Nos três dias seguintes, Kael e Ágata permaneceram na vila. Kael reforçou as cercas, cavou um novo poço e inspecionou os estábulos. Ágata, por sua vez, canalizou sua magia para restaurar parte das plantações ressecadas. Apesar dos esforços, os ataques às carroças dos viajantes continuavam sem sentido, e Kael precisava descobrir a verdade.
À noite, na taverna da aldeia, ele espalhou um boato: um novo carregamento de cerveja estava a caminho, escoltado por um mercador rico, dono da fabricação. Como esperado, o "lobo" atacou novamente. Mas não havia mercador, apenas uma armadilha cuidadosamente montada para revelar a verdade. Durante o confronto, Kael percebeu que não era um lobo atacando as carroças — eram homens. Os bandidos usaram a lã das ovelhas desaparecidas para criar disfarces e encobrir seus rastros. Após um combate breve, Kael os capturou e os levou ao ancião da vila. Exausto, retornou à casa onde estavam hospedados. Quando o terceiro dia amanheceu, a vila respirava com mais alívio. Kael não voltou mais à aldeia. Já tinham as ervas e os suprimentos necessários. Mas, ao passar pelo portão da cidade, pronto para seguir viagem a Bazzard, uma voz o chamou: — Ei... senhor... obrigado. Kael se virou e ficou surpreso ao ver o lobo ao lado do menino, Milo, aquele que chorara de medo ao ver o amigo acusado injustamente. Ele sorriu de canto. — Adeus, Milo. Queria parar e se despedir de verdade, mas detestava demonstrações de afeto. Além disso, a prisão de Bazzard ainda estava longe. Horas depois, a quietude da estrada tornou-se inevitável. O silêncio era incômodo. Os galhos das árvores balançavam sob o vento, projetando sombras alongadas sobre o caminho de terra. Era o tipo de silêncio que precedia um problema. Kael pousou a mão sobre o cabo da espada. — Você sente isso? — murmurou. — Você sente coisas demais — Ágata retrucou, revirando os olhos. — Mas sim, eu sinto. Antes que Kael pudesse responder, um estalo veio da floresta. — Emboscada — ele murmurou. O ataque foi rápido. Seis figuras encapuzadas emergiram das sombras, lâminas reluzindo sob a luz do entardecer. — Sejam bonzinhos, deixem as bolsas e ninguém sai ferido — disse um dos ladrões. Kael sorriu de lado. — Tenho uma proposta melhor: vocês correm, e eu não quebro os dentes de vocês. O líder riu, confiante. — Engraçadinho. Pena que sua sorte acaba aqu— Kael o acertou antes que pudesse terminar a frase. O homem desabou como um saco de batatas, e o caos se instaurou. Kael se movia como um trovão, desviando de golpes e revidando com precisão brutal. Ele não matou ninguém, mas cada um dos ladrões terminou desacordado ou com membros torcidos em ângulos pouco naturais. Enquanto isso, Ágata murmurava um encantamento, a voz tão suave quanto uma brisa noturna. — Durma... e leve consigo o peso da consciência. Um sopro azulado dançou no ar. Os últimos dois ladrões tentaram fugir, mas caíram como bonecos de pano antes de dar três passos. Kael cutucou um dos corpos no chão, certificando-se de que ainda respirava. — Me lembra de nunca mais reclamar de tédio. Ágata sorriu. — Isso é só o começo.Bazzard era uma cidade de pedra e ferro, com ruas fervilhantes de mercadores, guardas e viajantes. Kael e Ágata passaram pelos portões sem dificuldades, exibindo o selo do rei. — Vamos direto à prisão — disse Ágata. O prédio era sombrio e úmido, impregnado pelo cheiro metálico de ferrugem e algo mais… algo que Kael reconheceu no instante em que cruzou a entrada. Ódio. Quando a cela de Yoran foi aberta, a reação dele foi imediata. Um soco certeiro atingiu Kael no queixo, jogando-o para trás. — Acha que eu sou idiota?! — rosnou Yoran. — Acha que eu não ia sentir esse cheiro podre em você?! Kael se ergueu, limpando o canto da boca, o olhar endurecido. — Filho da— Antes que terminasse, revidou o golpe, arremessando Yoran contra a parede. Ágata segurou seu braço antes que ele avançasse de novo. — Chega. Yoran cuspiu no chão e estreitou os olhos para ela. — O que vocês querem? — Falar com você — respondeu Ágata, soltando Kael. — Mas, se preferir continuar bancando o
Kael estava quase sem fôlego com a história. A tensão aumentava a cada palavra, mas Yoram continuou, impassível: — A voz me ofereceu algo... algo que eu nem sabia que queria. Falou de riquezas, conforto, e até me mostrou uma visão do que poderia ser meu futuro, caso aceitasse. Sei o que você está pensando: que tipo de idiota cai num poço, encontra uma vela falante e ainda escuta o que ela tem a dizer? — Ele riu, sem humor, balançando a cabeça. — Eu concordo. Mas eu estava desnorteado, sem saber o que fazer. E quando a vela me prometeu que eu poderia trazer Yure de volta, eu não hesitei. Aceitei na hora. O silêncio pairou por um instante antes de Yoram continuar, sua voz levemente rouca. — Assim que aceitei... a vela se apagou. E eu caí. Caí sem parar. O mundo ao meu redor desmoronava, e a cada vez que meu corpo colidia contra algo, eu amaldiçoava aquela maldita vela. Mais uma pancada, e eu teria morrido. Kael respirou fundo, processando as informações, tentando encaixar as peça
O aroma forte e envolvente do café recém-passado preenchia o ambiente, despertando lentamente os sentidos de quem ainda repousava. O sol da manhã filtrava-se pelas janelas da cozinha, projetando sombras suaves sobre a madeira envelhecida da casa. As paredes de pedra e a mesa rústica de carvalho compunham o cenário onde Boldar estava, encostado no batente da porta, a xícara de barro entre os dedos longos. Seus olhos vermelhos eram uma lâmina na penumbra—um brilho inquietante, quase melancólico. O cabelo negro escorria sobre os ombros, com uma única mecha branca destoando no topo da cabeça. Ele parecia uma obra-prima inacabada—força crua e beleza trágica em uma só figura. "" Kael inclinou-se para trás na cadeira, despreocupado. O brilho cortante dos olhos âmbar denunciava que sua letargia era enganosa—ele estava sempre pronto para agir. As cicatrizes sob sua pele contavam histórias que ele jamais se daria ao trabalho de narrar." O cabelo castanho, desgrenhado, caía preguiçosamente so
A Taverna do Falcão Negro era um buraco decadente. O chão de madeira rangia sob os pés dos clientes embriagados, e o ar cheirava a cerveja fermentada, suor e carne assada. Homens riam alto, engrossando suas histórias de batalha, enquanto outros apostavam em jogos de dados e cartas. O grupo se sentou em um canto discreto, observando. Não demorou para que notassem Lake, o comandante dos Fúria da Noite e um dos chefes da guarda real. Ele estava no centro do salão—grande, robusto, com uma barriga ligeiramente protuberante, mas ombros largos e braços fortes. Sua armadura, embora gasta, ainda parecia imponente, e sua espada repousava sobre a mesa ao lado de uma caneca cheia. Falava alto, gabando-se de feitos passados, enquanto os homens ao redor riam e brindavam. Bêbado e descuidado, em um gesto brusco, ele atirou uma garrafa na direção da porta. Kael, que passava naquele momento, desviou com facilidade, mas a garrafa estourou contra a parede. — Ei, cuidado aí. Lake se viro
O cheiro de terra molhada ainda impregnava o ar quando Kael, Yoran e Ágata deixaram a taverna. A chuva havia transformado a estrada em um lamaçal infernal, mas quem ali tinha tempo para reclamar? Eles tinham um objetivo: chegar a Merlin e tirar Kaito da prisão antes do almoço. Poderiam enfrentar qualquer coisa, menos a fome de Ágata ao meio-dia. O caminho era longo, mas nada que os três já não estivessem acostumados. Kael seguia na frente, focado, calado como sempre. Yoran caminhava ao lado de Ágata, que ajeitava a capa, tentando ignorar o frio que insistia em se infiltrar em suas roupas. — Então… Kaito, hein? — Yoran quebrou o silêncio, lançando um olhar de canto para Ágata. Ela bufou. — O quê? Vamos ficar calados até Merlin? Ágata ergueu a sobrancelha. — Sim, me agradaria, de fato, ser agraciada pelo som inebriante do seu absoluto silêncio. Kael soltou um riso abafado, sem tirar os olhos do caminho. — Eu, hein? Que mau humor. — resmungou Yoran, ajeitando a cap
O aroma de carne assada e pão recém-saído do forno tomou conta do ar, e isso foi o bastante para Yoran mudar de foco. — Certo. Já que temos tempo até nosso “amigo” decidir voltar… Eu voto por comer alguma coisa. Ágata assentiu. — Eu também. Kael passou a mão pelo rosto, incrédulo. — Vocês não prestam. Mas, no fundo, ele também estava com fome. Foram para uma taverna discreta, afastada do centro da cidade. O tipo de lugar onde as pessoas falam baixo, trocam informações e evitam perguntas desnecessárias. Escolheram uma mesa no fundo, longe de olhos curiosos. Pediram carne, pão e cerveja. Ágata comeu calada, ainda ruminando a audácia de Kaito. Aquele homem era insuportável. Kael percebeu. — Não gostou dele? Ela bufou. — Ele flerta com qualquer coisa que respira. Yoran riu. — Verdade. Mas duvido que seja tão bom quanto acha que é. Kael pegou um pedaço de pão, pensativo. — Ele é um manipulador nato. Não duvide do que ele é capaz. — Ótimo
A noite já caía quando chegaram. O céu estava pintado de tons de púrpura e azul, e a brisa trazia o cheiro fresco da terra molhada. O silêncio da estrada contrastava com a bagunça que encontraram ao entrar. Kael foi o primeiro a falar: — Precisamos de quartos para todo mundo. Ágata olhou para Kaito, avaliando-o. — Você vai dividir com quem? Kaito sorriu de canto. — Se for com você, não me importo. Kael bufou. — Escolhe outro. — Ora, ora, que defensivo. — Kaito apoiou o queixo sobre a mão, olhando para os outros com curiosidade. — Então... opções? Yoran estalou a língua. — Posso dividir com outro, mas com você não. — Também não quero dividir com você — retrucou Kael. — Eu não me importo — disse Boldar, chegando com um prato de frutas nas mãos. Todos olharam para ele. — O quê? Ele me ajuda na cozinha, diferente de vocês, preguiçosos. Yoran sorriu. — E eu sou um ótimo colega de quarto. Kael cruzou os braços. — Fechado, então. Fique
A cozinha estava carregada de tensão. — Somos uma equipe. Vamos lutar juntos, e eu daria minha vida pela nossa causa. — Yoran manteve a voz firme. — E dependendo da situação, eu salvaria você de um possível ferimento grave... — Ele inclinou ligeiramente a cabeça. — Mas não volte a olhar para o que é meu. Kaito não desviou o olhar. O maldito ainda carregava aquele meio sorriso desenhado no rosto, como se tudo aquilo fosse um jogo cujo resultado ele já conhecia. — Você está bravo? — O tom era calmo, mas provocativo. — O cozinheiro é seu amante? A pergunta veio tão casualmente que quase passou despercebida. Mas Yoran não mordeu a isca. — Não foque em nos rotular, Kaito. Apenas certifique-se de não tocar ou sequer pensar no que é meu. Kaito segurou o olhar dele por um longo instante antes de finalmente dar um passo à frente, invadindo seu espaço. — Eu não faria isso. — Sua voz veio baixa, quase um sussurro. — Apesar de não ser um especialista em emoções, sei que ser