Vestindo apenas um short de corrida e tênis surrados, corro pela calçada, mas o crepúsculo à minha frente passa despercebido. O céu vai escurecendo, mas nem mesmo o brilho laranja do sol se põe consegue desviar minha atenção do turbilhão que toma conta de mim. Hoje é um daqueles dias em que a inquietação me consome, como se todo o peso do mundo estivesse sobre meus ombros. Então, corro. Corro para afastar os pensamentos que não param de se amontoar, corro para afogar minhas mágoas, para exorcizar essa raiva e essa solidão que me cercam. Corro até meus músculos doerem, até os pulmões gritarem por ar.
Pauso, ofegante, e apoio as mãos nas pernas, puxando o ar com força, tentando recuperar o fôlego. O calor me envolve, a camisa grudada nas costas, o suor escorrendo pelo rosto. Olho para a rua e ela parece tão vazia quanto minha alma. Não há ninguém por perto. Só o som da minha respiração pesada quebrando o silêncio da noite que começa a cair.
Depois de um tempo, sigo novamente. Continuo correndo, sem saber o que estou procurando, mas com a certeza de que preciso seguir em frente, mesmo que tudo o que eu sinta seja vazio.
Uma hora depois, finalmente chego em casa. A porta range ao ser aberta, e o cheiro de mofo é inconfundível. A casa é pequena, apertada, e a umidade toma conta de cada canto, como se as paredes estivessem prestes a desabar. É difícil até respirar, com o ar tão carregado. Entro e deixo a porta fechar atrás de mim com um estalo. Me despeço rapidamente das roupas suadas e me jogo embaixo do chuveiro. O banheiro é apertado, com azulejos quebrados e rachados, e o box, velho, mal fecha direito. O chuveiro, se é que posso chamar assim, pinga a cada segundo, como se a água estivesse tentando escapar do cano entupido. A pressão é fraca, mas a água morna escorre pela minha pele, aliviando o calor e o cansaço. Mas a sensação de desconforto é inevitável. Nada ali parece limpo ou acolhedor. Até o cheiro da água é pesado.
Fecho os olhos, mas não consigo afastar os pensamentos. E lá está ela, Kate. Sua imagem se projeta diante de mim, como se estivesse em todos os cantos daquele banheiro mal iluminado. M*****a. Mesmo depois de tanto tempo, ela ainda tem esse poder sobre mim, essa capacidade de me fazer perder o controle.
Ela me procurou. A ousadia dela me atordoa. Depois de tanto tempo sem dar sinal de vida, de repente, aparece na minha rua, com aquele sorriso que nunca saiu da minha mente. Fico irritado só de pensar. Por que ela teve que fazer isso? Por que ela teve que me fazer sentir de novo?
Tento me convencer de que não faz sentido. Que não tenho nada a oferecer a uma mulher como Kate. Ela merece mais. Ela merece algo que eu não sou. Uma vida boa, sem essa poeira que cobre o meu caminho. Ela é uma garota para casar, e eu sou só... um cara perdido, sem futuro. Não sei como dar o que ela merece. O que eu poderia oferecer? Nada. E isso me consome mais do que eu gostaria de admitir.
Saio do chuveiro, ainda com a água escorrendo pela pele, e me enrolo em uma toalha. O banheiro é um reflexo da minha vida: precário, em ruínas, com o espelho embaçado refletindo uma versão de mim que não reconheço. A casa toda é assim: escura, úmida, sem cor, sem vida. A cozinha, logo à frente, tem um cheiro forte de óleo e comida velha. As paredes descascadas, o piso manchado. A geladeira, quando está ligada, faz um zumbido constante, mas nunca tem muito dentro dela. No fundo, sei que estou ali apenas porque não tenho outro lugar para ir. O quarto é pequeno, o colchão está afundado, e a janela emperrada, como se tivesse sido esquecida por todo o resto do mundo. O som da rua parece cada vez mais distante, como se eu estivesse em outro lugar, como se a vida tivesse me deixado para trás.
Com passos pesados, atravesso o corredor e entro no meu quarto. A luz fraca ilumina o que parece ser um pedaço de um pesadelo. Coloco o velho jeans e uma camiseta gasta, vestindo o que tenho porque não há nada mais. Não me importa. Às vezes, até me esqueço do que era ter mais.
Vou até a cozinha, a luz amarela sobre a mesa me faz sentir um pouco mais sozinho, mas continuo. Quebro um ovo e o jogo na frigideira, frito até que a gema fique firme. Pego um pedaço de pão de ontem, que deixei em um saco plástico para não endurecer, e coloco no prato. Isso é o que consigo fazer por mim mesmo: nada. O cheiro de comida queimada se mistura com o de um lugar em decadência. O que é essa vida? Uma refeição que mal pode ser chamada de refeição. Uma luta para sobreviver, para seguir, para não sucumbir ao que me falta.
Às vezes me pergunto por que algumas pessoas nascem com tudo e outras, como eu, têm que lutar por cada pedaço. O que mais me machuca é não ter tido oportunidade de estudar, de mudar minha vida. Tenho 22 anos, uma vida inteira pela frente, mas o que aparece diante de mim são apenas portas fechadas. O trabalho no restaurante me garante uma refeição decente ao meio-dia, mas no final do dia, no jantar, o que me sobra são as migalhas, o que posso pagar. O lado escuro da vida me chama sempre. Ele me tenta a cada esquina, me oferece atalhos, mas sei que não posso aceitar.
Termino o que consigo comer, quando ouço uma voz. Eu congelo. Kate? Não, não pode ser.
Meço o tempo, tentando entender se estou imaginando coisas. Mas então, a porta se abre. E ali ela está. De novo. Meu coração dispara, e sinto o suor escorrer novamente, mas agora não é mais o calor do exercício. É o calor de algo mais intenso, mais perigoso. Ela entra na cozinha, com os cabelos soltos, caindo em ondas acobreadas sobre os ombros. Seus olhos se encontram com os meus e, por um segundo, tudo o que consigo ouvir é o som do meu coração batendo mais forte. Ela usa jeans escuros, uma jaqueta preta, e a camiseta preta que a faz parecer tão distante e, ao mesmo tempo, tão próxima. O desejo me invade como uma onda, misturado com a raiva de saber que não posso ter o que ela representa.
Paralisado, fico ali, sem saber o que fazer. Eu a quero, mas também quero afastá-la. Ela me arranca um suspiro profundo, e meu corpo responde antes da minha mente. Eu a desejo, mas ela também me assusta. Não posso acreditar que ela está ali, na minha cozinha, em um lugar que nunca seria digno dela.
— Oi. — Ela diz, e o sorriso dela é suave, quase provocante.
É um golpe direto. O que ela faz com o meu corpo é indescritível. Uma eletricidade corre por mim, e a tensão cresce. O desejo consome cada pedaço de mim. Mas também há frustração. O que ela quer de mim? O que está fazendo aqui, agora, depois de tanto tempo? Minha voz sai rouca, carregada de raiva e de desejo reprimido.
— Santo Deus, Kate... O que você quer de mim? — Digo, e minhas palavras estão carregadas de tudo o que não consigo controlar.
Eu já esperava uma reação como a dele, mas isso não significa que não me afete. Ao vê-lo parado, estático, o seu olhar fixo em mim com aquela expressão de conflito, eu fico corada. Meus lábios se entreabrem e uma respiração ofegante escapa sem querer. Ele não se move, como se as palavras que estou prestes a dizer pesassem mais que qualquer gesto.— Você sabe o que eu quero. Você! — Minha voz sai mais suave do que eu gostaria, mas a intensidade que sinto dentro de mim me faz parecer mais vulnerável do que o normal.Daniel continua parado, com os olhos em mim, sem conseguir desviar o olhar. Ele parece tão... distante, como se estivesse em guerra consigo mesmo, tentando entender o que está acontecendo. E então, ele fala, e suas palavras me cortam.— Eu? — Ele solta, sua voz carregada de incredulidade. — Dê uma olhada em tudo. É isso que eu sou e tenho a oferecer.Eu respiro fundo, como se aquelas palavras não me tocassem, mas elas me fazem questionar. Quando olho ao redor, vejo o que ele
— Eu sei. — Minha voz sai calma, quase como uma resposta que não precisa de mais palavras.Eu sei o que ele está dizendo, e, de algum modo, isso só me faz querer mais. Quero entrar no seu mundo, quero entender. Mesmo que ele ache que não tem nada a oferecer, eu sei que há mais nele do que qualquer lugar ou condição poderia mostrar.— Sabe? O que faz aqui então? Sexo? É isso que quer de mim? É esse tipo de emoção que veio procurar? — Ele questiona, os olhos se fixando nos meus, procurando alguma resposta que ele provavelmente teme encontrar.Suas palavras me ferem, me desafiam, mas não me afastam. Pelo contrário. Elas só me fazem mais determinada.— Não. Eu gosto de você e te levo a sério, apesar de toda essa feiura ao seu redor. — Digo, a intensidade da minha voz revelando a verdade que eu mesma mal consigo acreditar.Eu vejo a surpresa no rosto dele, o modo como ele parece atordoado, como se não soubesse o que fazer com as palavras que saem da minha boca. Ele balança a cabeça em nega
DanielÉ difícil ter força de vontade e lembrar por que não quero me envolver com Kate quando ela me beija desse jeito. Sinto meu corpo todo reagir; meus lábios, que deveriam afastá-la, acabam cedendo. Liberto minha boca dela por um segundo, tentando colocar algum espaço entre nós, mas antes que eu consiga expressar meu arrependimento, ela me puxa de volta, colando nossos corpos outra vez. Suas mãos firmes me envolvem, e eu sinto meu desejo crescer, latejando de uma maneira que chega a doer.Seus lábios são quentes, úmidos, e se movem sobre os meus com uma necessidade que me desarma. Mesmo louco de desejo, luto contra isso. Tento reunir argumentos para afastá-la, mas minha mente está um caos. Droga! Ela é jovem, recém-saída da adolescência, ingênua demais para entender no que está se metendo. Mesmo que eu tenha apenas dois anos a mais, já vivi o suficiente para saber que essa vida é uma selva. Eu não posso me iludir com ela, nem deixá-la se iludir comigo.Seguro seus braços e a afasto
Quando ele me manda embora, o chão simplesmente desaparece sob os meus pés. O meu coração não está acelerado pelo desejo, mas pela dor que dilacera, uma dor que vem das palavras cruéis dele. Ele está ali, parado, com o olhar fechado, quase gélido, e eu vejo os ombros tensos, a respiração entrecortada, como se estivesse se contendo para não explodir em algo que pudesse destruir ainda mais o que restou.A minha voz sai trêmula, mas faço questão de que ela soe firme, tentando disfarçar a ferida que sangra dentro de mim.— Você é um covarde, Daniel — eu atiro, sem esconder a dor e a raiva que queimam por dentro. — É isso o que você é. Está se escondendo atrás de desculpas, me afastando porque é mais fácil do que admitir que você tem medo. Medo de se entregar, medo de sentir, medo de que eu veja quem você realmente é. — as minhas palavras são lâminas afiadas, e eu sei que estou ferindo, porque é a única defesa que me resta contra a dor que ele me causou.Ele fecha os olhos, respirando fund
DanielMe deito cedo hoje. São dez da noite, e já estou na cama, exausto. Mas exausto de verdade! Sempre ouvi dizer que o que está ruim pode piorar, e é exatamente isso que tenho vivido. Por sorte — e muita luta — consegui pagar o aluguel este mês. Foi uma batalha, literalmente. Meu rosto, que por semanas pareceu o de um monstro, começa a se recuperar. Antes eu estava mais parecido com o filho do Frankenstein. Agora, os hematomas estão mais claros, num tom esverdeado feio, mas pelo menos melhorando.O dono do restaurante onde trabalho começou a implicar comigo. Ele me julga um arruaceiro por causa das marcas no rosto. Precisei explicar que luto em ringues improvisados para ganhar um extra e conseguir pagar as contas. Francisco Valverde, o chefe, é um homem grosso. Me mandou ficar escondido na cozinha e sair pelos fundos quando terminasse o serviço, para não assustar os clientes.Fecho os olhos, e o pensamento inevitavelmente vai para Kate. Ela tem estado nos meus pensamentos o tempo t
Dançamos até nossas pernas cederem. O som alto, as luzes piscando, tudo parece perfeito para fugir um pouco da realidade. Karen, por outro lado, está ocupada se deixando levar pelo charme de Jake. Eles logo se afastam para um canto, conversando animadamente. Preciso avisá-la sobre ele, mas sinto que ela não vai querer me ouvir agora. Jake troca de mulheres como troca de roupa, e eu não quero vê-la magoada.Ela acena para mim, chamando. Vou até lá, tentando disfarçar a preocupação.— Eu já estou indo embora — digo.— Já? — Karen pergunta, surpresa.— Está cedo ainda — Jake sorri para mim, aquele sorriso casual que ele sempre usa. — Como dizem, a noite é uma criança.— Então é uma criança levada — respondo, forçando um sorriso.Karen franze a testa e comenta:— Você está sem carro, esqueceu? Eu que te trouxe.Droga. Esqueci completamente disso. Sinto o olhar de Jake passando de mim para Karen, como se avaliasse a situação.— Por que não empresta o carro para Kate e eu te levo para casa?
Jason nos conta sobre a sua fazenda, chamada Caminho do Céu. Achei hilário, porque a primeira coisa que me vem à mente é um cemitério, mas consigo disfarçar e apenas dou uma risadinha.— Todo mundo tem essa reação — ele comenta, percebendo o meu sorriso contido. — As pessoas sempre acham que parece nome de cemitério.— E não é para menos — admito, rindo.Olho ao redor e percebo que Karen não voltou ainda. Parece que ela gostou de estar na companhia de Jake.— Então, Jake e Jason, o que vocês fazem? — Karen pergunta, assim que retorna à mesa.Jake toma um gole de sua vodca e responde:— Sou advogado.— Hum, linda profissão — Karen comenta, sorrindo. Ela se vira para Jason. — E você, Jason? Pelo visto, é capataz.Jake gargalha, surpreso com a ingenuidade dela.— Na verdade, ele é o dono da fazenda, ele administra tudo por lá — explica Jake, rindo e tomando mais um gole.Jason dá um sorriso modesto.— Mas sou capataz também, faço de tudo um pouco por lá. Quando você tem uma fazenda, prec
Abro os meus olhos, ainda sonolenta. A claridade da manhã invade o meu quarto, mas não me apresso a levantar. Hoje é sábado, o dia da tão comentada festa na casa de Jake. Meu pai, empolgado como nunca, quase flutua pela casa com a ideia de que talvez haja algo entre eu e Jake. Mal sabe ele que Jake provavelmente estará com Karen hoje à noite.Decido não esclarecer nada para ele. Para quê? Para ele me atormentar com perguntas e comentários? E, sinceramente, nem sei se Jake estará mesmo com Karen. É bem capaz de ele aparecer com outra acompanhante. Karen me ligou ontem de novo para confirmar se vamos juntas. Na verdade, passamos a semana inteira conversando sobre a festa. Ou melhor, ela passou a semana inteira falando. Especulou sobre como seria a casa de Jake, os pais dele, e tudo mais. Ela está tão animada... Bem diferente de mim.Não que eu esteja desanimada, mas me sinto em um meio termo. Talvez por ainda carregar aquele gosto amargo de quando não deu certo com Daniel. Meu coração p