O relógio da imponente residência dos Vieira de Sá já marcava mais de duas horas da madrugada quando Max atravessou a porta principal, arrastando os passos preguiçosos pelo saguão silencioso. O cheiro amadeirado do charuto ainda pairava em suas roupas, misturado ao aroma doce de perfume feminino. A gravata estava frouxa, o colarinho aberto, e o cabelo negro desgrenhado, como se mãos delicadas tivessem acabado de se perder nele.
Ele cambaleou ligeiramente ao subir os primeiros degraus da escadaria, murmurando para si mesmo um palavrão baixinho quando o mundo girou por um instante. Mas não estava tão embriagado assim. Apenas o suficiente para não se importar com o fato de que, mais uma vez, voltava para casa sozinho. — Finalmente — a voz firme de Eduardo o deteve antes que alcançasse seu quarto. Max ergueu os olhos, piscando ao vê-lo sentado em uma poltrona no corredor, os cotovelos apoiados nos joelhos e um olhar severo no rosto sempre impecável. — Ora, ora… Ficou com saudades, irmão? — Max soltou um sorriso debochado, inclinando-se contra o corrimão. — Não sabia que agora me esperava para me colocar na cama. — Eu não espero por você, Max. Só não quero que transforme esta casa em um antro de libertinagem. O tom de Eduardo era sério, mas Max apenas riu, um som rouco e preguiçoso. — Libertinagem? — Ele deu um passo mais próximo, inclinando a cabeça com um brilho provocador nos olhos. — Curioso ouvir isso de você. Imaginei que estivesse ocupado… com outras coisas. Eduardo estreitou os olhos. — O que quer dizer com isso? Max soltou um suspiro exagerado, passando uma mão pelos cabelos. — Ora, todos sabemos que a doce Cecília é uma joia rara. Se eu estivesse no seu lugar, meu caro, já teria encontrado maneiras mais interessantes de passar as noites. — Ele riu, com um tom arrastado de malícia. — Ou será que está deixando a bela noiva esperando? Eduardo se levantou de um salto, o maxilar tenso e as mãos cerradas em punhos ao lado do corpo. — Tenha cuidado com suas palavras, Max. Cecília merece respeito. — Respeito — Max repetiu a palavra como se fosse um conceito estranho. Aproximou-se mais, ainda com aquele sorriso insolente. — Espero que esteja dando a ela tudo o que uma mulher deseja… ou talvez ela acabe descobrindo que outros homens são mais… experientes. O silêncio que se seguiu foi cortante. Por um momento, Max pensou que Eduardo o socaria — e, sinceramente, ele não se importaria. A dor física, pelo menos, era passageira. Mas Eduardo apenas deu um passo para trás, o rosto fechado em uma máscara de fúria contida. — Retornamos para o Rio de Janeiro na próxima semana para o pedido oficial. Se eu descobrir que você a incomodou de alguma forma… — Acalme-se, irmão. — Max ergueu as mãos, em falso tom pacificador. — Ainda não toquei em nada que lhe pertence. E, com isso, girou nos calcanhares, subindo o restante da escada sem se preocupar em disfarçar a risada baixa que escapava de seus lábios. Ele não se importava em provocar Eduardo. Mas o que o incomodava, de verdade, era o fato de que, desde que conhecera Cecília, ele não conseguia tirá-la da cabeça. E isso, mais do que qualquer outra coisa, era um problema. *** Na manhã seguinte, o sol entrou impiedoso pelas janelas do quarto de Max, esparramando-se pelo tapete persa e alcançando seu rosto em uma ofensa dourada. Ele gemeu baixinho, enterrando a cabeça no travesseiro enquanto uma dor latejante se espalhava por sua têmpora. A ressaca era uma velha conhecida. Mas naquela manhã, a sensação de irritação ia além do álcool que ainda percorria seu sangue. — Maldito Eduardo… — murmurou para si mesmo, relembrando a conversa da noite anterior. Sempre tão correto, tão rígido. E agora, tão cheio de posse em relação ao compromisso. Um pensamento incômodo atravessou sua mente. Cecília. Era tolice, claro. Havia conhecido tantas mulheres ao longo dos anos — beldades casadas, viúvas entediadas, debutantes imprudentes. Todas eram passageiras. Por que, então, o sorriso tímido daquela moça o incomodava tanto? O bater firme na porta interrompeu seus devaneios. — Entre — resmungou, esperando ver o criado com o café forte que tanto precisava. Mas, em vez disso, Eduardo cruzou a soleira com sua postura impecável, o olhar de quem já estava acordado e pronto para enfrentar o mundo horas antes. — Dormindo até tarde novamente, Max? — Ele parou ao pé da cama, os braços cruzados. — Não que eu esperasse outra coisa. — Que surpresa, irmão. Já está dando sermões antes mesmo do desjejum? — Max se espreguiçou preguiçosamente, um sorriso malicioso brincando em seus lábios enquanto se sentava. — Ou veio me convidar para um passeio em família? — Viemos para São Paulo pelo simples motivo de agilizar tudo em nossas terras para recebermos a nova senhora dessa casa. — Eduardo ignorou o tom de deboche. — E não vou permitir que sua preguiça ou irresponsabilidade interfiram nos meus planos. Max revirou os olhos, recostando-se nos travesseiros. — Não me diga que pretende mesmo se ajoelhar diante do velho Joaquim e pedir a mão da doce Cecília. — É claro que sim. — O tom de Eduardo era firme, decidido. — Não vim aqui para brincar, Max. O compromisso fortalece as relações entre nossas famílias, e Cecília… — É adorável. Sim, já ouvi. — Max interrompeu, entediado, mas uma pontada incômoda surgiu em seu peito. — Mas não vejo por que tenho que prolongar minha estadia. Já cumpri minha obrigação ao acompanhá-lo. Eduardo ergueu uma sobrancelha, desconfiado. — Não vai voltar ao Rio comigo? — E me sentar em jantares enfadonhos enquanto você recita poesias para sua futura esposa? — Max bufou, esticando as pernas nuas sob os lençóis. — Não, obrigado. Tenho outros interesses por aqui. — Interesses, ou apenas mais escapadas irresponsáveis? — Por Deus, Eduardo! — Max riu, balançando a cabeça. — Por que essa pressa em se amarrar? O mundo está cheio de prazeres, você deveria experimentá-los. Eduardo estreitou os olhos, a irritação evidente. — Nem todos desejam passar a vida se embriagando ou seduzindo esposas alheias. Alguns de nós têm responsabilidades. — Responsabilidades — Max repetiu a palavra como se fosse uma ofensa. — Eu tenho responsabilidade comigo mesmo, e com mais ninguém. Por um momento, o silêncio se estendeu entre os dois irmãos. Eduardo o observava com aquele olhar de julgamento que Max tanto odiava — como se ele fosse um caso perdido, um erro que a família precisava suportar. Max suspirou, levantando-se da cama em um movimento preguiçoso, vestindo sua camisa de seda completamente amassada. — Diga-me, Eduardo… Você está mesmo tão encantado assim com Cecília, ou está apenas cumprindo seu dever como herdeiro obediente? — O que eu sinto não é da sua conta. — A voz de Eduardo soou gelada. — Mas o que você faz, Max, é da conta de todos nós. E eu não quero ter que limpar a sua bagunça outra vez. Ele se virou, deixando o quarto sem esperar resposta. Max soltou um suspiro pesado quando a porta se fechou atrás dele. Ficar em São Paulo parecia a decisão mais sensata no momento. Afinal, por que ele deveria correr de volta ao Rio de Janeiro para testemunhar a felicidade perfeita de Eduardo ao lado da jovem Monteiro de Alcântara? E, além disso, ele nunca lidava bem com tentações.A casa-grande pulsava com uma energia rara, como se pressentisse um acontecimento fora do comum. Criados iam e vinham em um ritmo quase coreografado, ajeitando arranjos florais, polindo talheres e finalizando a preparação de um jantar que exalava riqueza. O ar era tomado por aromas sedutores — carne assada, frutas frescas, pão recém-saído do forno — tudo misturado ao perfume doce das flores de laranjeira, recém-colhidas para enfeitar os salões. Cecília observava o movimento do alto da escadaria, com um aperto no estômago que insistia em não passar. O vestido azul celeste que usava, escolhido pela mãe, realçava sua figura esguia e o tom de sua pele clara, mas ela se sentia como uma boneca vestida para encenação. Havia algo naquele dia — algo que não sabia nomear — que lhe dava a sensação de que sua vida estava prestes a mudar. — Parece que vão receber o imperador e eu não fui avisada — murmurou, ajeitando uma mecha solta atrás da orelha. Helena e Amélia sumiram no meio dos preparativ
A copa estava mais fresca do que o salão principal, com o aroma doce de canela e baunilha pairando no ar. A luz das lamparinas era mais suave ali, lançando sombras quentes nas prateleiras repletas de louças e potes de compotas caseiras. Cecília inspirou fundo, tentando acalmar os nervos enquanto Dona Ivone organizava pratos para a sobremesa. A cozinheira-chefe, uma mulher robusta e de feições gentis, observou-a de soslaio antes de se aproximar. — Menina, você está mais pálida do que um fantasma — murmurou em tom baixo, pegando a sua mão com delicadeza. — O que foi? Cecília hesitou. Não sabia como colocar em palavras aquele tumulto de emoções. A presença de Max a desestabilizava de um jeito que ela não queria — não podia — admitir. — Estou bem — mentiu, desviando o olhar para o avental imaculado de Dona Ivone. — Apenas cansada. — Ah, não me engana, Cecília. Conheço você desde que usava laços no cabelo. Tem algo lhe incomodando, e não é só cansaço. O calor subiu ao seu rosto.
A noite avançava, e a música suave de um quarteto de cordas preenchia o ar, enquanto casais deslizavam pela pista de dança improvisada. O vinho continuava a ser servido, afrouxando a rigidez habitual dos Monteiro de Alcântara e a formalidade calculada dos Vieira de Sá. Cecília permanecia ao lado de Eduardo, recebendo cumprimentos e elogios pela união iminente. Sorria, agradecia, mantinha a postura irrepreensível que lhe haviam ensinado desde menina – mas, por dentro, estava em chamas. Cada vez que olhava para Max, a tensão em seu corpo aumentava como um fio prestes a se partir. — Está se divertindo? — Eduardo perguntou, puxando-a para a pista de dança assim que os músicos começaram uma valsa mais lenta. — Sim — ela mentiu, permitindo que ele a guiasse. Eduardo dançava com precisão. Seus passos eram calculados, impecáveis, exatamente como a vida que planejava ao lado dela. Cecília tentou se concentrar no rosto dele – nas linhas simétricas, na segurança tranquila que oferecia –, mas
A boca de Max continuava explorando a dela com um desespero contido, como se ele estivesse tentando provar um ponto – ou talvez apenas se perder nela. As mãos dele deslizavam por suas costas, pressionando-a ainda mais contra seu corpo quente e sólido, e Cecília sentiu o mundo girar ao redor deles. — Você não deveria… — Ela tentou protestar entre os beijos, mas sua própria voz soava fraca, quase um gemido. — Eu nunca faço o que deveria, bela Cecília — Max respondeu contra seus lábios, o tom rouco e carregado de desejo. Os dedos dele subiram lentamente pelo corpete delicado de seu vestido, traçando um caminho torturante pela curva de sua cintura até a linha de suas costelas. O toque era firme, possessivo – e, ainda assim, parecia que ele estava se segurando para não ir além. Cecília estava em chamas. Cada parte de seu corpo parecia viva sob o toque dele, e a forma como Max a beijava – profunda, intensa, como se não houvesse mais nada no mundo – a fazia esquecer do noivado, das ob
Max encostou-se preguiçosamente ao arco da porta, a taça de vinho pendendo entre os dedos longos. Para qualquer observador desatento, ele parecia relaxado – quase entediado com a comoção ao redor. Mas, por dentro, cada músculo do seu corpo estava tenso, como uma corda prestes a se partir. Seus olhos não deixavam Cecília. Não conseguiam. Ele ainda sentia o gosto dela nos lábios – doce, quente, proibido. Sentia a pressão delicada do corpo dela contra o seu, o tremor leve de seus dedos quando, por um instante, ela correspondeu ao beijo. E, mesmo agora, enquanto Eduardo se ajoelhava diante dela com aquele maldito anel, Max podia jurar que o desejo ainda queimava em sua pele como um pecado que não podia – não queria – esquecer. A plateia suspirava em uníssono, alguns convidados murmuravam entre si sobre como eles formavam um casal perfeito. Um casal perfeito. Max quase riu – um riso amargo que ficou preso em sua garganta. Porque ele sabia a verdade. Sabia que, minutos antes, Cecíl
Álvaro girava o copo de uísque entre os dedos, a mente vagando enquanto o som abafado da música e das risadas ecoava pelos corredores. Ele não gostava de festas como essa – formais demais, previsíveis demais – mas, em uma família como a sua, recusar um evento social era um luxo que nem mesmo ele podia se permitir. Mas ele felizmente já estava de saída. Afinal, Cecília tinha pedido. Não com palavras diretas, é claro. Sua irmã era boa demais para pedir algo tão… mesquinho. Mas Álvaro a conhecia melhor do que ninguém. Percebera a tensão em seu sorriso quando lhe perguntou, mais cedo, se poderia “manter Max muito bem entretido e longe de problemas”. Problemas. Ele quase riu. Cecília nunca usava palavras casuais por acaso. E a julgar pelo modo como Max saíra do salão – rígido, sombrio e com a expressão de um homem à beira do limite – Álvaro tinha uma boa ideia de que tipo de problema sua irmã queria evitar. Foi fácil encontrá-lo. Homens como Max não se afastavam muito quando est
A música suave dos violinos ecoava pelo salão iluminado, enquanto casais rodopiavam em vestidos de seda e casacas bem cortadas. Cecília sorria, mantendo a postura impecável que a mãe tanto cobrava, mas, por dentro, sentia o coração inquieto – uma agitação que nada tinha a ver com o pedido de casamento que havia acabado de aceitar. Desde que Eduardo colocara o anel em seu dedo, o peso daquela joia parecia maior do que deveria. Um lembrete cintilante de tudo que estava em jogo — e de quem ela deveria esquecer. Mas Max… Ele estava ali. Ela podia senti-lo. Por um instante, cedeu ao impulso de procurá-lo no salão. Seus olhos se moveram com cautela até encontrá-lo perto da varanda. A luz dourada do lustre acariciava os traços afiados de seu rosto. Ele estava inclinado para mais perto de Álvaro, que ria de algo que apenas os dois partilhavam. Mas, ao contrário do irmão de Eduardo, que parecia se divertir, Max mantinha aquele sorriso preguiçoso que, de tão insolente, fazia algo perigoso
Cecília deixou a sala de desjejum com passos controlados, mas assim que virou o corredor e se afastou dos olhares vigilantes, seu corpo relaxou ligeiramente. Ainda assim, sua mente não encontrava repouso. Cada vez que fechava os olhos, a lembrança do toque de Max voltava com força devastadora – e agora ele estava longe, na companhia do homem mais libertino que ela conhecia. Ao chegar à sala de costura, encontrou sua mãe supervisionando as criadas que organizavam rolos de tecidos e amostras de renda. Dona Constança Monteiro de Alcântara era a personificação do controle e da elegância. Seus cabelos, sempre bem arranjados em um coque elaborado, e o vestido de seda lilás reforçavam a imagem de uma mulher que sabia seu lugar – e o da filha também. — Cecília, querida, finalmente. — A voz dela tinha um tom apressado, mas carregado de expectativa. — Precisamos decidir os detalhes do vestido de noiva. Afinal, seu casamento com Eduardo será o evento do ano. Cecília se aproximou, forçando u