Kael desceu do sótão, ainda com a mente ocupada pelo encontro inesperado com o tal Boldar. Ele caminhava pelo corredor em direção ao quarto quando algo fora da casa chamou sua atenção.
Ao passar por uma das janelas, parou de súbito. Lá fora, uma das árvores se moveu. Não foi um balanço de vento ou o farfalhar comum das folhas. Ela realmente se moveu, deslizando pelo solo como se estivesse viva. Franziu o cenho, inclinando-se um pouco mais para observar melhor. Outra árvore repetiu o movimento, depois outra, e mais outra, como se a floresta estivesse… caminhando. Foi então que a lembrança das palavras de Agatha lhe atingiu. "A casa anda em reforma." Ele piscou. Aquilo não havia sido uma metáfora. A casa realmente andava. Kael recuou um passo, dessa vez observando melhor a estrutura ao seu redor. Por fora, a casa parecia pequena, quase insignificante, mas ali dentro… ela era imensa, confortável, aconchegante de um jeito estranho. Isso exigia um nível de magia altíssimo. Ele soltou um riso curto. — Uma maga de primeiro nível, sem dúvidas — murmurou, admirado. Perdeu-se tanto naquela visão que não percebeu o tempo passar. A tarde chegou sem que ele se desse conta, e ele ainda estava ali, do lado de fora, observando a paisagem se mover. — Não me diga que nunca viu uma casa encantada, Capitão. A voz de Agatha o trouxe de volta. Ele olhou por sobre os ombros, encontrando o sorriso zombeteiro dela. — Já vi muita coisa. Algumas delas te deixariam de boca aberta e o estômago revirado — respondeu com um meio sorriso. — Mas nenhuma tão enfadonha quanto essa. Agatha riu baixo, sacudindo a cabeça. — Odeio atrapalhar seu momento filosófico, mas chegaremos antes do esperado. Precisamos de suprimentos… e de algumas ervas que eu gostaria de estudar antes de chegarmos a Bazzard. Kael ergueu uma sobrancelha. — Precisa de ajuda? — Não. — Então só queria avisar para eu não me assustar? Agatha sorriu de canto. — Exato. Kael riu, descrente. — Pelo visto, teremos surpresas. — Ah, não parece tão ruim. Ouvi dizer que você odeia a monotonia. — É, o tédio é entediante. Ambos riram enquanto caminhavam para a aldeia. A tarde estava calma demais para um dia de viagem. Kael parou em uma tenda e admirou um bracelete de ouro, que chamou sua atenção. Agatha estava ao lado dele, brincando com um frasco pequeno, girando o líquido arroxeado dentro sem muita atenção. Mas Kael sabia que ela estava ouvindo. — Tá vendo aquilo? — Ele inclinou a cabeça em direção à praça, colocando o bracelete de volta no lugar. Agatha ergueu os olhos e seguiu o olhar dele. O centro da aldeia estava movimentado demais. Pessoas falavam alto, apontavam, seguravam ferramentas como se fossem armas. No meio da confusão, uma carroça velha e um monte de correntes brilhando à luz do sol. Algo se mexia ali dentro. Kael não precisou de muito para entender: aquilo não era uma simples reunião. Era uma caçada. — Eu sabia que íamos nos meter em encrenca — Agatha suspirou. — Talvez seja um daqueles torneios humanos em que o vencedor ganha cerveja de graça — Kael disse, empolgado. Agatha revirou os olhos, mas o seguiu. Eles tinham ido à aldeia para buscar suprimentos, mas agora tinham outra coisa para resolver. Enquanto se aproximavam da praça, as vozes ficavam mais nítidas. — …já sumiram três ovelhas! — gritou um homem mais velho, o rosto vermelho de raiva. — E atacaram mercadores na estrada! — outra voz se juntou. — Essa coisa é um demônio, tem que morrer! Kael estreitou os olhos. No meio da carroça, acorrentado, um lobo arfava. O pelo escuro estava sujo de lama, e havia sangue seco na pata dianteira. Os aldeões estavam com medo. E medo sempre virava violência. Kael já vira isso acontecer antes. Humanos não precisam de muita coisa para justificar uma execução. — Isso tá errado — ele disse, mais para si mesmo do que para Agatha. Mas Agatha já sabia. A multidão estava prestes a agir. E Kael não ia deixar. — Creio que chegaremos atrasados em Bazzard — Kael murmurou. — Isso não é uma novidade, não se meta em encrenca, Capitão. Kael apenas lançou um olhar divertido para ela antes de avançar. A praça diante deles era tomada pelo burburinho dos aldeões. No centro, um lobo de olhos dourados arfava, preso a uma corrente, enquanto um grupo de homens discutia o destino da criatura. Kael respirou fundo e avançou. — O que está acontecendo aqui? Os aldeões voltaram-se para ele, avaliando-o com desconfiança. — Esse monstro trouxe azar para a vila! — um deles vociferou. — Desde que apareceu, tudo desandou! — Maldito monstro! — Um dos homens ergueu a lança. — Vamos acabar logo com isso! — Espera! — A voz infantil veio de um canto. Um garoto magro e pequeno se agarrou à saia da mãe. — Ele não fez nada de errado! — Silêncio, Milo! — A mulher o puxou para trás. — Quem é você? — Alguém que quer entender o que está acontecendo. Os murmúrios cresceram, mas o líder dos aldeões — um homem robusto, de barba grisalha e feições marcadas pelo tempo — deu um passo à frente. — Esse lobo tem assombrado nossa vila. Desde que apareceu, nossos animais sumiram, as plantações murcharam. Kael desviou o olhar para o animal preso. O lobo, mesmo cercado e ferido, não demonstrava agressividade. Ele estava assustado. — Ele atacou alguém? O líder hesitou. — Não... Mas ficou rondando as casas. Isso é o bastante. — Bastante pra quê? Matá-lo sem motivo? — Kael cruzou os braços. — E se ele estiver amaldiçoado? Kael suspirou. — Vocês são sempre assim? Ou só quando estão com medo? O comentário provocou um rebuliço na multidão. Algumas pessoas franziram o cenho, outras desviaram o olhar. Kael já conhecia esse tipo de reação. — Ele é um lobo, a natureza dele é matar. — Qual é a natureza de um humano? Não se julga ninguém pela sua natureza, não escolhemos a forma como vamos nascer. Ele respirou fundo e propôs um acordo: — Me deem três dias. Se nada melhorar, eu mesmo mato o lobo. Ele se abaixou na altura do lobo, que rosnou baixinho. Kael apenas estendeu a mão, deixando-a próxima, sem tocá-lo. O lobo o observou, farejando o ar. — Ele está assustado. Não é uma fera sedenta por sangue. Os aldeões se entreolharam. O líder suspirou. — Três dias. Mas se algo acontecer, a culpa será sua, e você morrerá com ele. Kael apenas assentiu. Quando soltaram as correntes, o lobo disparou para a floresta. Nos três dias seguintes, Kael e Agatha permaneceram na vila. Kael ajudou a reforçar as cercas, cavou um novo poço e verificou os estábulos. Agatha usou magia para restaurar parte das plantações que estavam secas. Mas, mesmo assim, os ataques às carroças dos viajantes não faziam sentido, e Kael precisava entender o que houve. À noite, na taverna da aldeia, ele espalhou que chegaria um carregamento novo de cerveja na cidade e, junto com ela, um mercador muito rico que fabricava as cervejas. E, como esperado, o “lobo” atacou novamente, mas não havia nenhum mercador. Esse era um plano bolado para livrar o lobo da forca. Durante o ataque, Kael percebeu que eram homens que atacavam as carroças e as ovelhas sumiram porque eles usaram a lã para se disfarçar e encobrir seu cheiro. Kael levou os ladrões ao ancião e voltou para a casa exausto. Quando o terceiro dia amanheceu, a vila já respirava com mais alívio. Kael não voltou mais à aldeia, pois já tinham as ervas e os suprimentos, então não era mais necessário, mas enquanto passava pelo portão da cidade em direção a Bazzard, ouviu alguém chamar. — Eiiii... senhor... obrigado. Kael virou-se para olhar e ficou surpreso em ver o lobo ao lado do menino que chorava de medo ao ver o amigo com problemas. Kael sorriu de canto. — Adeus, Milo. Ele queria parar e se despedir, mas odiava demonstrar afeto e a prisão de Bazzard ainda estava longe.Depois de algumas horas de viagem, a quietude se tornou inevitável, e o silêncio da estrada incomodava Kael. Os galhos das árvores balançavam sob o vento, criando sombras esguias pelo caminho de terra. EraO tipo de silêncio que antecedia um problema.Kael levou a mão ao cabo da espada.— Você sente isso? — ele perguntou.— Você sente coisas demais — Ágata retrucou. — Mas sim, eu sinto.Antes que Kael pudesse responder, um estalo veio da floresta.— Emboscada — ele murmurou.O ataque veio rápido. Seis figuras encapuzadas emergiram das sombras, lâminas brilhando à luz do entardecer.— Sejam bonzinhos e deixem as bolsas, e ninguém sai ferido — um dos ladrões disse.Kael sorriu.— Eu tenho uma proposta melhor: vocês correm, e eu não quebro seus dentes.O líder riu.— Engraçadinho. Pena que sua sorte acaba aqui...O soco de Kael o atingiu antes que ele terminasse a frase. O homem caiu como um saco de batatas. O caos se instaurou.Kael se movia como um trovão, desviando de golpes e revidan
O cheiro forte e envolvente do café recém passado dominava o ambiente, despertando lentamente os sentidos de quem ainda repousava. O sol da manhã filtrava-se pelas janelas da cozinha, projetando sombras suaves sobre a madeira envelhecida da casa. As paredes de pedra e a mesa rústica de carvalho compunham o cenário onde Boldar estava, encostado no batente da porta, a xícara de barro repousando entre os dedos longos. Seus olhos vermelhos eram uma lâmina contra a penumbra—um brilho inquietante, quase melancólico. O cabelo negro escorria sobre os ombros, com uma única mecha branca destoando no topo da cabeça. Ele parecia uma obra-prima inacabada—força crua e beleza trágica em uma só figura.Kael estava sentado à mesa, o corpo inclinado para trás na cadeira, como se não tivesse um único peso no mundo. Seus olhos Âmbar eram tão cortantes quanto o fio de uma lâmina, e os músculos sob a pele marcada por cicatrizes contavam histórias que ele nunca se daria ao trabalho de narrar. Seu cabelo ca
O cheiro de terra molhada ainda impregnava o ar quando Kael, Yoran e Ágata saíram da taverna. A chuva havia transformado a estrada em um lamaçal infernal, mas quem ali tinha tempo para reclamar? Eles tinham um objetivo: chegar a Merlin e tirar Kaito da prisão antes do almoço. Poderiam enfrentar qualquer coisa, menos a fome de Ágata ao meio-dia.O caminho era longo, mas nada que os três já não estivessem acostumados. Kael seguia na frente, focado, calado como sempre. Yoran caminhava ao lado de Ágata, que ajeitava a capa, tentando ignorar o frio que insistia em se infiltrar em suas roupas.— Então… Kaito, hein? — Yoran quebrou o silêncio, lançando um olhar de canto para Ágata.Ela bufou.— O quê? Vamos ficar calados até Merlin?Ágata ergueu a sobrancelha.— Sim, me agradaria, de fato, ser agraciada pelo som inebriante do seu absoluto silêncio.Kael soltou um riso abafado, sem tirar os olhos do caminho.— Eu, hein? Que mau humor. — Disse Yoran entre dentes, ajeitando a capa.Dep
A noite já caía quando chegaram. O céu estava pintado de tons de púrpura e azul, e a brisa trazia o cheiro fresco da terra molhada. O silêncio da estrada contrastava com a bagunça que encontraram ao entrar.Kael foi o primeiro a falar:— Precisamos de quartos para todo mundo.Ágata olhou para Kaito, avaliando-o.— Você vai dividir com quem?Kaito sorriu de canto.— Se for com você, não me importo.Kael bufou.— Escolhe outro.— Ora, ora, que defensivo. — Kaito apoiou o queixo sobre a mão, olhando para os outros com curiosidade. — Então... opções?Yoran estalou a língua.— Posso dividir com outro, mas com você não.— Também não quero dividir com você — retrucou Kael.— Eu não me importo — disse Boldar, chegando com um prato de frutas nas mãos.Todos olharam para ele.— O quê? Ele me ajuda na cozinha, diferente de vocês, preguiçosos.Yoran sorriu.— E eu sou um ótimo colega de quarto.Kael cruzou os braços.— Fechado, então. Fique com meu quarto, é o segundo à esquerd
Outro impacto sacudiu a casa, dessa vez mais forte. Mas a casa não se partiria. Não era apenas uma construção de madeira e pedra, mas um refúgio mágico, resistente a qualquer ataque. Então, se estavam sentindo o impacto… quem quer que estivesse do lado de fora era forte. Forte o bastante para querer derrubar uma casa feita para suportar magias de alto escalão.— Se for uma maldita tempestade de novo, eu juro que vou… — Yoran começou, mas parou assim que abriu a porta e viu o caos do lado de fora.Kael estava encostado na mureta da varanda, olhos semicerrados, a expressão azeda de quem foi despertado à força. Ele suspirou, exausto.— Eu estava sonhando… — murmurou, esfregando o rosto. — Mas claro, alguém decide me arrancar do único lugar onde a vida ainda faz sentido.Kaito estava parado ao lado dele, com um copo de vinho ainda na mão, como se tivesse acabado de se levantar da cama sem tempo para processar nada. Mais afastada, Ágata subia as escadas do porão, segurando um livro pes
O frio da madrugada cortava como lâminas, e Kael sentia cada rajada de vento atravessar suas roupas. Ele andava rápido, mas atento, guiando o médico pelo caminho irregular da floresta. O céu escuro parecia pesar sobre eles, e a neblina rasteira fazia o chão desaparecer aos poucos.— Faz tempo que não vejo alguém tão jovem carregar tanto peso nos ombros. — O médico quebrou o silêncio.Kael apenas lançou um olhar de esguelha. Talvez, em outro momento, ele tivesse respondido, mas agora não tinha paciência para conversa. Não estava ali para filosofar sobre fardos.— É por aqui. Cuidado onde pisa.— Não se preocupe, eu moro aqui. Sei onde pisar. — O médico passou à frente de Kael, que o olhou de cima a baixo.— Exibido.Eles não demoraram a chegar, mas, quando o fizeram, encontraram Ágata deitada na cama de Kaito. Estava gelada, pálida demais, com a testa coberta de suor. Seu peito subia e descia devagar, como se seu corpo lutasse para continuar funcionando.O médico ajoelhou-se ao
A manhã seguiu seu curso, trazendo consigo um ar de alívio e renovação. Kaito, ainda pálido e visivelmente cansado, havia acordado. Seus olhos claros e brilhantes encontraram os de Ágata, e um sorriso fraco, mas reconfortante, surgiu em seu rosto. Ele não precisava dizer nada; a gratidão e o afeto estavam estampados em seu olhar. Ágata, por sua vez, sentiu um peso sair de seus ombros. Ele estava bem. Isso era o que importava. Mas a inquietação ainda habitava seu peito. Boldar e Yoran não saíam de seus pensamentos. Ela sabia que precisava descansar, que seu corpo ainda estava se recuperando, mas a preocupação falou mais alto. Enquanto Kaito descansava, Ágata decidiu sair escondida. Não queria que Kael percebesse, sabendo que ele tentaria impedi-la. Ela não tinha energia para discutir. Caminhou silenciosamente pelos corredores, até que, de longe, ouviu os gritos de Yoran. O som a deixou apreensiva, acelerando seus passos. Ao chegar mais perto, viu Yoran amarrado a uma cadeira, se deba
sol já se escondia no horizonte, pintando o céu com tons de laranja e roxo. O grupo seguia determinado a encontrar Leon, o Pecado do Orgulho, já que não. sabiam nada sobre Ordan ainda, ele era o próximo.— Tá, mas se o Ordinário não vai, e a espadachim muito menos... então não estão faltando só três? — questionou Kael, semicerrando os olhos.— Bem… é… — começou Yoran.— ACORDA, PORRA! — berrou ele de repente, jogando o que sobrou do pão na cara de Kael.Kael desviou a tempo, mas o pão voou direto na parede e deslizou dramaticamente para o chão.— Joga comida fora não, demônio — repreendeu Kaito, balançando a cabeça.— Ei, isso foi um insulto? — protestou Kael, cruzando os braços.— Não leva pro coração, capitão — Yoran piscou.Ambos riram, mas Kaito olhava para o pão no chão como se fosse cometer um crime. No canto da cozinha, Ágata e Alinna observavam o diálogo sem se meter.— Então… — começou Ágata, cruzando os braços.— Não, mel, não me lembro. Não quero ter essa conversa agora. —