Água quente! Pelo menos isso.
— Obrigada — agradeci ao caipira entojado que não havia dito uma palavra gentil desde que apareceu — ou melhor, agradeça ao seu pai!
Cruzei os braços enquanto ele revirava os olhos, guardando as ferramentas de volta para a caixa. Zeca limpou as gotículas de suor em seu rosto, e eu não pude deixar de notar o quão bronzeada estava sua pele. Um bronzeado de quem trabalha duro sob o sol, não como o meu, conquistado em sessões de solário e protetor solar fator 50.
— Olha só, dona, conheço bem seu tipinho. Menina de cidade que fica entediada e quer vir em busca de aventura, mas não fica com esse pensamento de querer fazer as coisas sozinhas, que você vai só se lascar.
— Primeiro, meu nome é Alice. Segundo, não sou dona. Terceiro, não estou entediada, estou aqui para um propósito. E quarto, acho que consigo me virar muito bem sozinha, obrigada.
Ele soltou uma risada que soou mais como um relincho.
— Ah, vai mesmo? Quero só ver você tentando trocar uma telha desse seu telhado despedaçado. Vai sair correndo no primeiro mosquito!
— Eu não tenho medo de mosquitos! — retruquei, sentindo minhas bochechas esquentarem. Ok, talvez eu tivesse um pouco de medo de mosquitos. E de aranhas. E de qualquer inseto que fizesse "zum".
— Sei... E essa sua roupinha aí? — Zeca apontou para meu look "aventureira chic", composto por uma calça cáqui de grife e uma camisa de linho que custou mais caro que a caixa de ferramentas. — Muito apropriada para o mato.
Olhei para minhas roupas e bufei. Ok, talvez eu não tivesse me vestido da maneira mais adequada para a vida no campo. Mas quem imaginaria que a fazenda seria tão... rural?
— Eu posso trocar de roupa, sabia? E só para constar, eu tenho um diploma em letras, então acho que sou capaz de aprender algumas coisas por aqui.
Zeca arqueou as sobrancelhas, claramente não convencido.
— Ah, é? Então me diga, senhorita Diploma, qual a diferença entre um boi e um touro?
Senti meu cérebro dar um nó. Boi... touro... ambos têm chifres, certo?
— Hum... um é... mais peludo?
Zeca gargalhou, e dessa vez o som foi um pouco mais agradável. Quase.
— Essa foi boa, Dona. Mas fica tranquila, vou te dar um desconto por ser turista. Só não espere que eu pegue leve com você o tempo todo.
Ele então começou a se afastar.
— E, só para você saber, a diferença é que o touro tem testosterona e o boi, não.
Zeca me deixou plantada ali, fervendo de raiva e um pouco envergonhada pela minha ignorância campestre. Cruzei os braços novamente e observei-o se afastar, com seu andar confiante e um sorriso divertido no rosto.
— Idiota— murmurei para mim mesma.
Mas, no fundo, uma vozinha insistia em dizer que talvez, só talvez, eu precisasse da ajuda daquele caipira entojado para sobreviver à minha aventura no campo. E que, quem sabe, essa aventura não fosse tão desastrosa quanto parecia.
Com um banheiro minimamente decente, mesmo sendo do lado de fora da minha nova casinha campestre, comi um sanduíche que Martinha havia mandado para mim comer na viagem, e depois me ocupei em terminar as coisas básicas da casa.
Como, por exemplo... a limpeza.
Marta é um anjo na minha vida e tinha comprado tudo o que achou que eu fosse precisar. Então, peguei a caixa escrita "limpeza" e coloquei a mão na massa. É claro que antes eu troquei de roupa; não usaria uma de minhas belas calças de alfaiataria para lidar com desinfetante. Em vez disso, optei por um macacão jeans surrado que encontrei no fundo da mala - herança dos meus tempos de "artista" (leia-se: tentativa frustrada de ser cool na faculdade).
Enquanto encarava a poeira acumulada nos móveis, suspirei. A última vez que tinha limpado algo além da minha tela de celular, provavelmente, foi quando minha mãe me obrigou a lavar a louça depois de uma festa. Mas, ei, eu estava determinada a fazer isso dar certo. Vida nova, casa nova, eu nova. Ou pelo menos, uma versão minha que não entra em pânico ao ver uma aranha.
Coloquei uma música animada para dar um gás e abri a caixa de produtos de limpeza. Marta não economizou! Tinha de tudo: desinfetante com cheiro de lavanda, limpa vidros, lustra móveis, esponjas coloridas e até um daqueles espanadores de pena que pareciam ter saído diretamente de um filme antigo. Quase chorei quando vi ali um mini aspirador de mão, aquilo salvaria à minha vida!
Comecei pela sala, tirando o pó dos móveis e aspirando o carpete empoeirado. Confesso que até achei divertido, pelo menos nos primeiros dez minutos. Logo, meus braços começaram a doer e o suor escorria pela minha testa. Limpar era definitivamente mais cansativo do que parecia.
Enquanto lutava com uma mancha persistente no chão da cozinha, ouvi uma batida na porta. Quem seria? Será que Zeca tinha vindo zombar da minha falta de jeito com a faxina também?
Larguei o esfregão e fui atender, já preparada para uma possível discussão. Para minha surpresa, não era o caipira ranzinza que estava parado na varanda, mas sim uma senhora simpática, com um sorriso acolhedor e um bolo de fubá nas mãos.
— Boa tarde, querida! Seja bem-vinda à vizinhança. Eu sou a Dona Gertrudes, moro aqui na fazenda ao lado. Trouxe um bolinho para adoçar sua chegada.
— Ah, que gentileza! — respondi, surpresa e aliviada. — Muito obrigada, Dona Gertrudes. Eu sou Alice.
— Que bom ter você por aqui, querida. Estávamos precisando de um rosto novo nestas terras.
Dona Gertrudes entrou na casa e observou a bagunça com um olhar compreensivo.
— Vejo que está se instalando. Precisa de ajuda?
— Ah, não precisa se incomodar...
— Que nada! Tenho tempo de sobra e adoro uma boa fofoca. Além disso, conheço essa casa como a palma da minha mão. Já limpei muito essa cozinha antes dos filhos da Lenir Maria à levarem para à cidade.
Antes que eu pudesse responder, Dona Gertrudes já estava arregaçando as mangas e pegando um pano de chão. Em poucos minutos, a cozinha estava brilhando e o cheiro delicioso do bolo de fubá invadia o ar.
Enquanto tomávamos um café juntas, Dona Gertrudes me contou histórias engraçadas sobre à antiga dona da casa e sobre a vida na fazenda. Descobri que ela era uma verdadeira enciclopédia ambulante sobre tudo o que acontecia na região.
— E aquele Zeca, hein? — ela comentou, com um sorriso malicioso. — Aquele menino tem um coração de ouro, apesar de ser um pouco rabugento.
— Ah, sim, o caipira entojado — resmunguei. — Digamos que não começamos com o pé direito.
Dona Gertrudes riu.
— Zeca é um bom rapaz, querida. Só precisa de alguém que o coloque na linha. Quem sabe você não seja essa pessoa?
Corei com a sugestão. Eu? Colocar Zeca na linha? Aquilo era tão improvável quanto eu aprender a ordenhar uma vaca.
Mas, enquanto observava o pôr do sol alaranjado através da janela, senti um calorzinho no coração. Talvez a vida no campo não fosse tão ruim assim. Talvez, com a ajuda de Dona Gertrudes e, quem sabe, até do caipira entojado, eu pudesse encontrar meu lugar naquele paraíso rural.
— Dona G, eu não sei nem como agradecê-la pela ajuda — falei ao levá-la até a porta.
— Égua, precisa agradecer não.
E só então percebi que "égua" não era um xingamento, e sim uma expressão da região. Senti minhas bochechas corarem levemente. Típico de mim, a garota da cidade, interpretar tudo ao pé da letra.
— Boa noite, Dona G.
— Boa noite, minha filha. E qualquer coisa, grita! A casa é pertinho.
Dona Gertrudes se foi, deixando para trás o aroma delicioso do bolo de fubá e uma sensação estranha de acolhimento. Fechei a porta e me encostei nela, suspirando. Quem diria que, em tão pouco tempo, eu já estaria me sentindo um pouco menos deslocada?
Olhei ao redor para a casa limpa e organizada, e um sorriso se formou em meus lábios. Talvez, só talvez, eu pudesse realmente me adaptar à vida no campo. E talvez, com a ajuda de pessoas como Dona Gertrudes, eu pudesse até gostar disso.
Fui até a cozinha e cortei uma fatia generosa do bolo de fubá, acompanhada de uma xícara de chá. Sentei-me na varanda e observei o céu estrelado, tentando identificar as constelações que meus avós haviam me ensinado quando eu era criança.Estava admirando o céu, quando de repente, sou brutalmente atacada.Penas, unhas, cacarejos e bicadas.Gritei, pulando da varanda como se minha vida dependesse disso (e talvez dependesse, considerando a fúria da criatura).Uma galinha. Uma galinha gigante e furiosa, com o olhar fixo em mim e uma determinação assustadora em seus cacarejos. Ela avançava em minha direção, como se eu fosse a personificação de todos o
O galo cantou. De novo. E de novo.Afundei o rosto no travesseiro, soltando um grunhido indignado contra a "criatura de penas" que, aparentemente, havia decidido que seu propósito na vida era me atormentar. Quem acorda assim? Quem, em sã consciência, acha que é uma boa ideia começar o dia berrando para os quatro ventos? Esse galo precisava rever suas escolhas.Soltei um suspiro dramático e virei de barriga para cima, encarando o teto com aquele olhar perdido de quem ainda não aceitou o fato de que precisa levantar. Havia tanto para fazer… Tanta coisa para consertar, remendar, pregar e – dependendo do meu talento com ferramentas – possivelmente destruir ainda mais. Essa casinha era meu novo lar, mas, no momento, parecia mais um projeto de sobrevivência do que qualquer outra coisa.E eu precisaria de ajuda. Mas isso era um problema para a Alice do futuro. A Alice do presente tinha prioridades mais urgentes, como, por exemplo, um café da manhã gigantesco, digno de uma heroína que estava
Dirigir pelo interior era uma experiência curiosa. Diferente da selva de pedra que eu deixei para trás, aqui as ruas eram estreitas, como se cada pedaço da cidade tivesse sido construído para acomodar conversas na calçada e encontros casuais entre vizinhos que se conheciam pelo nome há gerações.Ao entrar no centro da cidade, reduzi a velocidade, observando o cenário ao meu redor. As casas eram pequenas, com fachadas coloridas que variavam entre tons vibrantes de amarelo, azul e verde, algumas com portas de madeira antigas e janelas decoradas com cortinas rendadas. Quase todas tinham vasos de flores nas sacadas ou jardineiras na entrada, como se fosse lei ter um mínimo de charme natural.As ruas de paralelepípedo faziam meu carro trepidar levemente, me lembrando que aqui as coisas tinham outro ritmo – mais devagar, sem pressa, como se o tempo tivesse aprendido a caminhar em vez de correr. Nas calçadas, senhorinhas conversavam enquanto equilibravam sacolas de feira, e um grupo de crian
O plano era simples: entrar no mercado, pegar o que eu precisava e sair. Mas eu tinha esquecido de um pequeno detalhe…Dona Gertrudes.A mulher era praticamente uma celebridade local.Mal tínhamos saído da padaria e já fomos paradas três vezes antes mesmo de atravessar a rua.— Gertrudes, minha fia! Cê viu que o Zeca perdeu uma vaca? — Um senhorzinho de chapéu e bigode branco perguntou, parecendo realmente chocado com a notícia.Eu arregalei os olhos. Zeca perdeu uma vaca?!— Ah, mas achou já, Ubaldo. Foi só a bicha querer dar um rolê.— Eita, mas é cada coisa… — O tal do Ubaldo balançou a cabeça e olhou pra mim como se só agora tivesse notado minha existência. — E essa moça bonita aí?Dona Gertrudes sorriu e me cutucou.— Essa aqui é a Alice, minha nova vizinha! Veio da cidade grande pra aprender a ser gente.— Oi? — Pisquei, indignada. Eu já sou gente, obrigada.Mas ninguém pareceu me ouvir, porque Ubaldo já estava puxando outra conversa sobre a previsão do tempo e como as formigas
Sorri educadamente para o senhorzinho atrás do balcão assim que nos aproximamos, mas, como era de se esperar, Dona Gertrudes tomou a frente antes que eu dissesse qualquer coisa.— E aí, seu Evaldo, como vão as coisas?— Melhor agora, Dona Gertrudes! E essa moça aí? — ele apontou para mim com um sorriso simpático. — Deu certo o chuveiro que levou?Assenti, cruzando os braços.— Deu sim! Agora só falta consertar o resto da casa. Coisa pouca, só umas paredes que precisam de reforço, um telhado meio duvidoso, umas portas que não fecham direito…Seu Evaldo riu.— Ah, então cê tá praticamente morando numa casa de papelão.— Olha, não queria admitir, mas às vezes parece mesmo.Dona Gertrudes deu um tapinha no meu braço.— Eu falei que cê não ia dar conta sozinha! Mas vamos lá, seu Evaldo, vê aí umas ferramentas boas pra essa menina não derrubar o teto na cabeça.Ele coçou o queixo, me analisando como quem tentava decidir se eu era uma cliente determinada ou apenas uma maluca com uma marreta.
Depois do pequeno sermão de Seu Evaldo sobre ferramentas e da teoria conspiratória de Dona Gertrudes sobre meu livro envolvendo cowboys — o que definitivamente não iria acontecer —, seguimos para o restante das compras.Se eu achava que o mercado tinha sido uma experiência intensa, eu estava enganada.Andar pelo centro com Dona Gertrudes era como caminhar com uma celebridade. Ela conhecia todo mundo, todo mundo a conhecia, e aparentemente, a cidade toda já sabia da "moça nova que veio de São Paulo e tá reformando um chalé sozinha".— Uai, Alice! Então cê que é a escritora? Vai escrever sobre a nossa cidade? — Uma senhora com um avental florido perguntou, me segurando pelo braço antes que eu pudesse escapar.— Hmmm… talvez?— Mas é romance ou mistério? Porque se for mistério, tem que contar da lenda do Chico sem sombra!— Do… do quê?Dona Gertrudes acenou para a senhora e me puxou pelo braço antes que eu fosse arrastada para uma história maluca de assombração.— Depois eu te conto. Se
Eu sempre achei que assistir a um monte de episódios de Irmãos à Obra me tornava, no mínimo, semi-profissional na arte da reforma. Afinal, como poderia ser tão difícil? Você pega umas ferramentas, dá umas marteladas aqui, passa um pouco de massa ali, pronto.Doce ilusão.Comecei organizando minhas compras. O que significava que eu basicamente joguei tudo em um canto da cozinha e decidi fingir que estava organizado.Prioridades.A primeira coisa que precisava de atenção era a janela da sala. Ela estava meio emperrada, rangendo como se estivesse gritando de dor toda vez que eu tentava abrir. Peguei minha nova chave de fenda e me aproximei com a confiança de quem não faz ideia do que está fazendo.— Ok, garota. Você consegue. É só desmontar, passar um óleo, montar de novo.Afrouxei alguns parafusos, empurrei a madeira… e a janela saiu inteira da parede.Fiquei parada olhando para aquilo, ainda segurando a chave de fenda, me perguntando se tinha como colar de volta só com força do pensame
Zeca estava ali, parado no batente da janela, concentrado em encaixar a madeira no lugar certo, e eu? Bom, eu estava parada, segurando uma caixa de pregos que ele nem tinha pedido, observando cada detalhe dele como se fosse meu trabalho.A camisa xadrez de mangas curtas estava um pouco aberta no topo, revelando um pedaço do peito bronzeado. Os músculos dos braços se flexionavam toda vez que ele levantava a janela, e eu podia ver claramente as veias sob a pele. Aquele homem definitivamente trabalhava duro.Os cabelos castanhos escapavam por baixo do chapéu surrado, um pouco mais longos do que deviam ser, caindo sobre a testa de um jeito que parecia bagunçado de propósito. Meu Deus, ele precisava urgentemente de um corte de cabelo... ou talvez não. Talvez fosse melhor deixar assim, meio rebelde, meio despreocupado.