Horas depois, o cheiro de carne assada e especiarias o despertou. O quarto estava escuro, exceto pela lareira ainda acesa. Kael se levantou devagar, sentindo as dores no corpo protestarem. Vestiu uma camisa negra dobrada ao lado da cama e seguiu pelo corredor estreito de pedra, guiado pelo aroma da comida.
A sala de jantar era menor do que esperava. Uma mesa de madeira robusta ocupava o centro, iluminada por velas suspensas por correntes no teto. Ágata estava sentada, servindo-se de um prato generoso. — Você demorou, Capitão. Pensei que ia desmaiar de novo — ela sorriu, tomando um gole de vinho. Kael puxou a cadeira e sentou-se sem responder de imediato. Pegou um pedaço de pão e levou à boca, mastigando lentamente. — Agora me diga. O que realmente quer de mim? Ágata ergueu uma sobrancelha. — Direto ao ponto. Gosto disso — ela girou a taça de vinho entre os dedos. — Eu quero que você viva, Kael. Ele riu, seco. — Você roubou metade da minha alma — Kael rosnou, esmagando o copo de vinho entre os dedos. — Roubei para evitar que você destruísse o que resta dela — Ágata apontou para a janela, onde a lua sangrenta riscava o céu. — Ela odiaria ver isso. Kael permaneceu em silêncio. — Mas não é só isso, claro — ela se inclinou para perto, um brilho enigmático nos olhos. — Há algo muito maior acontecendo, e você faz parte disso. A questão é... quer descobrir ou prefere passar o resto da eternidade se lamentando? Kael apertou os dentes, sentindo a raiva subir novamente. Mas, dessa vez, não havia poder para transbordar. Ele estava quebrado. E odiava admitir que precisava de respostas. — Fale. Ágata sorriu. — Sirva-se, Capitão. Você vai precisar de forças para o que vem a seguir. O jantar continuou em silêncio até que Kael terminasse o último pedaço do porco assado. Ele ergueu a taça de vinho e bateu-a levemente na mesa, olhando para Ágata. — Agora fale sem rodeios. O que você quer? Ágata suspirou e deixou a taça de lado. — É algo pessoal. Há algum tempo, vossa majestade me convocou. Sua filha mais nova, Teméria, é vidente. Há algumas luas, ela teve um sonho vívido no qual via sete pecadores lutando contra vários demônios. Pensando não ser uma visão certeira, pediu-me que trouxesse uma erva rara para clareza mental. Durante sua meditação, algo a atacou. Kael franziu o cenho. — Foi...? — Sim, Arquibar. Um demônio do sexto nível do inferno. Ele queria impedir que Teméria compreendesse o significado do sonho. — Entendi... Quer que eu descubra o que ele teme? — Não — Ágata respondeu em tom desinteressado. — Teméria dormiu por vinte dias depois do ataque, mas sobreviveu. Quando acordou, a primeira palavra que disse foi "Kael". Ele ficou perplexo. Mesmo sendo o futuro rei do inferno, nunca tivera contato com essa princesa humana, nem em sonhos. — Sete pecadores salvariam o mundo... — murmurou. — Pecadores? — Kael a interrompeu. — Não quero ser egoísta, e até agradeço por ter me salvado, mas quero que o mundo se dane! Já viu como tudo está? Eles têm a opção de fazer melhor, e a única coisa que fazem é piorar. Kael se levantou da mesa. — Obrigado pela comida e pelos cuidados. Retribuirei um dia, se puder. Mas agora, tenho que ir. — Fez uma promessa a ela, lembra-se? Kael parou, estático. Ele a olhou por cima do ombro. — Quem são os outros? — Vamos buscá-los. Enquanto isso, Capitão, aceita mais vinho? Kael se recordou da promessa feita à sua amada: jamais, independente da dor, deixaria o rancor apagar sua vontade de lutar por um mundo melhor. Ele nunca quebraria uma promessa feita a ela. — Capitão? — Ágata chamou sua atenção. — Mais vinho? — Sim, claro — ele respondeu, pegando a taça. Ágata sorriu, servindo o líquido escuro que refletia a luz bruxuleante das velas. Kael observou o vínculo da promessa e a realidade cruel que o cercava. O destino parecia brincar com ele, como sempre fazia. Ágata tomou um gole antes de continuar: — Teméria viu sete pecadores enfrentando demônios... mas sua visão não foi clara. Não sabemos quem são os outros, nem onde estão. Kael esfregou o rosto com as mãos. — E você espera que eu os encontre? — Eu espero que nós os encontremos, Capitão. Você não fará isso sozinho. Ele soltou uma risada baixa e amarga. — E o que te faz pensar que eu vou aceitar essa missão? Ágata inclinou a cabeça. — Porque você já aceitou. Kael estreitou os olhos. — O que quer dizer? — A partir do momento em que perguntou quem são os outros, você aceitou, Kael. Ele ficou em silêncio, digerindo suas palavras. No fundo, sabia que Ágata estava certa. Andrômeda acreditava em algo maior. E ele nunca quebraria uma promessa feita a ela. Finalmente, levou a taça aos lábios e bebeu um longo gole. Quando abaixou a taça, seu olhar estava decidido. — Por onde começamos? Ágata sorriu. — A primeira pista nos leva a uma prisão esquecida no norte. Se minha intuição estiver certa, o primeiro pecador está acorrentado lá. A caça havia começado.Cambaleando pelo corredor estreito, Kael sentia o mundo girar a cada passo. O vinho pesava em seu sangue mais do que deveria, e algo lhe dizia que Agatha, apesar de ter bebido ainda mais, permanecia sóbria por um motivo que ele ainda não conseguia decifrar. Mas seus pensamentos estavam turvos demais para isso agora. Tudo o que queria era dormir. Fechar os olhos. Esquecer. Quem sabe, se tivesse sorte, sonharia com Andrômeda. Mas nem mesmo a embriaguez foi capaz de enganá-lo. A realidade era implacável. Andrômeda estava morta. A dor veio como uma lâmina afiada, cravando-se fundo em seu peito. O ar fugiu de seus pulmões, os músculos travaram, e ele desabou contra a porta do quarto. O chão frio sob seu rosto não trouxe alívio algum. Com esforço, arrastou-se até a fechadura, forçando a porta a se abrir. Assim que o fez, um perfume familiar o envolveu. Kael parou. O cheiro delicado pairava no ar, preenchendo cada canto do cômodo. Lírios. Andrômeda amava lírios. Dizia que eram flo
Kael desceu do sótão, ainda perdido em pensamentos sobre o encontro inesperado com Boldar. Caminhava pelo corredor rumo ao quarto quando algo do lado de fora chamou sua atenção. Ao passar por uma das janelas, parou abruptamente. Lá fora, uma das árvores se moveu. Não foi um simples balançar de vento ou o farfalhar rotineiro das folhas. Ela deslizou pelo solo, como se estivesse viva. Franziu o cenho, inclinando-se para enxergar melhor. Outra árvore repetiu o movimento, depois outra, e mais outra, como se a floresta inteira estivesse… caminhando. Foi então que as palavras de Agatha ecoaram em sua mente: "A casa anda em reforma." Ele piscou. Aquilo não era uma metáfora. A casa realmente andava. Kael recuou um passo, observando melhor a estrutura ao redor. Por fora, parecia pequena, quase insignificante, mas lá dentro… era imensa, confortável, aconchegante de um jeito estranho. Aquilo exigia um nível altíssimo de magia. Ele soltou um riso curto. — Uma maga de primeiro nível
Nos três dias seguintes, Kael e Ágata permaneceram na vila. Kael reforçou as cercas, cavou um novo poço e inspecionou os estábulos. Ágata, por sua vez, canalizou sua magia para restaurar parte das plantações ressecadas. Apesar dos esforços, os ataques às carroças dos viajantes continuavam sem sentido, e Kael precisava descobrir a verdade. À noite, na taverna da aldeia, ele espalhou um boato: um novo carregamento de cerveja estava a caminho, escoltado por um mercador rico, dono da fabricação. Como esperado, o "lobo" atacou novamente. Mas não havia mercador, apenas uma armadilha cuidadosamente montada para revelar a verdade. Durante o confronto, Kael percebeu que não era um lobo atacando as carroças — eram homens. Os bandidos usaram a lã das ovelhas desaparecidas para criar disfarces e encobrir seus rastros. Após um combate breve, Kael os capturou e os levou ao ancião da vila. Exausto, retornou à casa onde estavam hospedados. Quando o terceiro dia amanheceu, a vila respirava com ma
Bazzard era uma cidade de pedra e ferro, com ruas fervilhantes de mercadores, guardas e viajantes. Kael e Ágata passaram pelos portões sem dificuldades, exibindo o selo do rei. — Vamos direto à prisão — disse Ágata. O prédio era sombrio e úmido, impregnado pelo cheiro metálico de ferrugem e algo mais… algo que Kael reconheceu no instante em que cruzou a entrada. Ódio. Quando a cela de Yoran foi aberta, a reação dele foi imediata. Um soco certeiro atingiu Kael no queixo, jogando-o para trás. — Acha que eu sou idiota?! — rosnou Yoran. — Acha que eu não ia sentir esse cheiro podre em você?! Kael se ergueu, limpando o canto da boca, o olhar endurecido. — Filho da— Antes que terminasse, revidou o golpe, arremessando Yoran contra a parede. Ágata segurou seu braço antes que ele avançasse de novo. — Chega. Yoran cuspiu no chão e estreitou os olhos para ela. — O que vocês querem? — Falar com você — respondeu Ágata, soltando Kael. — Mas, se preferir continuar bancando o
Kael estava quase sem fôlego com a história. A tensão aumentava a cada palavra, mas Yoram continuou, impassível: — A voz me ofereceu algo... algo que eu nem sabia que queria. Falou de riquezas, conforto, e até me mostrou uma visão do que poderia ser meu futuro, caso aceitasse. Sei o que você está pensando: que tipo de idiota cai num poço, encontra uma vela falante e ainda escuta o que ela tem a dizer? — Ele riu, sem humor, balançando a cabeça. — Eu concordo. Mas eu estava desnorteado, sem saber o que fazer. E quando a vela me prometeu que eu poderia trazer Yure de volta, eu não hesitei. Aceitei na hora. O silêncio pairou por um instante antes de Yoram continuar, sua voz levemente rouca. — Assim que aceitei... a vela se apagou. E eu caí. Caí sem parar. O mundo ao meu redor desmoronava, e a cada vez que meu corpo colidia contra algo, eu amaldiçoava aquela maldita vela. Mais uma pancada, e eu teria morrido. Kael respirou fundo, processando as informações, tentando encaixar as peça
O aroma forte e envolvente do café recém-passado preenchia o ambiente, despertando lentamente os sentidos de quem ainda repousava. O sol da manhã filtrava-se pelas janelas da cozinha, projetando sombras suaves sobre a madeira envelhecida da casa. As paredes de pedra e a mesa rústica de carvalho compunham o cenário onde Boldar estava, encostado no batente da porta, a xícara de barro entre os dedos longos. Seus olhos vermelhos eram uma lâmina na penumbra—um brilho inquietante, quase melancólico. O cabelo negro escorria sobre os ombros, com uma única mecha branca destoando no topo da cabeça. Ele parecia uma obra-prima inacabada—força crua e beleza trágica em uma só figura. "" Kael inclinou-se para trás na cadeira, despreocupado. O brilho cortante dos olhos âmbar denunciava que sua letargia era enganosa—ele estava sempre pronto para agir. As cicatrizes sob sua pele contavam histórias que ele jamais se daria ao trabalho de narrar." O cabelo castanho, desgrenhado, caía preguiçosamente so
A Taverna do Falcão Negro era um buraco decadente. O chão de madeira rangia sob os pés dos clientes embriagados, e o ar cheirava a cerveja fermentada, suor e carne assada. Homens riam alto, engrossando suas histórias de batalha, enquanto outros apostavam em jogos de dados e cartas. O grupo se sentou em um canto discreto, observando. Não demorou para que notassem Lake, o comandante dos Fúria da Noite e um dos chefes da guarda real. Ele estava no centro do salão—grande, robusto, com uma barriga ligeiramente protuberante, mas ombros largos e braços fortes. Sua armadura, embora gasta, ainda parecia imponente, e sua espada repousava sobre a mesa ao lado de uma caneca cheia. Falava alto, gabando-se de feitos passados, enquanto os homens ao redor riam e brindavam. Bêbado e descuidado, em um gesto brusco, ele atirou uma garrafa na direção da porta. Kael, que passava naquele momento, desviou com facilidade, mas a garrafa estourou contra a parede. — Ei, cuidado aí. Lake se viro
O cheiro de terra molhada ainda impregnava o ar quando Kael, Yoran e Ágata deixaram a taverna. A chuva havia transformado a estrada em um lamaçal infernal, mas quem ali tinha tempo para reclamar? Eles tinham um objetivo: chegar a Merlin e tirar Kaito da prisão antes do almoço. Poderiam enfrentar qualquer coisa, menos a fome de Ágata ao meio-dia. O caminho era longo, mas nada que os três já não estivessem acostumados. Kael seguia na frente, focado, calado como sempre. Yoran caminhava ao lado de Ágata, que ajeitava a capa, tentando ignorar o frio que insistia em se infiltrar em suas roupas. — Então… Kaito, hein? — Yoran quebrou o silêncio, lançando um olhar de canto para Ágata. Ela bufou. — O quê? Vamos ficar calados até Merlin? Ágata ergueu a sobrancelha. — Sim, me agradaria, de fato, ser agraciada pelo som inebriante do seu absoluto silêncio. Kael soltou um riso abafado, sem tirar os olhos do caminho. — Eu, hein? Que mau humor. — resmungou Yoran, ajeitando a cap