De repente, me olho novamente no espelho. Vesti um traje comportado para evitar olhares curiosos, mas a verdade é que, mesmo assim, ainda me sinto sensual. Tento tirar essa sensação. Prendo um cacho rebelde para afastá-lo do rosto e solto um suspiro longo. Pronto. Está feito.
Com as mãos trêmulas, mas decidida, paro de me encarar no espelho. Visto uma blusa de linha preta, pego minha bolsa e vou para a sala. Prefiro não arriscar sair com o meu carro — meu pai pode notar. Em vez disso, ligo para a central de táxis, aliviada quando o veículo chega em poucos minutos.
O trajeto é longo. Parto da zona Norte, um bairro de classe média, para o extremo oposto na zona Sul, onde Daniel mora. É um lugar que só conheço de nome, nunca estive lá. Quando o táxi finalmente para, sinto o impacto imediato do cenário: ruas escuras, lixo espalhado, muros cobertos de pichações. O contraste me assusta, mas não o suficiente para me fazer voltar atrás.
— Tem certeza de que é aqui? — pergunta o taxista, percebendo minha hesitação.
— Sim, é aqui mesmo. Obrigada — respondo, tentando parecer confiante.
Ele oferece esperar, mas eu recuso. Pago a corrida e desço do carro. Na rua sem saída, bandeirinhas coloridas balançam ao vento, lembrança de alguma festa junina. Caixas de som tocam uma música suave de David Bowie. As mesas e cadeiras espalhadas estão vazias, mas há grupos de jovens por toda parte, todos vestidos de forma casual: jeans desgastados, camisetas soltas, minissaias. Sinto-me deslocada, uma intrusa.
Olho ao redor, tentando encontrar uma familiaridade que me acalme, mas só vejo estranhos até que finalmente o avisto. Daniel está afastado, encostado na parede de uma casa que presumo ser a dele. Ele veste um jeans folgado e, apesar do frio, está sem camisa. Seu peito tatuado exibe uma águia de asas abertas, como se estivesse prestes a atacar. Engulo em seco e quase dou meia-volta, mas ele me vê. Seus olhos se arregalam, surpresos.
Um dos rapazes do grupo começa a caminhar em minha direção, mas Daniel ergue a mão, num gesto que o faz parar de imediato. Ele solta algo dos lábios — um cigarro? Um baseado? Um palito? Não sei, mas ele vem na minha direção, e eu fico estática, sentindo meu corpo enrijecer.
— Kate? — Sua voz grave me desperta de meus pensamentos.
Antes que ele chegue mais perto, lanço um olhar rápido para seu corpo e sinto um arrepio percorrer minha espinha. Daniel pega a camiseta pendurada em seu ombro e a veste. Ele p@ra tão perto de mim que posso sentir o calor de seu corpo irradiando, me envolvendo.
— Oi, Daniel — digo, a voz quase um sussurro.
— O que está fazendo aqui? — Ele me encara com uma mistura de surpresa e desconfiança.
Levanto o queixo, tentando parecer segura de mim.
— Rose mencionou uma festa de rua. Fiquei curiosa e decidi conferir.— Eu me sinto como uma idiot@, e minha desculpa soa idiot@, parece fraca.
Ele franze o cenho, claramente cético.
—Veio atrás de erva? Algum veneno?
—Como? —Eu pergunto sem entender.
—Maconha?
Minhas bochechas aquecem e o encaro com surpresa.
—Nãooo! Por que eu viria atrás disso?
—Pessoas com uma condição melhor, como você, só vem aqui atrás disso. —Ele me avalia.
— O quê?! Claro que não! — respondo, ofendida.—Não, não uso essas coisas.
Ele solta um suspiro, balançando a cabeça.
— Então, o que está fazendo aqui, Kate?
—Já disse. Rose me falou dessa festa e curiosa vim conhecer.
—Duvido que ela tenha te convidado!
—Ela não me convidou, eu vim por curiosidade. —Explico.
—Bem já matou sua curiosidade e como viu, aqui não é lugar para você.
Eu ergo mais meu queixo.
—Por que não é lugar para mim?
Ele ri, então lambe seu lábio inferior pensativamente e meneia a cabeça.
—Olha para esse lugar, querida.
—O que tem de errado com ele?
—Você está curtindo com a minha cara, não está? Seu pai sabe que está aqui?
—Não.
—Sabia! Se não veio atrás de drogas, o que faz aqui?
Eu não respondo imediatamente. Minhas bochechas aquecem ainda mais. Ele menciona novamente drogas. Ele está metido com isso?
— Você está vendendo drogas agora? Foi por isso que largou o serviço de jardinagem?
Ele franze ainda mais o cenho, visivelmente irritado.
— Não, Kate. Estou trabalhando e estudando.
— Sério? Fazendo o quê? — minha voz carrega um tom de entusiasmo, feliz pela notícia.
Há falatórios em todos os lugares. Os rapazes se aproximam de nós. Um deles sorri para mim, seus olhos vermelhos revelam sua bebedeira.
— E aí, Daniel? Quem é a gatinha? — ele pergunta, insolente.
Daniel lança um olhar gelado para o rapaz e, num movimento inesperado, coloca a mão na minha cintura, me puxando para perto dele. Um arrepio percorre meu corpo.
— Essa é Kate, a garota com quem estou saindo.
O rapaz dá uma risada debochada, me analisando descaradamente.
— Escondendo o jogo, hein, Daniel? Nunca falou dela pra gente.
Daniel ignora o comentário, mantendo seu olhar fixo em mim.
— Quer beber alguma coisa? — ele pergunta, os olhos ainda duros, mas a voz mais suave.
— Um guaraná? — respondo, a voz saindo quase como um pedido tímido.
O rapaz ao lado gargalha.
— Guaraná? Você tá de brincadeira, princesa?
Daniel revira os olhos e, segurando minha mão, me guia para longe dali.
— Vamos sair daqui. Aqui não é lugar para você.
— Estou bem — digo, tentando soar convincente. — E meu guaraná?
Ele solta uma risada seca.
— Aqui só tem cerveja, uísque barato e coisas mais fortes. O que deu em você hoje? — Ele me encara, os olhos perfurando os meus, como se tentasse ler minha alma.
Engulo em seco, tomando coragem.
— Eu vim atrás de você, Daniel. Só queria te ver.
Ele me encara como se tivesse levado um soco no estômago.— Atrás de mim? — Ele pergunta, ainda sem entender.Demoro um pouco para responder. Tomo fôlego, sinto meu coração bater acelerado.— Sim. Quando a Rose mencionou essa festa, achei que seria uma chance de falar com você, saber como você está.Os olhos de Daniel se estreitam e uma expressão angustiada toma conta do seu rosto.— Bem, já matou sua curiosidade. Como pode ver, estou bem — ele diz, com um sorriso forçado.— O que você tem feito? — insisto, ignorando seu tom distante.Ele sorri de canto, e seus olhos deslizam lentamente dos meus olhos para os meus lábios, como se estivesse tentando decifrar o que eu realmente quero. Então ele volta a olhar para mim, mais sério.— Sério isso, Kate? — Ele questiona, levantando uma sobrancelha. — Olha, seja lá qual tenha sido sua intenção ao vir aqui, nossos mundos são bem diferentes. Dá pra ver isso no seu jeito, na sua pele macia, no seu perfume delicado. Cada detalhe diz que você não
Eu me afasto, evitando seus olhos, porque sei que, se olhar para ela agora, vou ceder novamente. Sem pensar muito, pego o capacete da moto. Colocá-lo me dá uma desculpa para esconder meu rosto, para bloquear a intensidade do olhar dela.Ligo a moto e acelero antes que possa mudar de ideia, o rugido do motor preenchendo o silêncio que deixei para trás. A estrada à minha frente é apenas uma fuga, mas não consigo escapar da sensação dela, do gosto dela, da lembrança de como ela fez o mundo inteiro desaparecer por alguns segundos.Enquanto me afasto, algo dentro de mim me diz que essa batalha está longe de terminar.Não voltei para a festa. Peguei a estrada sem destino, sem saber exatamente onde ir, até que algo me impulsionou a seguir para o Larry and Penny Thompson. Estacionei minha moto na frente do parque, tirei o capacete e o de Kate do meu braço, colocando-os no banco da moto, como se fosse possível deixar toda a confusão ali. Mas, não. A noite cai e, no silêncio, eu caminho até a p
KateDepois de uma noite mal dormida, sem conseguir afastar os pensamentos sobre Daniel, aproveito as férias da faculdade para descansar. Estou sentada na espreguiçadeira em frente ao jardim, lendo Crepúsculo. Embora o livro seja maravilhoso, minha mente está distante, perdida em lembranças daquela noite. A decisão de ir atrás de Daniel ainda ressoa dentro de mim, me deixando inquieta.À tarde, meu pai chega do trabalho. Dou-lhe um sorriso e um beijo carinhoso no rosto, e ele me abraça, beijando minha testa. Ele sempre foi assim, afetuoso, mas ao mesmo tempo distante, preso à sua própria tristeza. Mesmo com a agitação que sinto por causa de Daniel, eu disfarço. Aprendi com meu pai a esconder meus verdadeiros sentimentos, a mostrar serenidade em qualquer situação. Ele busca meus olhos, e mesmo com a ansiedade me consumindo, dou-lhe um sorriso tranquilo.Olho para ele, naquele terno negro, parecendo mais um CEO poderoso do que um simples vendedor de carros. Mas há algo em sua postura qu
Vestindo apenas um short de corrida e tênis surrados, corro pela calçada, mas o crepúsculo à minha frente passa despercebido. O céu vai escurecendo, mas nem mesmo o brilho laranja do sol se põe consegue desviar minha atenção do turbilhão que toma conta de mim. Hoje é um daqueles dias em que a inquietação me consome, como se todo o peso do mundo estivesse sobre meus ombros. Então, corro. Corro para afastar os pensamentos que não param de se amontoar, corro para afogar minhas mágoas, para exorcizar essa raiva e essa solidão que me cercam. Corro até meus músculos doerem, até os pulmões gritarem por ar.Pauso, ofegante, e apoio as mãos nas pernas, puxando o ar com força, tentando recuperar o fôlego. O calor me envolve, a camisa grudada nas costas, o suor escorrendo pelo rosto. Olho para a rua e ela parece tão vazia quanto minha alma. Não há ninguém por perto. Só o som da minha respiração pesada quebrando o silêncio da noite que começa a cair.Depois de um tempo, sigo novamente. Continuo c
Eu já esperava uma reação como a dele, mas isso não significa que não me afete. Ao vê-lo parado, estático, o seu olhar fixo em mim com aquela expressão de conflito, eu fico corada. Meus lábios se entreabrem e uma respiração ofegante escapa sem querer. Ele não se move, como se as palavras que estou prestes a dizer pesassem mais que qualquer gesto.— Você sabe o que eu quero. Você! — Minha voz sai mais suave do que eu gostaria, mas a intensidade que sinto dentro de mim me faz parecer mais vulnerável do que o normal.Daniel continua parado, com os olhos em mim, sem conseguir desviar o olhar. Ele parece tão... distante, como se estivesse em guerra consigo mesmo, tentando entender o que está acontecendo. E então, ele fala, e suas palavras me cortam.— Eu? — Ele solta, sua voz carregada de incredulidade. — Dê uma olhada em tudo. É isso que eu sou e tenho a oferecer.Eu respiro fundo, como se aquelas palavras não me tocassem, mas elas me fazem questionar. Quando olho ao redor, vejo o que ele
— Eu sei. — Minha voz sai calma, quase como uma resposta que não precisa de mais palavras.Eu sei o que ele está dizendo, e, de algum modo, isso só me faz querer mais. Quero entrar no seu mundo, quero entender. Mesmo que ele ache que não tem nada a oferecer, eu sei que há mais nele do que qualquer lugar ou condição poderia mostrar.— Sabe? O que faz aqui então? Sexo? É isso que quer de mim? É esse tipo de emoção que veio procurar? — Ele questiona, os olhos se fixando nos meus, procurando alguma resposta que ele provavelmente teme encontrar.Suas palavras me ferem, me desafiam, mas não me afastam. Pelo contrário. Elas só me fazem mais determinada.— Não. Eu gosto de você e te levo a sério, apesar de toda essa feiura ao seu redor. — Digo, a intensidade da minha voz revelando a verdade que eu mesma mal consigo acreditar.Eu vejo a surpresa no rosto dele, o modo como ele parece atordoado, como se não soubesse o que fazer com as palavras que saem da minha boca. Ele balança a cabeça em nega
DanielÉ difícil ter força de vontade e lembrar por que não quero me envolver com Kate quando ela me beija desse jeito. Sinto meu corpo todo reagir; meus lábios, que deveriam afastá-la, acabam cedendo. Liberto minha boca dela por um segundo, tentando colocar algum espaço entre nós, mas antes que eu consiga expressar meu arrependimento, ela me puxa de volta, colando nossos corpos outra vez. Suas mãos firmes me envolvem, e eu sinto meu desejo crescer, latejando de uma maneira que chega a doer.Seus lábios são quentes, úmidos, e se movem sobre os meus com uma necessidade que me desarma. Mesmo louco de desejo, luto contra isso. Tento reunir argumentos para afastá-la, mas minha mente está um caos. Droga! Ela é jovem, recém-saída da adolescência, ingênua demais para entender no que está se metendo. Mesmo que eu tenha apenas dois anos a mais, já vivi o suficiente para saber que essa vida é uma selva. Eu não posso me iludir com ela, nem deixá-la se iludir comigo.Seguro seus braços e a afasto
Quando ele me manda embora, o chão simplesmente desaparece sob os meus pés. O meu coração não está acelerado pelo desejo, mas pela dor que dilacera, uma dor que vem das palavras cruéis dele. Ele está ali, parado, com o olhar fechado, quase gélido, e eu vejo os ombros tensos, a respiração entrecortada, como se estivesse se contendo para não explodir em algo que pudesse destruir ainda mais o que restou.A minha voz sai trêmula, mas faço questão de que ela soe firme, tentando disfarçar a ferida que sangra dentro de mim.— Você é um covarde, Daniel — eu atiro, sem esconder a dor e a raiva que queimam por dentro. — É isso o que você é. Está se escondendo atrás de desculpas, me afastando porque é mais fácil do que admitir que você tem medo. Medo de se entregar, medo de sentir, medo de que eu veja quem você realmente é. — as minhas palavras são lâminas afiadas, e eu sei que estou ferindo, porque é a única defesa que me resta contra a dor que ele me causou.Ele fecha os olhos, respirando fund