O calor da tarde repousava sobre a Fazenda Boa Esperança como um véu denso, tornando o ar preguiçoso e morno, mesmo com as janelas escancaradas da casa grande. Lá fora, os vastos cafezais se estendiam como um manto verde, ondulando sob a luz dourada do sol. Era uma paisagem bonita, quase poética, mas para Cecília Monteiro de Alcântara, tudo parecia opaco diante do que se aproximava: o dia em que conheceria o homem escolhido por seu pai para ser seu futuro marido.
Sentada diante da penteadeira, ela observava seu reflexo no espelho antigo, enquanto as criadas ajeitavam cuidadosamente o vestido lavanda e os cachos castanhos que emolduravam seu rosto. A maquiagem era discreta, mas realçava sua beleza serena. Por fora, tudo nela era impecável. Por dentro, no entanto, o coração batia em um compasso acelerado, dominado por uma ansiedade silenciosa. — Está linda, senhorita Cecília — disse uma das criadas, ajeitando um fio solto atrás da orelha dela. Cecília sorriu com delicadeza, mas a expressão logo se dissipou. Linda. Gentil. Perfeita. Eram adjetivos que ela escutava desde criança. A filha exemplar. A que não fazia escândalos. A que aceitava as regras impostas. Diferente da irmã Amélia, que gostava de contrariar a mãe, e de Álvaro, o irmão libertino, cuja sede por aventura causava discussões quase diárias. Ela, por outro lado, era o porto seguro. A promessa de estabilidade. E agora, sua recompensa seria um casamento arranjado. “Eduardo Vieira de Sá.” O nome ecoava em sua mente como um lembrete de que seu destino já havia sido decidido. O som seco dos sapatos da mãe no assoalho encerrou seus devaneios. Dona Constança, sempre imponente, surgira à porta como uma figura de autoridade silenciosa. O vestido de seda azul-marinho realçava ainda mais sua postura nobre, e o coque puxado não deixava margem para imperfeições. — Está na hora — anunciou, com a voz firme. Cecília assentiu, levantando-se com graça. Caminhou ao lado da mãe pelos longos corredores da casa, respirando fundo para conter a angústia. Mas ao cruzar o saguão principal, sentiu um súbito impulso de escapar. Apenas por um momento. Apenas para respirar. Desviando discretamente, saiu para os jardins laterais, onde as magnólias floridas exalavam um perfume doce e reconfortante. O canto distante dos pássaros a envolvia como um abraço silencioso. Era ali que ela se sentia mais viva — entre flores, longe de protocolos. Foi então que virou uma curva no jardim... e bateu em algo — ou melhor, em alguém. Um corpo firme, sólido. — Perdão! — exclamou, cambaleando para trás. Uma mão rápida a segurou pela cintura, impedindo sua queda. — Cuidado, flor. Pode se machucar assim — disse uma voz masculina, rouca e cheia de malícia. Cecília ergueu os olhos, ofegante. Diante dela, estava um homem alto, de ombros largos, vestindo um terno escuro de linho. Os cabelos castanhos caíam em ondas levemente desarrumadas sobre a testa, e o sorriso… ah, o sorriso era algo entre o deboche e o desafio. — Eu… não o vi — murmurou, tentando recuperar a compostura. — É uma pena — respondeu ele, com um olhar que passeava pelo rosto dela. — Eu, por outro lado, notei você imediatamente. Está fugindo de alguém? — Claro que não! — respondeu, erguendo o queixo com orgulho. — Apenas... precisava de ar fresco. — Uma decisão sábia. O ambiente está mesmo abafado demais para uma flor delicada como você. — Não sou delicada — disse ela, sentindo o sangue subir ao rosto pela ousadia do comentário. — Não? — Ele se inclinou levemente, analisando-a com um olhar de quem decifra enigmas. — Então, o que é? Ela hesitou. Por um instante, não soube quem era, nem o que responder. Aquela presença a desestabilizava. —Eu sou... Cecília — respondeu, enfim. — Um nome bonito — disse ele, como se saboreasse seu nome em sua boca. — Para uma moça ainda mais bonita. Antes que pudesse retrucar, ouviu seu nome ser chamado do outro lado do jardim. — Cecília! — Era a voz severa do pai. Ela se virou, o coração acelerado. Quando voltou a olhar para o estranho, ele ainda estava ali, sorrindo como se soubesse de todos os segredos do mundo. — Até logo, flor — sussurrou, afastando-se com a confiança de um homem que conhecia o próprio poder. O toque dele ainda parecia presente em sua pele quando ela entrou no salão principal. Seu pai estava à espera, acompanhado de um homem jovem, elegante, de postura impecável. — Senhorita Cecília — disse o rapaz, com um sorriso polido —, é um prazer finalmente conhecê-la. Sou Eduardo Vieira de Sá. Ela respondeu com educação, tentando ignorar a estranha sensação que crescia em seu peito. Mas antes que pudesse se acalmar, seus olhos se fixaram em alguém parado à direita de Eduardo. O estranho do jardim. Estava ali, encostado com insolência contra a parede, observando-a com um olhar divertido. — Este é meu irmão mais velho, Maximiliano — disse Eduardo, inocente quanto ao que se passava. Cecília sentiu o mundo girar. Maximiliano. Max. O homem que a segurara pela cintura, que lhe chamara de flor… era o irmão do seu noivo. Maximiliano Vieira de Sá não acreditava em coincidências. Mas ali estava ele, cruzando novamente o caminho da jovem mais encantadora — e mais proibida — que já vira. Cecília. Reclinado contra a parede, com o ar de quem se divertia com a própria existência, ele observava cada gesto dela, cada rubor. Sentia ainda o perfume doce que ficara em sua memória, talvez jasmim ou algo ainda mais envolvente. Pequena, elegante, cheia de pudor — e ao mesmo tempo provocante sem querer. Ela o evitava com os olhos, mas ele via a hesitação. O leve tremor nos dedos. O desvio rápido do olhar. E aquilo só aumentava o prazer do jogo. — Estava pensando que você tem muita sorte — disse ele a Eduardo, com ironia. O irmão não percebeu o tom. Max sabia que Eduardo era cego para nuances. Desde criança, um exemplo de responsabilidade. Sempre o herdeiro, o escolhido. E agora, o noivo de Cecília. — Não estrague isso, Max — advertiu Eduardo, em voz baixa. Max sorriu, como se a ideia sequer fizesse sentido. Ele era o problema. Sempre fora. Mas não prometera nada a ninguém. Cecília, do outro lado do salão, parecia sufocada. Eduardo falava com o pai dela, animado com negócios e propriedades. E a jovem sorria como se tudo estivesse bem — mas Max sabia que não estava. E então, Eduardo ofereceu o braço para uma caminhada pelo jardim. — Gostaria de caminhar um pouco? Ela hesitou. E antes que pudesse responder, Max se aproximou com um sorriso preguiçoso. — Cuidado, Senhorita Cecília. O calor lá fora pode ser… perigoso. Ela o encarou por um breve segundo, o olhar cheio de mensagens não ditas. E foi assim que o jogo começou.O sol quente e intenso espalhava seus tons dourados sobre a Fazenda Boa Esperança, iluminando os vastos cafezais que se estendiam até onde a vista alcançava. Cecília caminhava lentamente pelo jardim, com o braço delicadamente entrelaçado ao de Eduardo Vieira de Sá. Era um momento cuidadosamente arquitetado por sua mãe, Constança, que acreditava que a proximidade traria um laço mais firme entre eles. E Cecília, como a boa filha que sempre fora, estava disposta a tentar. — A fazenda de sua família é realmente impressionante — comentou Eduardo, sua voz firme e controlada. — Meu pai sempre falou com admiração do seu patriarca. Cecília sorriu de maneira polida. Eduardo era um homem atraente, com traços bem definidos e modos irrepreensíveis. Havia algo reconfortante em sua presença, uma estabilidade que qualquer jovem em idade de casamento deveria desejar. — Meu pai é um homem de princípios — disse ela, ajustando a saia do vestido, cujos detalhes delicados ressaltavam sua feminilidade. —
Após o longo e cerimonioso almoço, a família Monteiro de Alcântara se reuniu no pátio coberto para a despedida dos irmãos Vieira de Sá. Sorrisos cordiais e despedidas educadas mascaravam a tensão no ar — ao menos para Cecília. Ela apertava as mãos uma contra a outra, tentando manter a compostura diante da presença dos dois irmãos, mas seu olhar insistia em recair sobre o mais novo. — Foi um prazer recebê-los — disse Constança, com elegância e aquele olhar clínico que analisava cada detalhe. Seus olhos pousaram demoradamente em Eduardo, aprovando sua postura irrepreensível. — Esperamos vê-los novamente em breve. — O prazer foi nosso, senhora Monteiro de Alcântara — respondeu Eduardo, com uma leve curvatura de cabeça, a voz firme, respeitosa. Ao lado dele, Maximiliano permaneceu em silêncio, o corpo relaxado e a expressão divertida. Seus olhos, no entanto, procuravam discretamente por Cecília. Era quase imperceptível, não fosse o fato de ela sentir cada olhar como um toque não autoriz
Os dias que se seguiram à visita dos Vieira de Sá trouxeram a Cecília Monteiro de Alcântara uma inquietação difícil de silenciar. Embora tentasse dedicar-se às obrigações domésticas e aos preparativos para o noivado, sua mente voltava sempre àquele encontro — e, sobretudo, aos dois irmãos que haviam cruzado seu caminho de forma tão distinta. Eduardo era, sem dúvida, o noivo ideal. Educado, gentil, passou a enviar-lhe cartas formais, com palavras escolhidas com cuidado. Cecília respondia com igual cortesia, ainda que percebesse nelas uma ausência sutil — como se tudo fosse correto demais, previsível demais. Maximiliano, em contraste, lhe despertava sentimentos que preferia não nomear. Havia nele algo indomável, quase impróprio. Pensar em seu sorriso arrogante era um pecado silencioso que a acompanhava mesmo nas missas de domingo. E havia a flor. Simples, colhida sabe-se lá onde, entregue com um sorriso travesso e sem explicações durante a breve despedida. Cecília guardara-a entre as
A luz dourada do entardecer tingia as ruas com um brilho decadente, como se a cidade inteira ardesse em desejo. Para Max, era apenas o prenúncio de mais uma noite de excessos. E ele pretendia se perder nela até o último gole, até o último corpo, até o último pecado. No salão reservado do Clube do Progresso — um templo do luxo exclusivo para homens poderosos — o tilintar de taças e as risadas roucas criavam uma sinfonia de decadência. O cheiro de tabaco cubano, conhaque envelhecido e promessas ilícitas pairava no ar como uma cortina invisível de permissividade. Era um ambiente feito sob medida para homens como Max. Ele estava recostado em uma poltrona de couro, com as pernas relaxadas, o olhar afiado percorrendo o salão como um predador entediado. Seus cabelos castanhos estavam levemente desalinhados, o maxilar coberto por uma barba por fazer, e os olhos, escuros como pecado, brilhavam com uma confiança perigosa. Max era o tipo de homem que exalava charme sem precisar tentar — e ele s
O relógio da imponente residência dos Vieira de Sá já marcava mais de duas horas da madrugada quando Max atravessou a porta principal, arrastando os passos preguiçosos pelo saguão silencioso. O cheiro amadeirado do charuto ainda pairava em suas roupas, misturado ao aroma doce de perfume feminino. A gravata estava frouxa, o colarinho aberto, e o cabelo negro desgrenhado, como se mãos delicadas tivessem acabado de se perder nele. Ele cambaleou ligeiramente ao subir os primeiros degraus da escadaria, murmurando para si mesmo um palavrão baixinho quando o mundo girou por um instante. Mas não estava tão embriagado assim. Apenas o suficiente para não se importar com o fato de que, mais uma vez, voltava para casa sozinho. — Finalmente — a voz firme de Eduardo o deteve antes que alcançasse seu quarto. Max ergueu os olhos, piscando ao vê-lo sentado em uma poltrona no corredor, os cotovelos apoiados nos joelhos e um olhar severo no rosto sempre impecável. — Ora, ora… Ficou com saudades,
A casa-grande pulsava com uma energia rara, como se pressentisse um acontecimento fora do comum. Criados iam e vinham em um ritmo quase coreografado, ajeitando arranjos florais, polindo talheres e finalizando a preparação de um jantar que exalava riqueza. O ar era tomado por aromas sedutores — carne assada, frutas frescas, pão recém-saído do forno — tudo misturado ao perfume doce das flores de laranjeira, recém-colhidas para enfeitar os salões. Cecília observava o movimento do alto da escadaria, com um aperto no estômago que insistia em não passar. O vestido azul celeste que usava, escolhido pela mãe, realçava sua figura esguia e o tom de sua pele clara, mas ela se sentia como uma boneca vestida para encenação. Havia algo naquele dia — algo que não sabia nomear — que lhe dava a sensação de que sua vida estava prestes a mudar. — Parece que vão receber o imperador e eu não fui avisada — murmurou, ajeitando uma mecha solta atrás da orelha. Helena e Amélia sumiram no meio dos preparativ
A copa estava mais fresca do que o salão principal, com o aroma doce de canela e baunilha pairando no ar. A luz das lamparinas era mais suave ali, lançando sombras quentes nas prateleiras repletas de louças e potes de compotas caseiras. Cecília inspirou fundo, tentando acalmar os nervos enquanto Dona Ivone organizava pratos para a sobremesa. A cozinheira-chefe, uma mulher robusta e de feições gentis, observou-a de soslaio antes de se aproximar. — Menina, você está mais pálida do que um fantasma — murmurou em tom baixo, pegando a sua mão com delicadeza. — O que foi? Cecília hesitou. Não sabia como colocar em palavras aquele tumulto de emoções. A presença de Max a desestabilizava de um jeito que ela não queria — não podia — admitir. — Estou bem — mentiu, desviando o olhar para o avental imaculado de Dona Ivone. — Apenas cansada. — Ah, não me engana, Cecília. Conheço você desde que usava laços no cabelo. Tem algo lhe incomodando, e não é só cansaço. O calor subiu ao seu rosto.
A noite avançava, e a música suave de um quarteto de cordas preenchia o ar, enquanto casais deslizavam pela pista de dança improvisada. O vinho continuava a ser servido, afrouxando a rigidez habitual dos Monteiro de Alcântara e a formalidade calculada dos Vieira de Sá. Cecília permanecia ao lado de Eduardo, recebendo cumprimentos e elogios pela união iminente. Sorria, agradecia, mantinha a postura irrepreensível que lhe haviam ensinado desde menina – mas, por dentro, estava em chamas. Cada vez que olhava para Max, a tensão em seu corpo aumentava como um fio prestes a se partir. — Está se divertindo? — Eduardo perguntou, puxando-a para a pista de dança assim que os músicos começaram uma valsa mais lenta. — Sim — ela mentiu, permitindo que ele a guiasse. Eduardo dançava com precisão. Seus passos eram calculados, impecáveis, exatamente como a vida que planejava ao lado dela. Cecília tentou se concentrar no rosto dele – nas linhas simétricas, na segurança tranquila que oferecia –, mas