Kael cambaleou até o quarto, sentindo o mundo girar ao seu redor. Ele estava bêbado, muito mais do que deveria estar, e o mais estranho era que Agatha, que havia bebido ainda mais que ele, parecia perfeitamente sóbria. Algo nisso o incomodava, mas seus pensamentos estavam turvos demais para se aprofundar nisso agora.
Tudo o que queria era dormir. Fechar os olhos e esquecer. Quem sabe, se tivesse sorte, sonharia com Andrômeda. Mas mesmo a embriaguez não foi capaz de enganá-lo. A realidade era cruel e implacável. Andrômeda estava morta. A dor veio como uma lâmina cravada no peito, roubando seu ar. Seu corpo ficou pesado, os músculos recusando-se a obedecer, e ele desabou na porta do quarto. O chão frio contra seu rosto não trouxe nenhum alívio. Com esforço, ele se arrastou até a fechadura, forçando a porta a se abrir. O cheiro que o atingiu fez seu coração falhar uma batida. O perfume delicado flutuava pelo quarto, preenchendo cada canto. Andrômeda amava lírios. Sempre dizia que eles eram flores fortes, que nasciam mesmo em terrenos difíceis. A lembrança foi como uma lança em seu peito, mas ele não teve forças para lutar contra ela. Arrastando-se como um homem à beira da morte, ele alcançou a cama. Dessa vez, não tentou conter nada. Não houve orgulho, não houve controle. Apenas dor. Kael chorou como nunca havia chorado antes, nem mesmo quando criança. O peso da perda esmagava seus ossos, o sufocava, fazia seu corpo tremer em espasmos involuntários. A risada suave de Andrômeda ecoava em sua mente, como um sussurro distante tentando alcançá-lo. O calor da lembrança fazia seu coração acelerar e, ao mesmo tempo, se despedaçar ainda mais. Mas ele sabia. Sabia que nunca mais a veria. E essa certeza doía mais do que qualquer ferida. Exausto, rendido à própria dor, ele adormeceu. Kael despertou com o som de batidas na porta. Sua mente ainda estava turva, resquícios da bebida da noite passada pesando em seus pensamentos. Ele tentou se mover e percebeu que estava seminu. Antes de responder, puxou um lençol qualquer para cobrir-se. — Entre. Ele supôs que fosse Agatha. Afinal, só os dois estavam ali. A porta se abriu, e ela cruzou os braços, apoiando-se no batente com um olhar debochado. — Precisa tomar mais cuidado. Não sabe quem estava batendo, como dá permissão pra entrar assim, a qualquer um? Kael suspirou, passando a mão no rosto. — Só estamos nós dois aqui. Era óbvio que era você. Ela inclinou a cabeça de lado, como se estudasse sua resposta. — Capitão, sabia que vampiros e alguns demônios menores precisam de permissão pra entrar na sua casa? Ele arqueou a sobrancelha. — Isso tem cheiro de lenda. — O príncipe do inferno também era uma lenda há alguns dias… e aqui está você, seminu, na minha casa. Kael riu sem graça e se sentou na cama, massageando as têmporas. — Certo, certo. Algum motivo específico pra essa visita? Agatha desviou o olhar para a janela, como se procurasse algo. — Partiremos em algumas horas. Vim avisar pra que não se assuste. Ele franziu o cenho. — Me assustar? — Sim. A casa anda em reforma e você pode ouvir alguns barulhos. Ele não acreditou nem por um segundo. — A casa anda em reforma… enquanto viajamos? — Sim — respondeu Agatha, ignorando a provocação. — Estamos sem suprimentos e, além disso, um dos nossos amigos está preso em Barzzard. Se não o tirarmos de lá logo, ele morre. Kael se espreguiçou e se levantou, enrolando melhor o lençol na cintura. — Quando chegamos lá? — Dois ou três dias, se tivermos sorte. — E quem é ele? Agatha cruzou a perna e se sentou no parapeito da janela, batendo os dedos no joelho, como se esperasse algo. — O nome dele é Yoram. Kael apenas a encarou, esperando que ela continuasse. — Ele cresceu sem nada. Viu a miséria de perto e entendeu que, se não tomasse o que precisava, ninguém lhe daria. Yoram era um ladrão, mas não daqueles que roubavam por pura maldade. Ele roubava pra sobreviver. Com o tempo, percebeu que dinheiro não era o que o movia… era a liberdade. Quanto mais tinha, mais livre se sentia. Kael permaneceu em silêncio, absorvendo as palavras. — Em uma dessas noites, ele se juntou a um grupo que planejava um roubo grande. Ele não sabia todos os detalhes e, no fim, foi uma armadilha. O castelo pegou fogo, pessoas inocentes morreram… incluindo alguém que o ajudou muito no passado. Alguém que ele nunca quis machucar. A expressão de Kael se fechou. Ele conhecia bem o peso da culpa. — Ele fugiu. Sumiu por um tempo. Mas, algum tempo depois, reapareceu. Estava ferido do lado de fora de uma caverna perto de uma montanha ao norte do reino. Como já era procurado, foi levado de volta e condenado à morte, por deixar sua ganância superar sua humanidade. — Então, por isso ele será o pecado da ganância. — Sim, mas também pelo poder dele. — Poder? — Sim. Alguns guardas perguntaram o que ele fazia naquela caverna. Ele disse que queria encontrar o portão do inferno. Os olhos de Kael brilharam com interesse. — Por quê? — Ele disse que encontrou um artefato logo depois do incidente no castelo. — Que tipo de artefato? Agatha sorriu de lado. — Um que deu a ele mais do que liberdade. Deu a ele poder. Mas nada vem sem custo, e Yoram sabe disso melhor do que ninguém. Ela se virou, como se finalmente tivesse encontrado o que procurava. Kael ficou pensativo por um instante. — Se ele tem tanto poder, como foi parar em Barzzard? — Foi pego de propósito. Kael arqueou a sobrancelha. — Pra quê? — Isso, capitão, é algo que só ele pode te contar. Kael suspirou, sentindo a ressaca se dissipar aos poucos. — Parece que essa viagem vai ser longa. Agatha se levantou e estalou os dedos. — Peguei. — O que é isso? — Um ladrãozinho. Todos os dias deixo seu café aqui, mas achei estranho que você sempre desça pra tomar café lá embaixo. Além disso, percebi que alguns dos meus potes de mel desapareceram. Kael olhou para os lados, tentando encontrar o que Agatha havia capturado. — Melhor se vestir. Não quero que nossa primeira parada seja em alguma vila porque você decidiu sair por aí quase nu. Kael riu pelo nariz e balançou a cabeça. — Dê-me um minuto. Ela se virou, mas antes de sair, parou na porta. — Ah, e uma última coisa. — O quê? Ela sorriu de canto. — Não confie no que vê quando estivermos perto de Barzzard. E então, sem dar mais explicações, fechou a porta atrás de si. — Rum… Aghi, a maga… — Ele sorriu. Kael sentiu o chão tremer de repente enquanto se vestia, seu coração disparando no peito. Por um segundo, pensou que estavam sob ataque. Ele saltou da cadeira, pegando a espada sem nem perceber, e correu escada abaixo. Seu instinto gritava para encontrar Agatha antes que fosse tarde demais. Ele atravessou corredores, desviando de móveis e portas semiabertas, até chegar à entrada do sótão. A porta rangeu quando ele a empurrou com força, mas a visão que encontrou o fez parar no mesmo instante. Agatha estava levitando no centro do cômodo, completamente tranquila, como se o mundo ao redor não tivesse acabado de estremecer. Um livro antigo flutuava diante dela, as páginas se virando sozinhas. — Se assustou? — ela perguntou sem tirar os olhos do livro. Kael franziu a testa, ainda tentando recuperar o fôlego. — Pensei que estavam atacando. Ela finalmente olhou para ele, arqueando uma sobrancelha. — Quem? Ele passou a mão pelos cabelos, tentando organizar seus pensamentos. — Não sei… as Deusas, os demônios… — respondeu, ainda agitado, como se tentasse se convencer de que nada estava acontecendo. Agatha apenas sorriu de canto. — Eu disse que estávamos em obras. Kael bufou, sentindo o peso da adrenalina começar a diminuir. Ele caminhou pelo cômodo, tocando alguns objetos com curiosidade, até que um grito agudo cortou o ar. — Ei! Não seja tão invasiva! Ele virou-se para Agatha, que segurava algo pequeno entre os dedos. — O que é isso? A pequena criatura se debatia, suas asas cintilando de raiva. — Creio que uma fada — respondeu Agatha —, mas ele não colabora. — Eu já disse que não sou uma fada! Kael estreitou os olhos. — E o que você é, então? A criatura cruzou os braços. — Eu sou um Boldar. Um demônio menor. E ela me convidou. Kael e Agatha se entreolharam. — Experiência própria? — Kael perguntou, sorrindo de canto. Agatha soltou a criatura com um suspiro. — Sim.Kael desceu do sótão, ainda com a mente ocupada pelo encontro inesperado com o tal Boldar. Ele caminhava pelo corredor em direção ao quarto quando algo fora da casa chamou sua atenção.Ao passar por uma das janelas, parou de súbito. Lá fora, uma das árvores se moveu. Não foi um balanço de vento ou o farfalhar comum das folhas. Ela realmente se moveu, deslizando pelo solo como se estivesse viva.Franziu o cenho, inclinando-se um pouco mais para observar melhor. Outra árvore repetiu o movimento, depois outra, e mais outra, como se a floresta estivesse… caminhando.Foi então que a lembrança das palavras de Agatha lhe atingiu."A casa anda em reforma."Ele piscou. Aquilo não havia sido uma metáfora. A casa realmente andava.Kael recuou um passo, dessa vez observando melhor a estrutura ao seu redor. Por fora, a casa parecia pequena, quase insignificante, mas ali dentro… ela era imensa, confortável, aconchegante de um jeito estranho. Isso exigia um nível de magia altíssimo.Ele soltou um ri
Depois de algumas horas de viagem, a quietude se tornou inevitável, e o silêncio da estrada incomodava Kael. Os galhos das árvores balançavam sob o vento, criando sombras esguias pelo caminho de terra. EraO tipo de silêncio que antecedia um problema.Kael levou a mão ao cabo da espada.— Você sente isso? — ele perguntou.— Você sente coisas demais — Ágata retrucou. — Mas sim, eu sinto.Antes que Kael pudesse responder, um estalo veio da floresta.— Emboscada — ele murmurou.O ataque veio rápido. Seis figuras encapuzadas emergiram das sombras, lâminas brilhando à luz do entardecer.— Sejam bonzinhos e deixem as bolsas, e ninguém sai ferido — um dos ladrões disse.Kael sorriu.— Eu tenho uma proposta melhor: vocês correm, e eu não quebro seus dentes.O líder riu.— Engraçadinho. Pena que sua sorte acaba aqui...O soco de Kael o atingiu antes que ele terminasse a frase. O homem caiu como um saco de batatas. O caos se instaurou.Kael se movia como um trovão, desviando de golpes e revidan
O cheiro forte e envolvente do café recém passado dominava o ambiente, despertando lentamente os sentidos de quem ainda repousava. O sol da manhã filtrava-se pelas janelas da cozinha, projetando sombras suaves sobre a madeira envelhecida da casa. As paredes de pedra e a mesa rústica de carvalho compunham o cenário onde Boldar estava, encostado no batente da porta, a xícara de barro repousando entre os dedos longos. Seus olhos vermelhos eram uma lâmina contra a penumbra—um brilho inquietante, quase melancólico. O cabelo negro escorria sobre os ombros, com uma única mecha branca destoando no topo da cabeça. Ele parecia uma obra-prima inacabada—força crua e beleza trágica em uma só figura.Kael estava sentado à mesa, o corpo inclinado para trás na cadeira, como se não tivesse um único peso no mundo. Seus olhos Âmbar eram tão cortantes quanto o fio de uma lâmina, e os músculos sob a pele marcada por cicatrizes contavam histórias que ele nunca se daria ao trabalho de narrar. Seu cabelo ca
O cheiro de terra molhada ainda impregnava o ar quando Kael, Yoran e Ágata saíram da taverna. A chuva havia transformado a estrada em um lamaçal infernal, mas quem ali tinha tempo para reclamar? Eles tinham um objetivo: chegar a Merlin e tirar Kaito da prisão antes do almoço. Poderiam enfrentar qualquer coisa, menos a fome de Ágata ao meio-dia.O caminho era longo, mas nada que os três já não estivessem acostumados. Kael seguia na frente, focado, calado como sempre. Yoran caminhava ao lado de Ágata, que ajeitava a capa, tentando ignorar o frio que insistia em se infiltrar em suas roupas.— Então… Kaito, hein? — Yoran quebrou o silêncio, lançando um olhar de canto para Ágata.Ela bufou.— O quê? Vamos ficar calados até Merlin?Ágata ergueu a sobrancelha.— Sim, me agradaria, de fato, ser agraciada pelo som inebriante do seu absoluto silêncio.Kael soltou um riso abafado, sem tirar os olhos do caminho.— Eu, hein? Que mau humor. — Disse Yoran entre dentes, ajeitando a capa.Dep
A noite já caía quando chegaram. O céu estava pintado de tons de púrpura e azul, e a brisa trazia o cheiro fresco da terra molhada. O silêncio da estrada contrastava com a bagunça que encontraram ao entrar.Kael foi o primeiro a falar:— Precisamos de quartos para todo mundo.Ágata olhou para Kaito, avaliando-o.— Você vai dividir com quem?Kaito sorriu de canto.— Se for com você, não me importo.Kael bufou.— Escolhe outro.— Ora, ora, que defensivo. — Kaito apoiou o queixo sobre a mão, olhando para os outros com curiosidade. — Então... opções?Yoran estalou a língua.— Posso dividir com outro, mas com você não.— Também não quero dividir com você — retrucou Kael.— Eu não me importo — disse Boldar, chegando com um prato de frutas nas mãos.Todos olharam para ele.— O quê? Ele me ajuda na cozinha, diferente de vocês, preguiçosos.Yoran sorriu.— E eu sou um ótimo colega de quarto.Kael cruzou os braços.— Fechado, então. Fique com meu quarto, é o segundo à esquerd
Outro impacto sacudiu a casa, dessa vez mais forte. Mas a casa não se partiria. Não era apenas uma construção de madeira e pedra, mas um refúgio mágico, resistente a qualquer ataque. Então, se estavam sentindo o impacto… quem quer que estivesse do lado de fora era forte. Forte o bastante para querer derrubar uma casa feita para suportar magias de alto escalão.— Se for uma maldita tempestade de novo, eu juro que vou… — Yoran começou, mas parou assim que abriu a porta e viu o caos do lado de fora.Kael estava encostado na mureta da varanda, olhos semicerrados, a expressão azeda de quem foi despertado à força. Ele suspirou, exausto.— Eu estava sonhando… — murmurou, esfregando o rosto. — Mas claro, alguém decide me arrancar do único lugar onde a vida ainda faz sentido.Kaito estava parado ao lado dele, com um copo de vinho ainda na mão, como se tivesse acabado de se levantar da cama sem tempo para processar nada. Mais afastada, Ágata subia as escadas do porão, segurando um livro pes
O frio da madrugada cortava como lâminas, e Kael sentia cada rajada de vento atravessar suas roupas. Ele andava rápido, mas atento, guiando o médico pelo caminho irregular da floresta. O céu escuro parecia pesar sobre eles, e a neblina rasteira fazia o chão desaparecer aos poucos.— Faz tempo que não vejo alguém tão jovem carregar tanto peso nos ombros. — O médico quebrou o silêncio.Kael apenas lançou um olhar de esguelha. Talvez, em outro momento, ele tivesse respondido, mas agora não tinha paciência para conversa. Não estava ali para filosofar sobre fardos.— É por aqui. Cuidado onde pisa.— Não se preocupe, eu moro aqui. Sei onde pisar. — O médico passou à frente de Kael, que o olhou de cima a baixo.— Exibido.Eles não demoraram a chegar, mas, quando o fizeram, encontraram Ágata deitada na cama de Kaito. Estava gelada, pálida demais, com a testa coberta de suor. Seu peito subia e descia devagar, como se seu corpo lutasse para continuar funcionando.O médico ajoelhou-se ao
A manhã seguiu seu curso, trazendo consigo um ar de alívio e renovação. Kaito, ainda pálido e visivelmente cansado, havia acordado. Seus olhos claros e brilhantes encontraram os de Ágata, e um sorriso fraco, mas reconfortante, surgiu em seu rosto. Ele não precisava dizer nada; a gratidão e o afeto estavam estampados em seu olhar. Ágata, por sua vez, sentiu um peso sair de seus ombros. Ele estava bem. Isso era o que importava. Mas a inquietação ainda habitava seu peito. Boldar e Yoran não saíam de seus pensamentos. Ela sabia que precisava descansar, que seu corpo ainda estava se recuperando, mas a preocupação falou mais alto. Enquanto Kaito descansava, Ágata decidiu sair escondida. Não queria que Kael percebesse, sabendo que ele tentaria impedi-la. Ela não tinha energia para discutir. Caminhou silenciosamente pelos corredores, até que, de longe, ouviu os gritos de Yoran. O som a deixou apreensiva, acelerando seus passos. Ao chegar mais perto, viu Yoran amarrado a uma cadeira, se deba