Sorri educadamente para o senhorzinho atrás do balcão assim que nos aproximamos, mas, como era de se esperar, Dona Gertrudes tomou a frente antes que eu dissesse qualquer coisa.— E aí, seu Evaldo, como vão as coisas?— Melhor agora, Dona Gertrudes! E essa moça aí? — ele apontou para mim com um sorriso simpático. — Deu certo o chuveiro que levou?Assenti, cruzando os braços.— Deu sim! Agora só falta consertar o resto da casa. Coisa pouca, só umas paredes que precisam de reforço, um telhado meio duvidoso, umas portas que não fecham direito…Seu Evaldo riu.— Ah, então cê tá praticamente morando numa casa de papelão.— Olha, não queria admitir, mas às vezes parece mesmo.Dona Gertrudes deu um tapinha no meu braço.— Eu falei que cê não ia dar conta sozinha! Mas vamos lá, seu Evaldo, vê aí umas ferramentas boas pra essa menina não derrubar o teto na cabeça.Ele coçou o queixo, me analisando como quem tentava decidir se eu era uma cliente determinada ou apenas uma maluca com uma marreta.
Depois do pequeno sermão de Seu Evaldo sobre ferramentas e da teoria conspiratória de Dona Gertrudes sobre meu livro envolvendo cowboys — o que definitivamente não iria acontecer —, seguimos para o restante das compras.Se eu achava que o mercado tinha sido uma experiência intensa, eu estava enganada.Andar pelo centro com Dona Gertrudes era como caminhar com uma celebridade. Ela conhecia todo mundo, todo mundo a conhecia, e aparentemente, a cidade toda já sabia da "moça nova que veio de São Paulo e tá reformando um chalé sozinha".— Uai, Alice! Então cê que é a escritora? Vai escrever sobre a nossa cidade? — Uma senhora com um avental florido perguntou, me segurando pelo braço antes que eu pudesse escapar.— Hmmm… talvez?— Mas é romance ou mistério? Porque se for mistério, tem que contar da lenda do Chico sem sombra!— Do… do quê?Dona Gertrudes acenou para a senhora e me puxou pelo braço antes que eu fosse arrastada para uma história maluca de assombração.— Depois eu te conto. Se
Eu sempre achei que assistir a um monte de episódios de Irmãos à Obra me tornava, no mínimo, semi-profissional na arte da reforma. Afinal, como poderia ser tão difícil? Você pega umas ferramentas, dá umas marteladas aqui, passa um pouco de massa ali, pronto.Doce ilusão.Comecei organizando minhas compras. O que significava que eu basicamente joguei tudo em um canto da cozinha e decidi fingir que estava organizado.Prioridades.A primeira coisa que precisava de atenção era a janela da sala. Ela estava meio emperrada, rangendo como se estivesse gritando de dor toda vez que eu tentava abrir. Peguei minha nova chave de fenda e me aproximei com a confiança de quem não faz ideia do que está fazendo.— Ok, garota. Você consegue. É só desmontar, passar um óleo, montar de novo.Afrouxei alguns parafusos, empurrei a madeira… e a janela saiu inteira da parede.Fiquei parada olhando para aquilo, ainda segurando a chave de fenda, me perguntando se tinha como colar de volta só com força do pensame
Zeca estava ali, parado no batente da janela, concentrado em encaixar a madeira no lugar certo, e eu? Bom, eu estava parada, segurando uma caixa de pregos que ele nem tinha pedido, observando cada detalhe dele como se fosse meu trabalho.A camisa xadrez de mangas curtas estava um pouco aberta no topo, revelando um pedaço do peito bronzeado. Os músculos dos braços se flexionavam toda vez que ele levantava a janela, e eu podia ver claramente as veias sob a pele. Aquele homem definitivamente trabalhava duro.Os cabelos castanhos escapavam por baixo do chapéu surrado, um pouco mais longos do que deviam ser, caindo sobre a testa de um jeito que parecia bagunçado de propósito. Meu Deus, ele precisava urgentemente de um corte de cabelo... ou talvez não. Talvez fosse melhor deixar assim, meio rebelde, meio despreocupado.
Suspirei, olhando ao redor. O chalé, apesar de não estar exatamente perfeito, já estava habitável graças à ajuda de Zeca no dia anterior. Não tinha mais janelas despencando, o chão não rangia como se gritasse por socorro a cada passo, e eu não corria mais o risco de um armário cair sobre minha cabeça.Mas e agora?A ideia era simples: me isolar, encontrar inspiração, escrever o bendito livro. Só que, claramente, meu cérebro não estava colaborando. E sem escrever, o que mais eu poderia fazer aqui?Fui até a cozinha, enchi a terceira xícara de café da manhã – porque aparentemente, essa era minha nova personalidade – e encarei a paisagem pela janela. A calmaria do lugar me dava uma inquietação estranha.Talvez eu devesse explorar um pouco. Dar uma volta pela cidade, ver se alguma coisa me despertava criatividade. Ou talvez…Uma batida na porta me fez sair dos devaneios.— Alice, minha filha, tá viva aí dentro?Dona Gertrudes.Respirei fundo e fui abrir a porta. Ela me olhou de cima a bai
Fiquei parada na frente da minha mala — qual eu ainda não tinha desfeito completamente — olhando para as roupas como se elas fossem me dar a resposta sozinhas.O que diabos se usa em uma festa no centro de uma cidadezinha do interior? Certamente não era nada parecido com os vestidos luxuosos que eu costumava usar nas festas da elite que frequentava com meus pais. Nada de saltos absurdamente altos, nada de tecidos delicados que não podiam ver um pingo de sujeira sem estragar.Eu precisava de algo confortável, algo que não gritasse "turista perdida", mas que também não me fizesse parecer deslocada.Revirei minhas roupas e puxei uma calça jeans confortável, um pouco mais justa do que o necessário, mas nada que me deixasse desconfortável. Combinei com uma blusa branca simples, de mangas curtas, e finalizei com uma jaqueta jeans, porque, pelo que eu havia aprendido nos últimos dias, o clima por aqui podia mudar num piscar de olhos.Nos pés, dispensei qualquer tentativa de sofisticação. Se
As ruas de paralelepípedo de Monte Verde pareciam ter ganhado vida própria. Fitas coloridas cruzavam o alto das vielas, balançando com a brisa leve do fim de tarde. Pequenas bandeirinhas de papel tremulavam entre os postes de luz, formando um céu vibrante sobre nossas cabeças. O cheiro de comida tomava conta do ar, uma mistura deliciosa de milho assado, churros, espetinhos e um leve aroma adocicado de quentão, mesmo que a noite ainda não tivesse chegado.As barraquinhas se alinhavam lado a lado, cada uma mais convidativa que a outra. Algumas exibiam prateleiras recheadas de doces caseiros, enquanto outras tinham senhorinhas vendendo artesanato local — toalhinhas bordadas, colchas de tricô e pequenas esculturas de madeira. Ao fundo, um palco improvisado feito de tábuas rústicas já estava montado, com caixas de som posicionadas e um grupo de músicos ajeitando seus instrumentos. Vi um sanfoneiro testando os primeiros acordes, e soube que logo a festa estaria completa.A praça central era
Nos perdemos entre as barraquinhas, a música vibrando pelos paralelepípedos da praça, e a cachaça ainda zunindo levemente na minha cabeça. Era como estar dentro de um daqueles livros de romance de interior, só que com sapatos desconfortáveis e o cabelo já começando a armar por causa da umidade.— Quer pamonha, moça? — uma senhora me ofereceu com um sorriso tão gentil que, se eu dissesse não, provavelmente desrespeitaria três gerações da família dela.Aceitei. E logo em seguida, um copinho de quentão. E depois um pedacinho de bolo de fubá. E foi assim que descobri que em festas de cidade pequena, você não anda — você come, e muito.Zeca desapareceu por uns minutos, e confesso que senti falta de sua presença irritante. Ele tinha aquele jeito de “não ligo pra nada”, mas andava como se conhecesse cada centímetro daquela praça — e, provavelmente, conhecia. Quando voltou, trazia duas cadeiras de plástico equilibradas num braço.— Achei que ia desmaiar em pé — ele falou, me entregando uma e