Chego em casa, a determinação latejando em cada célula do meu corpo. Mudar de vida. Era isso. Nada mais de rotina, nada mais de bem bom. Bem bom era o código para o meu estado de conforto paralisante, onde maratonava séries sem graça e pedia a mesma pizza de sempre, todas as sextas.
Enquanto eu saia do elevador pronta para entrar na minha cobertura, já podia sentir o cheiro familiar do meu apartamento: uma mistura de sachê de lavanda e resignação. Abro a porta e jogo minha bolsa no sofá, que geme sob o peso extra. Olho ao redor. As paredes cor de creme pareciam me encarar, cúmplices silenciosas da minha vida insossa.
— Chega! — eu digo em voz alta, o som ecoando no espaço. — Alice 2.0 está na área.
O problema é: quem era essa Alice 2.0? Eu não tinha a menor ideia. Sabia apenas que precisava ser alguém mais... vibrante. Alguém que dissesse sim para o inesperado, que arriscasse um tropeção em vez de ficar sentada no sofá, colecionando migalhas de biscoito.
Talvez devesse começar com algo pequeno. Tipo, radicalmente pequeno. Em vez do meu pijama de flanela de sempre, poderia usar aquela lingerie "mais para um monte de fios do que para calcinha e sutiã" que comprei por impulso e nunca tive coragem de usar.
A ideia me faz rir. Era um começo ridículo, mas um começo.
Continuo encarando o teto da sala, satisfeita com a minha rebeldia repentina. Pelo menos até Marta, a governanta, surgir na porta da cozinha, me olhando como se eu tivesse enlouquecido de vez. E talvez eu estivesse, mas quem se importava?
— Eu tive uma ideia, Martinha — digo, com um sorriso que aposto ser meio maníaco. Afinal, eu estava ficando maluca. E dane-se essa história de começar com algo pequeno.
— Agora eu sei o que eu realmente preciso — declaro, sentindo a empolgação crescer a cada palavra — Mudar a minha vida!
Marta me observa, curiosa.
— Mudar como, menina?
— Raciocina comigo — peço, me levantando e começando a gesticular com as mãos, como se estivesse apresentando um caso para um júri — Primeiro, eu passo o dia todo olhando para o teto, esperando minha criatividade cair do céu. Segundo, esse apartamento pode ser o mais luxuoso de São Paulo, mas também é o mais sem graça. E terceiro, não aguento mais a minha rotina!
Faço uma pausa dramática para deixar minhas palavras fazerem efeito. Marta, por sua vez, parece genuinamente interessada.
— Então, o que você propõe? — ela pergunta, cruzando os braços.
— Eu preciso de um choque de realidade! De uma imersão no mundo real! De... um emprego! — exclamo, como se tivesse acabado de descobrir a cura para o câncer.
Marta arregala os olhos.
— Um emprego? Alice, você não precisa trabalhar. Sua família deixou uma fortuna para você. Você pode viver confortavelmente pelo resto da vida sem levantar um dedo.
— Eu sei, eu sei — respondo, impaciente — Mas não é sobre dinheiro, Marta. É sobre propósito! Sobre fazer algo que me faça sentir útil! Eu quero contribuir para o mundo, sabe? Além de comprar sapatos de grife e frequentar salões de beleza.
— E o que você faria? — Marta pergunta, ainda cética — Você não tem experiência em nada, a não ser gastar dinheiro.
Aquelas palavras me atingem como um balde de água fria. Ela tinha razão. Eu era uma completa inútil. Mas isso não ia me impedir.
— Eu vou descobrir! — digo, com determinação — Vou procurar algo que eu goste, algo que me desafie, algo que me faça levantar da cama todos os dias com um sorriso no rosto.
— E onde você vai procurar? — Marta pergunta, com um tom de voz que sugere que ela espera que eu desista da ideia no minuto seguinte.
— Eu não sei! — respondo, honestamente — Mas eu vou encontrar. Vou vasculhar a internet, vou perguntar para as pessoas, vou me inscrever em cursos, vou fazer o que for preciso. Eu vou achar o meu lugar no mundo, Marta. Custe o que custar.
E, pela primeira vez em muito tempo, sinto uma pontada de esperança. Talvez, só talvez, eu estivesse prestes a transformar minha vida sem graça em algo extraordinário.
Me afundo na internet, buscando por empregos. Nada! Nada que eu ache ou goste. Massageio as têmporas. Até achar um emprego era difícil assim?
Foi então que eu vi. Um anúncio de venda. Uma casinha no interior de Minas Gerais.
Abro o anúncio e começo a ler. A dona da casa estava muito idosa e os filhos a levaram para morar com eles. A casa estava vazia há alguns anos, precisaria de pequenas reformas.
As fotos da casa? Uma fofura!
É isso!
— Marta! — grito, correndo para a cozinha — Achei! Achei a solução para os nossos problemas!
Marta, que estava preparando um sanduíche, se assusta com a minha entrada repentina.
— O que foi, Alice? Aconteceu alguma coisa?
— Eu vou comprar uma casa! — exclamo, exibindo o anúncio no meu celular — No interior de Minas!
Marta franze a testa, confusa.
— Comprar uma casa? Mas por quê? Você já tem um baita apartamento aqui na Paulista.
— Eu sei, mas essa casa é diferente — respondo, com um brilho nos olhos — Ela é charmosa, aconchegante, cheia de história... E o melhor de tudo: precisa de reforma!
— Reforma? — Marta repete, horrorizada — Alice, você não sabe nem trocar uma lâmpada!
— Eu sei, mas eu posso aprender! — digo, com entusiasmo — E você pode me ajudar! Nós podemos transformar essa casa em um refúgio perfeito, longe da agitação da cidade. Podemos ter um jardim, criar galinhas, fazer geleia de frutas...
Marta me encara, incrédula.
— Você está falando sério?
— Nunca falei tão sério na minha vida! — respondo, com um sorriso radiante — Essa casa é a nossa chance de recomeçar, de mudar de vida, de encontrar a felicidade no meio do mato!
— Alice, eu posso até apoiar essa loucura, mas de longe. Eu fico por aqui e cuido do seu apartamento enquanto você vai atrás... do que quer que seja — Marta diz, com um tom firme que não admite discussão.
Faço bico.
— Martinha...
— Não adianta. Ficar ouvindo você reclamar de mosquitos? Estou fora! — ela exclama, voltando a preparar seu sanduíche.
Suspiro, derrotada. Sabia que seria difícil convencê-la a largar o conforto do apartamento.
— Tudo bem, Marta — digo, tentando soar compreensiva — Eu entendo. Mas promete que vai me visitar? E que vai me dar conselhos por telefone? E que vai cuidar do meu apartamento como se fosse seu?
Marta me olha de soslaio, com um sorriso divertido nos lábios.
— Prometo — ela diz — Mas só se você me prometer que não vai fazer nenhuma besteira. E que vai me ligar todos os dias para contar as novidades. E que vai me trazer um queijo de Minas delicioso.
— Prometo, prometo, prometo! — respondo — Você é a melhor, Marta. A melhor governanta, a melhor amiga, a melhor conselheira…
— Tá bom, tá bom — ela me interrompe, corando levemente — Já entendi. Agora vai arrumar as malas e se preparar para a vida no campo. E não se esqueça de levar repelente.
Rio, abraçando-a novamente.
— Pode deixar. Vou levar repelente, protetor solar, chapéu de palha e tudo o mais que eu precisar para sobreviver na selva.
Agora só faltava convencer o proprietário a me vender a casa, arrumar as malas e me despedir da vida de luxo em São Paulo. Ah, e talvez aprender a usar uma furadeira. Mas isso eram detalhes. O importante é que eu estava prestes a embarcar na maior aventura da minha vida. E, pela primeira vez em muito tempo, eu estava realmente animada.
Minhas malas estavam prontas, espalhadas no meio do meu apartamento, enquanto meus pais olhavam horrorizados para elas. Pareciam duas estátuas de sal, paralisadas diante do caos que se instaurou na sala de estar.— Vocês vão ficar aí parados, ou vão me ajudar a levar isso pro carro? — pergunto, sorrindo.Meus pais eram diplomatas, nascidos e criados em berço de ouro, assim como eu. Então não os julgo por estarem malucos com a ideia de eu me mudar sozinha para o interior. Afinal, qual filha de embaixador, sã, trocaria um apartamento de luxo em São Paulo por uma casa no meio do mato?— Ela ficou maluca de vez, Carlos — mamãe fala para meu pai, com a voz embargada — Primeiro compra uma casa caindo aos pedaços, depois me pede para carregar malas usando um salto!— Entendo, Diana, também estou preocupado. Será que ela bateu a cabeça? — papai responde, com um olhar preocupado.Bufo, irritada. Sério que eles achavam que eu tinha enlouquecido? Eu estava apenas buscando a felicidade, e eles
Três horas depois, aqui estava eu, parada em frente à tal "casinha fofa" do anúncio, tentando desesperadamente encontrar alguma semelhança com a imagem idealizada que eu tinha criado na minha cabeça.— Algumas reformas — Murmurei o que dizia o anúncio.Precisava era derrubar e construir de novo, isso sim!A "casinha" era, na verdade, uma construção de madeira pequena e desgastada, com um ar de abandono que me dava calafrios. A pintura descascada revelava um amadeirado cinzento, com pedaços lascados aqui e ali. O telhado, coberto de musgo e com algumas telhas faltando, parecia prestes a desabar a qualquer momento.A varanda, estreita e com o piso apodrecido, rangia ameaçadoramente a cada brisa que passava. As janelas, empenadas e com vidros rachados, pareciam olhos mortos me encarando. A porta da frente, de madeira maciça, estava coberta de ferrugem e com a maçaneta bamba, dando a impressão de que se abriria com um simples toque.Ao redor da casa, o jardim, que um dia devia ter sido ex
Depois de perguntar para algumas pessoas, encontro um pequeno armazém que vendia de tudo um pouco. Entro na loja e sou recebida por um senhor simpático, com um sorriso acolhedor.— Tarde, moça. Posso ajudar? — ele pergunta, com um sotaque mineiro carregado.— Boa tarde — respondo, com um sorriso — Eu preciso de uma caixa de ferramentas e de uma extensão para ligar um chuveiro.O senhor me olha com curiosidade, mas não faz perguntas. Ele me mostra uma variedade de ferramentas e extensões, e me ajuda a escolher as melhores opções.Enquanto pago pelas compras, pergunto sobre a instalação do chuveiro. O senhor me indica um eletricista da cidade, dizendo que ele era o melhor da região.— Eletricista? Eu não posso fazer isso sozinha? — pergunto, com um tom de voz desafiador.O senhor sorri, balançando a cabeça.— Moça, mexer com eletricidade não é brincadeira. É melhor deixar para quem entende do assunto.Suspiro, derrotada. Sabia que ele estava certo, mas não queria depender de ninguém.
Água quente! Pelo menos isso.— Obrigada — agradeci ao caipira entojado que não havia dito uma palavra gentil desde que apareceu — ou melhor, agradeça ao seu pai!Cruzei os braços enquanto ele revirava os olhos, guardando as ferramentas de volta para a caixa. Zeca limpou as gotículas de suor em seu rosto, e eu não pude deixar de notar o quão bronzeada estava sua pele. Um bronzeado de quem trabalha duro sob o sol, não como o meu, conquistado em sessões de solário e protetor solar fator 50.— Olha só, dona, conheço bem seu tipinho. Menina de cidade que fica entediada e quer vir em busca de aventura, mas não fica com esse pensamento de querer fazer as coisas sozinhas, que você vai só se lascar
Fui até a cozinha e cortei uma fatia generosa do bolo de fubá, acompanhada de uma xícara de chá. Sentei-me na varanda e observei o céu estrelado, tentando identificar as constelações que meus avós haviam me ensinado quando eu era criança.Estava admirando o céu, quando de repente, sou brutalmente atacada.Penas, unhas, cacarejos e bicadas.Gritei, pulando da varanda como se minha vida dependesse disso (e talvez dependesse, considerando a fúria da criatura).Uma galinha. Uma galinha gigante e furiosa, com o olhar fixo em mim e uma determinação assustadora em seus cacarejos. Ela avançava em minha direção, como se eu fosse a personificação de todos o
O galo cantou. De novo. E de novo.Afundei o rosto no travesseiro, soltando um grunhido indignado contra a "criatura de penas" que, aparentemente, havia decidido que seu propósito na vida era me atormentar. Quem acorda assim? Quem, em sã consciência, acha que é uma boa ideia começar o dia berrando para os quatro ventos? Esse galo precisava rever suas escolhas.Soltei um suspiro dramático e virei de barriga para cima, encarando o teto com aquele olhar perdido de quem ainda não aceitou o fato de que precisa levantar. Havia tanto para fazer… Tanta coisa para consertar, remendar, pregar e – dependendo do meu talento com ferramentas – possivelmente destruir ainda mais. Essa casinha era meu novo lar, mas, no momento, parecia mais um projeto de sobrevivência do que qualquer outra coisa.E eu precisaria de ajuda. Mas isso era um problema para a Alice do futuro. A Alice do presente tinha prioridades mais urgentes, como, por exemplo, um café da manhã gigantesco, digno de uma heroína que estava
Dirigir pelo interior era uma experiência curiosa. Diferente da selva de pedra que eu deixei para trás, aqui as ruas eram estreitas, como se cada pedaço da cidade tivesse sido construído para acomodar conversas na calçada e encontros casuais entre vizinhos que se conheciam pelo nome há gerações.Ao entrar no centro da cidade, reduzi a velocidade, observando o cenário ao meu redor. As casas eram pequenas, com fachadas coloridas que variavam entre tons vibrantes de amarelo, azul e verde, algumas com portas de madeira antigas e janelas decoradas com cortinas rendadas. Quase todas tinham vasos de flores nas sacadas ou jardineiras na entrada, como se fosse lei ter um mínimo de charme natural.As ruas de paralelepípedo faziam meu carro trepidar levemente, me lembrando que aqui as coisas tinham outro ritmo – mais devagar, sem pressa, como se o tempo tivesse aprendido a caminhar em vez de correr. Nas calçadas, senhorinhas conversavam enquanto equilibravam sacolas de feira, e um grupo de crian
O plano era simples: entrar no mercado, pegar o que eu precisava e sair. Mas eu tinha esquecido de um pequeno detalhe…Dona Gertrudes.A mulher era praticamente uma celebridade local.Mal tínhamos saído da padaria e já fomos paradas três vezes antes mesmo de atravessar a rua.— Gertrudes, minha fia! Cê viu que o Zeca perdeu uma vaca? — Um senhorzinho de chapéu e bigode branco perguntou, parecendo realmente chocado com a notícia.Eu arregalei os olhos. Zeca perdeu uma vaca?!— Ah, mas achou já, Ubaldo. Foi só a bicha querer dar um rolê.— Eita, mas é cada coisa… — O tal do Ubaldo balançou a cabeça e olhou pra mim como se só agora tivesse notado minha existência. — E essa moça bonita aí?Dona Gertrudes sorriu e me cutucou.— Essa aqui é a Alice, minha nova vizinha! Veio da cidade grande pra aprender a ser gente.— Oi? — Pisquei, indignada. Eu já sou gente, obrigada.Mas ninguém pareceu me ouvir, porque Ubaldo já estava puxando outra conversa sobre a previsão do tempo e como as formigas