Fui até a cozinha e cortei uma fatia generosa do bolo de fubá, acompanhada de uma xícara de chá. Sentei-me na varanda e observei o céu estrelado, tentando identificar as constelações que meus avós haviam me ensinado quando eu era criança.
Estava admirando o céu, quando de repente, sou brutalmente atacada.
Penas, unhas, cacarejos e bicadas.
Gritei, pulando da varanda como se minha vida dependesse disso (e talvez dependesse, considerando a fúria da criatura).
Uma galinha. Uma galinha gigante e furiosa, com o olhar fixo em mim e uma determinação assustadora em seus cacarejos. Ela avançava em minha direção, como se eu fosse a personificação de todos os seus piores pesadelos.
— Sai pra lá, Satanás emplumado! — Tentei me defender, acenando com os braços e chutando o ar, mas a galinha não se intimidava. Pelo contrário, parecia ainda mais irritada.
Corri em direção à porta da casa, desesperada por um lugar seguro. A galinha me perseguia implacavelmente, bicando meus tornozelos e cacarejando furiosamente.
Finalmente, consegui alcançar a porta e me joguei para dentro, fechando-a com um estrondo. Encostei-me na porta, ofegante e com o coração batendo forte.
— Ufa... essa foi por pouco — murmurei, tentando recuperar o fôlego.
Olhei para a porta, esperando que a galinha desistisse e fosse embora. Mas, para meu horror, ela começou a bicar a porta com ainda mais fúria, como se estivesse determinada a derrubá-la.
— Ah, não, você não vai entrar! — Gritei, juntando toda a minha coragem e empurrando a porta com força.
A galinha continuou bicando e arranhando a porta, mas eu consegui mantê-la fechada. Depois de alguns minutos de luta, a galinha finalmente desistiu e se afastou, cacarejando de frustração.
Sentei-me no chão, exausta e tremendo. O que tinha acabado de acontecer? Por que aquela galinha estava tão furiosa comigo? Será que eu tinha feito algo para ofendê-la?
De repente, ouvi uma risada vindo de fora. Espiei pela fresta da porta, era Zeca.
— Tá tudo bem aí? — ele perguntou, com a voz cheia de diversão. — Parece que você teve um encontro nada amigável com a Giselda.
— Giselda? — repeti, incrédula. — Você está falando daquela galinha assassina?
Zeca riu ainda mais.
— A Giselda não é assassina. Ela só é um pouco territorial. E parece que você invadiu o território dela.
— Territorial? Ela tentou me matar! — exclamei, indignada.
— Calma, Dona. Ela só estava te dando as boas-vindas. Do jeito dela, é claro — ele respondeu, ainda rindo.
Revirei os olhos. Era claro que Zeca estava se divertindo com a minha desgraça.
— Muito engraçado, Zeca — falei, sarcástica. — Mas afinal, o que você está fazendo aqui?
— Encontrei a Dona Gertrudes e ela me pediu pra vir olhar o trinco da sua porta — seu sorriso sumiu, voltando a ser o carrasco que é — Eu até reclamaria que você podia ter pedido isso antes de eu ir embora mais cedo, mas a visão de você com a galinha mãe da fazenda da Dona Gertrudes já me basta.
Senti minhas bochechas corarem novamente. Ótimo, agora ele ia me zoar para sempre por causa daquele ataque de fúria emplumada.
— Ah, qual é, Zeca? Não precisa fazer piada. Não é todo dia que se é atacada por uma galinha psicótica.
Ele soltou uma risada abafada, mas dessa vez não parecia tão maliciosa.
— Eu sei, eu sei. Desculpa. Mas você tem que admitir, a cena foi hilária.
Revirei os olhos, mas não consegui evitar um sorriso. Ok, talvez a cena tivesse sido um pouco engraçada. Vista de fora, é claro.
— Tá, talvez tenha sido um pouco engraçada. Mas ainda acho que aquela galinha precisa de terapia.
— Ela só estava protegendo os pintinhos dela, Alice — Ele apontou para onde à galinha estava agora, cercada de miniaturas coloridas. — Você tem que entender o instinto materno.
— Instinto materno? Aquilo era puro ódio! — exclamei — E que culpa eu tenho dela vir ciscar na minha varanda?
Zeca riu novamente e se aproximou da porta, examinando o trinco.
— Deixa eu ver isso aqui. Não deve ser nada demais.
Ele pegou algumas ferramentas da minha caixa que ainda estava no mesmo lugar que ele deixou e começou a trabalhar no trinco. Observei-o em silêncio, admirando a maneira como ele manuseava as ferramentas com habilidade e precisão. Seus músculos se contraíam sob a camisa xadrez enquanto ele se concentrava no trabalho.
De repente, percebi que estava olhando para Zeca de uma forma diferente. Não como o caipira ranzinza que me irritava, mas como um homem forte, habilidoso e... atraente.
Balancei a cabeça para afastar esses pensamentos. Não podia estar me sentindo atraída pelo Zeca, esse caipira brutamontes. Ele era o completo oposto de tudo o que eu sempre procurei em um homem. Ele era rude, simples e vivia no meio do mato. Eu era sofisticada, urbana e ambiciosa. Não tínhamos nada em comum.
Mas, apesar de todas as minhas objeções, não consegui evitar o calor que subia pelo meu corpo quando ele se aproximou para me mostrar o trinco consertado.
— Pronto — ele disse, com um sorriso orgulhoso. — Agora você pode dormir tranquila, sem medo de ser atacada por nenhuma galinha.
— Obrigada, Zeca — respondi, tentando manter a voz firme. — Eu realmente aprecio isso.
— Não foi nada — ele disse, guardando as ferramentas. — Mas, por precaução, da próxima vez que você for passear pelo quintal, leva um pedaço de pão com você. A Giselda adora pão.
Ri da sugestão.
— Vou tentar — falei, sorrindo. — E, Zeca... obrigada por ter vindo me ajudar. Eu sei que você não precisava ter feito isso.
Ele me olhou nos olhos por um momento, e senti meu coração acelerar.
— Não tem problema, Alice. Eu só... não queria que você ficasse com medo de ficar aqui sozinha assim como à Dona Gertrudes também não queria.
E, com um último sorriso de canto, Zeca se virou e foi embora, me deixando ali, parada na varanda.
Agora com uma casa limpa, um banheiro com água quente e uma porta que tranca direito, posso avisar a minha família que está tudo bem.
Peguei meu celular, torcendo para ter sinal, um pontinho de rede era suficiente para uma mensagem, mas já fiz uma nota mental para ir atrás de um roteador Wi-Fi.
Abri o grupo da família no W******p e comecei a digitar:
"Oi, pessoal! Cheguei bem, a casa é uma graça (apesar de um pouco empoeirada) e já fiz amizade com uma galinha psicótica. Mas, tirando isso, tudo perfeito! Beijos, amo vocês!"
O galo cantou. De novo. E de novo.Afundei o rosto no travesseiro, soltando um grunhido indignado contra a "criatura de penas" que, aparentemente, havia decidido que seu propósito na vida era me atormentar. Quem acorda assim? Quem, em sã consciência, acha que é uma boa ideia começar o dia berrando para os quatro ventos? Esse galo precisava rever suas escolhas.Soltei um suspiro dramático e virei de barriga para cima, encarando o teto com aquele olhar perdido de quem ainda não aceitou o fato de que precisa levantar. Havia tanto para fazer… Tanta coisa para consertar, remendar, pregar e – dependendo do meu talento com ferramentas – possivelmente destruir ainda mais. Essa casinha era meu novo lar, mas, no momento, parecia mais um projeto de sobrevivência do que qualquer outra coisa.E eu precisaria de ajuda. Mas isso era um problema para a Alice do futuro. A Alice do presente tinha prioridades mais urgentes, como, por exemplo, um café da manhã gigantesco, digno de uma heroína que estava
Dirigir pelo interior era uma experiência curiosa. Diferente da selva de pedra que eu deixei para trás, aqui as ruas eram estreitas, como se cada pedaço da cidade tivesse sido construído para acomodar conversas na calçada e encontros casuais entre vizinhos que se conheciam pelo nome há gerações.Ao entrar no centro da cidade, reduzi a velocidade, observando o cenário ao meu redor. As casas eram pequenas, com fachadas coloridas que variavam entre tons vibrantes de amarelo, azul e verde, algumas com portas de madeira antigas e janelas decoradas com cortinas rendadas. Quase todas tinham vasos de flores nas sacadas ou jardineiras na entrada, como se fosse lei ter um mínimo de charme natural.As ruas de paralelepípedo faziam meu carro trepidar levemente, me lembrando que aqui as coisas tinham outro ritmo – mais devagar, sem pressa, como se o tempo tivesse aprendido a caminhar em vez de correr. Nas calçadas, senhorinhas conversavam enquanto equilibravam sacolas de feira, e um grupo de crian
O plano era simples: entrar no mercado, pegar o que eu precisava e sair. Mas eu tinha esquecido de um pequeno detalhe…Dona Gertrudes.A mulher era praticamente uma celebridade local.Mal tínhamos saído da padaria e já fomos paradas três vezes antes mesmo de atravessar a rua.— Gertrudes, minha fia! Cê viu que o Zeca perdeu uma vaca? — Um senhorzinho de chapéu e bigode branco perguntou, parecendo realmente chocado com a notícia.Eu arregalei os olhos. Zeca perdeu uma vaca?!— Ah, mas achou já, Ubaldo. Foi só a bicha querer dar um rolê.— Eita, mas é cada coisa… — O tal do Ubaldo balançou a cabeça e olhou pra mim como se só agora tivesse notado minha existência. — E essa moça bonita aí?Dona Gertrudes sorriu e me cutucou.— Essa aqui é a Alice, minha nova vizinha! Veio da cidade grande pra aprender a ser gente.— Oi? — Pisquei, indignada. Eu já sou gente, obrigada.Mas ninguém pareceu me ouvir, porque Ubaldo já estava puxando outra conversa sobre a previsão do tempo e como as formigas
Sorri educadamente para o senhorzinho atrás do balcão assim que nos aproximamos, mas, como era de se esperar, Dona Gertrudes tomou a frente antes que eu dissesse qualquer coisa.— E aí, seu Evaldo, como vão as coisas?— Melhor agora, Dona Gertrudes! E essa moça aí? — ele apontou para mim com um sorriso simpático. — Deu certo o chuveiro que levou?Assenti, cruzando os braços.— Deu sim! Agora só falta consertar o resto da casa. Coisa pouca, só umas paredes que precisam de reforço, um telhado meio duvidoso, umas portas que não fecham direito…Seu Evaldo riu.— Ah, então cê tá praticamente morando numa casa de papelão.— Olha, não queria admitir, mas às vezes parece mesmo.Dona Gertrudes deu um tapinha no meu braço.— Eu falei que cê não ia dar conta sozinha! Mas vamos lá, seu Evaldo, vê aí umas ferramentas boas pra essa menina não derrubar o teto na cabeça.Ele coçou o queixo, me analisando como quem tentava decidir se eu era uma cliente determinada ou apenas uma maluca com uma marreta.
Depois do pequeno sermão de Seu Evaldo sobre ferramentas e da teoria conspiratória de Dona Gertrudes sobre meu livro envolvendo cowboys — o que definitivamente não iria acontecer —, seguimos para o restante das compras.Se eu achava que o mercado tinha sido uma experiência intensa, eu estava enganada.Andar pelo centro com Dona Gertrudes era como caminhar com uma celebridade. Ela conhecia todo mundo, todo mundo a conhecia, e aparentemente, a cidade toda já sabia da "moça nova que veio de São Paulo e tá reformando um chalé sozinha".— Uai, Alice! Então cê que é a escritora? Vai escrever sobre a nossa cidade? — Uma senhora com um avental florido perguntou, me segurando pelo braço antes que eu pudesse escapar.— Hmmm… talvez?— Mas é romance ou mistério? Porque se for mistério, tem que contar da lenda do Chico sem sombra!— Do… do quê?Dona Gertrudes acenou para a senhora e me puxou pelo braço antes que eu fosse arrastada para uma história maluca de assombração.— Depois eu te conto. Se
Eu sempre achei que assistir a um monte de episódios de Irmãos à Obra me tornava, no mínimo, semi-profissional na arte da reforma. Afinal, como poderia ser tão difícil? Você pega umas ferramentas, dá umas marteladas aqui, passa um pouco de massa ali, pronto.Doce ilusão.Comecei organizando minhas compras. O que significava que eu basicamente joguei tudo em um canto da cozinha e decidi fingir que estava organizado.Prioridades.A primeira coisa que precisava de atenção era a janela da sala. Ela estava meio emperrada, rangendo como se estivesse gritando de dor toda vez que eu tentava abrir. Peguei minha nova chave de fenda e me aproximei com a confiança de quem não faz ideia do que está fazendo.— Ok, garota. Você consegue. É só desmontar, passar um óleo, montar de novo.Afrouxei alguns parafusos, empurrei a madeira… e a janela saiu inteira da parede.Fiquei parada olhando para aquilo, ainda segurando a chave de fenda, me perguntando se tinha como colar de volta só com força do pensame
Zeca estava ali, parado no batente da janela, concentrado em encaixar a madeira no lugar certo, e eu? Bom, eu estava parada, segurando uma caixa de pregos que ele nem tinha pedido, observando cada detalhe dele como se fosse meu trabalho.A camisa xadrez de mangas curtas estava um pouco aberta no topo, revelando um pedaço do peito bronzeado. Os músculos dos braços se flexionavam toda vez que ele levantava a janela, e eu podia ver claramente as veias sob a pele. Aquele homem definitivamente trabalhava duro.Os cabelos castanhos escapavam por baixo do chapéu surrado, um pouco mais longos do que deviam ser, caindo sobre a testa de um jeito que parecia bagunçado de propósito. Meu Deus, ele precisava urgentemente de um corte de cabelo... ou talvez não. Talvez fosse melhor deixar assim, meio rebelde, meio despreocupado.
Suspirei, olhando ao redor. O chalé, apesar de não estar exatamente perfeito, já estava habitável graças à ajuda de Zeca no dia anterior. Não tinha mais janelas despencando, o chão não rangia como se gritasse por socorro a cada passo, e eu não corria mais o risco de um armário cair sobre minha cabeça.Mas e agora?A ideia era simples: me isolar, encontrar inspiração, escrever o bendito livro. Só que, claramente, meu cérebro não estava colaborando. E sem escrever, o que mais eu poderia fazer aqui?Fui até a cozinha, enchi a terceira xícara de café da manhã – porque aparentemente, essa era minha nova personalidade – e encarei a paisagem pela janela. A calmaria do lugar me dava uma inquietação estranha.Talvez eu devesse explorar um pouco. Dar uma volta pela cidade, ver se alguma coisa me despertava criatividade. Ou talvez…Uma batida na porta me fez sair dos devaneios.— Alice, minha filha, tá viva aí dentro?Dona Gertrudes.Respirei fundo e fui abrir a porta. Ela me olhou de cima a bai