Dirigir pelo interior era uma experiência curiosa. Diferente da selva de pedra que eu deixei para trás, aqui as ruas eram estreitas, como se cada pedaço da cidade tivesse sido construído para acomodar conversas na calçada e encontros casuais entre vizinhos que se conheciam pelo nome há gerações.Ao entrar no centro da cidade, reduzi a velocidade, observando o cenário ao meu redor. As casas eram pequenas, com fachadas coloridas que variavam entre tons vibrantes de amarelo, azul e verde, algumas com portas de madeira antigas e janelas decoradas com cortinas rendadas. Quase todas tinham vasos de flores nas sacadas ou jardineiras na entrada, como se fosse lei ter um mínimo de charme natural.As ruas de paralelepípedo faziam meu carro trepidar levemente, me lembrando que aqui as coisas tinham outro ritmo – mais devagar, sem pressa, como se o tempo tivesse aprendido a caminhar em vez de correr. Nas calçadas, senhorinhas conversavam enquanto equilibravam sacolas de feira, e um grupo de crian
O plano era simples: entrar no mercado, pegar o que eu precisava e sair. Mas eu tinha esquecido de um pequeno detalhe…Dona Gertrudes.A mulher era praticamente uma celebridade local.Mal tínhamos saído da padaria e já fomos paradas três vezes antes mesmo de atravessar a rua.— Gertrudes, minha fia! Cê viu que o Zeca perdeu uma vaca? — Um senhorzinho de chapéu e bigode branco perguntou, parecendo realmente chocado com a notícia.Eu arregalei os olhos. Zeca perdeu uma vaca?!— Ah, mas achou já, Ubaldo. Foi só a bicha querer dar um rolê.— Eita, mas é cada coisa… — O tal do Ubaldo balançou a cabeça e olhou pra mim como se só agora tivesse notado minha existência. — E essa moça bonita aí?Dona Gertrudes sorriu e me cutucou.— Essa aqui é a Alice, minha nova vizinha! Veio da cidade grande pra aprender a ser gente.— Oi? — Pisquei, indignada. Eu já sou gente, obrigada.Mas ninguém pareceu me ouvir, porque Ubaldo já estava puxando outra conversa sobre a previsão do tempo e como as formigas
Sorri educadamente para o senhorzinho atrás do balcão assim que nos aproximamos, mas, como era de se esperar, Dona Gertrudes tomou a frente antes que eu dissesse qualquer coisa.— E aí, seu Evaldo, como vão as coisas?— Melhor agora, Dona Gertrudes! E essa moça aí? — ele apontou para mim com um sorriso simpático. — Deu certo o chuveiro que levou?Assenti, cruzando os braços.— Deu sim! Agora só falta consertar o resto da casa. Coisa pouca, só umas paredes que precisam de reforço, um telhado meio duvidoso, umas portas que não fecham direito…Seu Evaldo riu.— Ah, então cê tá praticamente morando numa casa de papelão.— Olha, não queria admitir, mas às vezes parece mesmo.Dona Gertrudes deu um tapinha no meu braço.— Eu falei que cê não ia dar conta sozinha! Mas vamos lá, seu Evaldo, vê aí umas ferramentas boas pra essa menina não derrubar o teto na cabeça.Ele coçou o queixo, me analisando como quem tentava decidir se eu era uma cliente determinada ou apenas uma maluca com uma marreta.
Depois do pequeno sermão de Seu Evaldo sobre ferramentas e da teoria conspiratória de Dona Gertrudes sobre meu livro envolvendo cowboys — o que definitivamente não iria acontecer —, seguimos para o restante das compras.Se eu achava que o mercado tinha sido uma experiência intensa, eu estava enganada.Andar pelo centro com Dona Gertrudes era como caminhar com uma celebridade. Ela conhecia todo mundo, todo mundo a conhecia, e aparentemente, a cidade toda já sabia da "moça nova que veio de São Paulo e tá reformando um chalé sozinha".— Uai, Alice! Então cê que é a escritora? Vai escrever sobre a nossa cidade? — Uma senhora com um avental florido perguntou, me segurando pelo braço antes que eu pudesse escapar.— Hmmm… talvez?— Mas é romance ou mistério? Porque se for mistério, tem que contar da lenda do Chico sem sombra!— Do… do quê?Dona Gertrudes acenou para a senhora e me puxou pelo braço antes que eu fosse arrastada para uma história maluca de assombração.— Depois eu te conto. Se
Eu sempre achei que assistir a um monte de episódios de Irmãos à Obra me tornava, no mínimo, semi-profissional na arte da reforma. Afinal, como poderia ser tão difícil? Você pega umas ferramentas, dá umas marteladas aqui, passa um pouco de massa ali, pronto.Doce ilusão.Comecei organizando minhas compras. O que significava que eu basicamente joguei tudo em um canto da cozinha e decidi fingir que estava organizado.Prioridades.A primeira coisa que precisava de atenção era a janela da sala. Ela estava meio emperrada, rangendo como se estivesse gritando de dor toda vez que eu tentava abrir. Peguei minha nova chave de fenda e me aproximei com a confiança de quem não faz ideia do que está fazendo.— Ok, garota. Você consegue. É só desmontar, passar um óleo, montar de novo.Afrouxei alguns parafusos, empurrei a madeira… e a janela saiu inteira da parede.Fiquei parada olhando para aquilo, ainda segurando a chave de fenda, me perguntando se tinha como colar de volta só com força do pensame
Zeca estava ali, parado no batente da janela, concentrado em encaixar a madeira no lugar certo, e eu? Bom, eu estava parada, segurando uma caixa de pregos que ele nem tinha pedido, observando cada detalhe dele como se fosse meu trabalho.A camisa xadrez de mangas curtas estava um pouco aberta no topo, revelando um pedaço do peito bronzeado. Os músculos dos braços se flexionavam toda vez que ele levantava a janela, e eu podia ver claramente as veias sob a pele. Aquele homem definitivamente trabalhava duro.Os cabelos castanhos escapavam por baixo do chapéu surrado, um pouco mais longos do que deviam ser, caindo sobre a testa de um jeito que parecia bagunçado de propósito. Meu Deus, ele precisava urgentemente de um corte de cabelo... ou talvez não. Talvez fosse melhor deixar assim, meio rebelde, meio despreocupado.
Suspirei, olhando ao redor. O chalé, apesar de não estar exatamente perfeito, já estava habitável graças à ajuda de Zeca no dia anterior. Não tinha mais janelas despencando, o chão não rangia como se gritasse por socorro a cada passo, e eu não corria mais o risco de um armário cair sobre minha cabeça.Mas e agora?A ideia era simples: me isolar, encontrar inspiração, escrever o bendito livro. Só que, claramente, meu cérebro não estava colaborando. E sem escrever, o que mais eu poderia fazer aqui?Fui até a cozinha, enchi a terceira xícara de café da manhã – porque aparentemente, essa era minha nova personalidade – e encarei a paisagem pela janela. A calmaria do lugar me dava uma inquietação estranha.Talvez eu devesse explorar um pouco. Dar uma volta pela cidade, ver se alguma coisa me despertava criatividade. Ou talvez…Uma batida na porta me fez sair dos devaneios.— Alice, minha filha, tá viva aí dentro?Dona Gertrudes.Respirei fundo e fui abrir a porta. Ela me olhou de cima a bai
Fiquei parada na frente da minha mala — qual eu ainda não tinha desfeito completamente — olhando para as roupas como se elas fossem me dar a resposta sozinhas.O que diabos se usa em uma festa no centro de uma cidadezinha do interior? Certamente não era nada parecido com os vestidos luxuosos que eu costumava usar nas festas da elite que frequentava com meus pais. Nada de saltos absurdamente altos, nada de tecidos delicados que não podiam ver um pingo de sujeira sem estragar.Eu precisava de algo confortável, algo que não gritasse "turista perdida", mas que também não me fizesse parecer deslocada.Revirei minhas roupas e puxei uma calça jeans confortável, um pouco mais justa do que o necessário, mas nada que me deixasse desconfortável. Combinei com uma blusa branca simples, de mangas curtas, e finalizei com uma jaqueta jeans, porque, pelo que eu havia aprendido nos últimos dias, o clima por aqui podia mudar num piscar de olhos.Nos pés, dispensei qualquer tentativa de sofisticação. Se