação ainda habitava seu peito. Boldar e Yoran não saíam de seus pensamentos. Ela sabia que precisava descansar, que seu corpo ainda estava se recuperando, mas a preocupação falou mais alto. Enquanto Kaito descansava, Ágata decidiu sair escondida. Não queria que Kael percebesse, sabendo que ele tentaria impedi-la. Ela não tinha energia para discutir. Caminhou silenciosamente pelos corredores, até que, de longe, ouviu os gritos de Yoran. O som a deixou apreensiva, acelerando seus passos. Ao chegar mais perto, viu Yoran amarrado a uma cadeira, se deba
sol já se escondia no horizonte, pintando o céu com tons de laranja e roxo. O grupo seguia determinado a encontrar Leon, o Pecado do Orgulho, já que não. sabiam nada sobre Ordan ainda, ele era o próximo.— Tá, mas se o Ordinário não vai, e a espadachim muito menos... então não estão faltando só três? — questionou Kael, semicerrando os olhos.— Bem… é… — começou Yoran.— ACORDA, PORRA! — berrou ele de repente, jogando o que sobrou do pão na cara de Kael.Kael desviou a tempo, mas o pão voou direto na parede e deslizou dramaticamente para o chão.— Joga comida fora não, demônio — repreendeu Kaito, balançando a cabeça.— Ei, isso foi um insulto? — protestou Kael, cruzando os braços.— Não leva pro coração, capitão — Yoran piscou.Ambos riram, mas Kaito olhava para o pão no chão como se fosse cometer um crime. No canto da cozinha, Ágata e Alinna observavam o diálogo sem se meter.— Então… — começou Ágata, cruzando os braços.— Não, mel, não me lembro. Não quero ter essa conversa agora. —
Horas depois, ambos saíram do quarto para beber água. Caminhavam pelo corredor, os corpos ainda sensíveis, quando viram Alinna sentada no meio da cozinha.Ela estava imóvel, os olhos abertos, mas marejados, com lágrimas escorrendo silenciosas pelo rosto.— Alinna? — Yoran chamou, franzindo a testa.Ela não respondeu.— O que diabos…? — Yoran se aproximou, mas hesitou ao ver que ela nem sequer piscava.Eles trocaram um olhar, e, sem perder tempo, Boldar foi chamar Ágata.Quando ela chegou, olhou para Alinna e suspirou.— Ela está dormindo — disse simplesmente.— Isso parece qualquer coisa, menos sono — resmungou Yoran.— Confia em mim.Ágata se ajoelhou ao lado da fada e murmurou:— Adductus somno.Poucos segundos depois, Alinna desabou no chão, agora dormindo de verdade.Yoran passou a mão pelo rosto, exausto.— Se isso é o que nos espera no futuro, eu prefiro me aposentar.— Vai sonhando — retrucou Boldar.Na manhã seguinte, Alinna ainda dormia. Seu rosto estava pálido, e seu corpo s
Kael foi o primeiro a voltar para casa. Ordam carregava Alinna nos braços com tanto cuidado que, às vezes, parecia que ela ia se quebrar. O silêncio acabou quando ele a colocou na cama da varanda. — E aí? Vai contar por que mentiu? — disse Kaito, escorado no batente da porta. — Eu não menti. Meu nome é Ordam de Mortraz. — Eles se entreolharam sérios. — Então, a fada é sua amiga? — Ordam olhou para Alinna, deitada na cama, com um semblante alegre. — Pra mim, ela é muito mais que isso. A porta bateu, e Ágata entrou junto com Boldar e Yoran, trazendo suprimentos. — Vai ter que explicar mesmo por que fez a minha Nina chorar. — O rosto de Ágata estava carregado de crítica e dúvida. — Pensei que fossem demorar — disse Kael, olhando para os três. — Ah, a gente ia, mas o Yoran usou a super velocidade pra terminar logo e ouvir a fofoca. — Todos riram da naturalidade com que Boldar falava. — Uau, sua cara, né, Yoran? — disse Kael, com os olhos semi-serrados. — É...
— Nakim? Esse é seu nome? — Sim, mas já me acostumei a ser chamado de Boldar. Prefiro que continue assim — respondeu Boldar, sentando-se confortavelmente no criado-mudo enquanto Yoran beijava seu pescoço sensualmente. — Aram, aram — Kael interrompeu. — Não quero atrapalhar, mas Ágata pediu para chamá-los. — Capitão, o quarto tem porta — respondeu Yoran, assustado. — Sim, eu vi. Da próxima vez, certifique-se de usá-la. — Boldar riu baixinho. Ele sabia que Yoran odiava ser visto assim. — Está com vergonha de mim? — perguntou Boldar, com a sobrancelha erguida. — Se você mandasse, eu usaria uma coleira com meu nome, meu amor — disse Yoran, dando um beijinho no nariz de Boldar e saindo logo em seguida. — "Amor"? — repetiu Boldar, surpreso descendo as escadas. — Bem, já que estamos todos aqui, tenho que falar sobre o próximo Pecado. De acordo com a princesa Temeria, ele já é um soldado do reino, mas está com problemas agora. — Que tipo de problemas? — perguntou Kai