A casa-grande pulsava com uma energia rara, como se pressentisse um acontecimento fora do comum. Criados iam e vinham em um ritmo quase coreografado, ajeitando arranjos florais, polindo talheres e finalizando a preparação de um jantar que exalava riqueza. O ar era tomado por aromas sedutores — carne assada, frutas frescas, pão recém-saído do forno — tudo misturado ao perfume doce das flores de laranjeira, recém-colhidas para enfeitar os salões.
Cecília observava o movimento do alto da escadaria, com um aperto no estômago que insistia em não passar. O vestido azul celeste que usava, escolhido pela mãe, realçava sua figura esguia e o tom de sua pele clara, mas ela se sentia como uma boneca vestida para encenação. Havia algo naquele dia — algo que não sabia nomear — que lhe dava a sensação de que sua vida estava prestes a mudar. — Parece que vão receber o imperador e eu não fui avisada — murmurou, ajeitando uma mecha solta atrás da orelha. Helena e Amélia sumiram no meio dos preparativos, cada uma ocupada com algum detalhe que Constança julgava indispensável. Joaquim, seu pai, estava trancado no escritório da fazenda, resolvendo questões que, segundo ele, “não podiam esperar”. Restava a ela, Cecília, o incômodo de não saber ao certo por que tanto alarde para um simples jantar. — Com essa cara, menina, vai acabar azedando o leite das vacas. A voz inconfundível de dona Ivone, a cozinheira-chefe, a arrancou dos pensamentos. Era uma mulher de pele escura, olhos astutos e mãos que carregavam os calos de quem viveu para cuidar. E, nos últimos tempos, sua presença tinha sido mais acolhedora do que a da própria mãe. — Eu só não entendo tanto alvoroço, dona Ivone. — Não entende? Pois devia. Sua mãe tá mais animada que cachorro em dia de feira. O riso de Cecília foi interrompido pelo som dos cascos no cascalho da entrada. Uma carruagem. Seu coração acelerou num compasso desigual. — Quem chegou? Ivone ajeitou o lenço no cabelo e soltou um suspiro conhecedor. — Os Vieira de Sá, é claro. Cecília sentiu o mundo girar por um instante. Apertou o tecido da saia com força, tentando conter a ansiedade. — Eles… chegaram? Ivone a olhou de lado, com aquele olhar que atravessava qualquer disfarce. — Eu sei o que passa nessa cabecinha. Não se aflija. Noivado arranjado não é sentença de morte. Mas as palavras da cozinheira fizeram mais peso que consolo. "Noivado." A simples ideia dessa união arranjada já sufocava Cecília desde o primeiro momento em que a mãe a mencionara. E então, como se sua presença tivesse sido invocada pelo próprio destino, ele apareceu. Encostado preguiçosamente no batente da porta, Maximiliano Vieira de Sá a observava com um meio sorriso debochado. O olhar dele era cortante, carregado de algo que a deixava desconfortável — e perigosamente atraída. Seu cabelo escuro estava desalinhado pela viagem, a camisa aberta no colarinho denunciava um desdém pelas regras e etiqueta que guiavam aquele mundo. — Bela recepção, senhorita Monteiro de Alcântara — disse ele, a voz arrastada, quase melódica. — Quase parece que sentiu minha falta. — Não sabia que você viria hoje — respondeu, tentando manter a compostura. — Achei que apenas seu irmão viria... — Surpresa, então? — Ele deu um passo à frente. O olhar dele percorreu o corpo dela com descaramento. — Espero que tenha sido uma boa, pelo menos. Cecília apertou o maxilar. Eduardo, o irmão de Max, era o prometido. Um homem educado, gentil, tudo o que se esperava de um noivo ideal. Já Max… era o oposto. Insolente. Indecifrável. E, justamente por isso, perigoso. — Imagino que esteja exausto da viagem. Talvez devesse… descansar — disse ela, em um tom mais frio, na tentativa de manter distância. — Ah, estou exausto, sim… mas não do tipo que o descanso resolve. Ela corou, odiando o rubor que denunciava o efeito que aquelas palavras tinham sobre ela. — Insolente — murmurou. — Essa boquinha linda consegue ser afiada? — Max se inclinou, reduzindo o espaço entre eles. — Você nem imagina, senhor Vieira de Sá. A risada dele foi baixa, carregada de uma malícia controlada. Antes que Cecília pudesse se afastar, uma mão firme segurou seu braço. — Venha, menina. Preciso de ajuda na cozinha — disse Ivone, com sua voz firme, lançando um olhar duro para Max. — E o senhor, vá procurar seu irmão. Esse alvoroço é por causa dele, não do senhor. Cecília sentiu-se salva, por um instante. Mas, quando começou a se afastar, a voz de Max a alcançou mais uma vez. — Foi um prazer revê-la, Bela flor. Um grande prazer. Mesmo longe, aquelas palavras ainda queimavam em sua pele. ** Mais tarde, o jantar teve início sob o brilho suave dos candelabros de prata. A mesa, digna de qualquer salão da Corte, estava posta com faisões assados, tortas ricamente decoradas, frutas cristalizadas e cristais que cintilavam sob a luz. O burburinho das conversas parecia agradável, mas Cecília mal ouvia o que era dito. Sentia o calor do olhar de Max sobre ela mesmo sem levantar os olhos. Eduardo, sempre educado e cordial, estava ao seu lado, tentando conduzir uma conversa. Tocou sua mão sobre a mesa, gesto que deveria ser reconfortante — e, no entanto, não causou nela nenhum arrepio. Só havia uma presença ali que mexia com seus sentidos. E não era a do noivo. — Está distraída, Cecília? — Eduardo perguntou. Ela piscou, forçando um sorriso. — Perdoe-me. O calor… talvez esteja um pouco sonolenta. Vicente, o mais velho dos Vieira de Sá, interveio: — Desde que voltamos da Corte, tudo parece abafado por aqui. — Ainda assim, há algo revigorante no ar do campo — completou Eduardo, pousando a mão sobre a dela com gentileza. — E mais ainda na sua companhia. Ela queria sorrir, agradecer, corresponder. Mas sentia a pele arder sob o olhar de Max, que parecia estudá-la como quem desvenda um segredo. — E você, Max? — a voz grave de Joaquim cortou o ambiente. — Pretende ficar conosco por muito tempo ou logo volta à Corte? Max inclinou-se, com um ar despreocupado. — Quem sabe? A vida no Rio tem seus encantos… mas há prazeres no interior difíceis de resistir. As palavras pareciam simples. Mas o jeito como ele as disse… Cecília prendeu a respiração. — Certamente há coisas que não se encontram na Corte — provocou Álvaro, o mais jovem dos irmãos, com um sorriso malicioso. — Mas duvido que Max aprecie tanto as simplicidades assim. — Talvez eu esteja aprendendo a vê-las com outros olhos — devolveu Max, o olhar fixo nela, a voz carregada de significado oculto. Cecília sentiu o sangue latejar. Aquilo era mais que provocação. Era um jogo. E ela já estava presa nele. Constança, elegante como sempre, interrompeu com um tom cortante: — Não nos distraiamos com frivolidades. Há muito o que discutir. O ambiente mudou. Conversas sobre a política, o fim do Império, as ameaças de reforma agrária tomaram conta da mesa. Mas Cecília mal ouvia. Cada palavra de Max, cada olhar trocado, parecia moldar um novo destino diante dela. E, naquele momento, ela soube com clareza: Maximiliano Vieira de Sá era um perigo real. Um que ela não saberia — ou não queria — evitar.A copa estava mais fresca do que o salão principal, com o aroma doce de canela e baunilha pairando no ar. A luz das lamparinas era mais suave ali, lançando sombras quentes nas prateleiras repletas de louças e potes de compotas caseiras. Cecília inspirou fundo, tentando acalmar os nervos enquanto Dona Ivone organizava pratos para a sobremesa. A cozinheira-chefe, uma mulher robusta e de feições gentis, observou-a de soslaio antes de se aproximar. — Menina, você está mais pálida do que um fantasma — murmurou em tom baixo, pegando a sua mão com delicadeza. — O que foi? Cecília hesitou. Não sabia como colocar em palavras aquele tumulto de emoções. A presença de Max a desestabilizava de um jeito que ela não queria — não podia — admitir. — Estou bem — mentiu, desviando o olhar para o avental imaculado de Dona Ivone. — Apenas cansada. — Ah, não me engana, Cecília. Conheço você desde que usava laços no cabelo. Tem algo lhe incomodando, e não é só cansaço. O calor subiu ao seu rosto.
A noite avançava, e a música suave de um quarteto de cordas preenchia o ar, enquanto casais deslizavam pela pista de dança improvisada. O vinho continuava a ser servido, afrouxando a rigidez habitual dos Monteiro de Alcântara e a formalidade calculada dos Vieira de Sá. Cecília permanecia ao lado de Eduardo, recebendo cumprimentos e elogios pela união iminente. Sorria, agradecia, mantinha a postura irrepreensível que lhe haviam ensinado desde menina – mas, por dentro, estava em chamas. Cada vez que olhava para Max, a tensão em seu corpo aumentava como um fio prestes a se partir. — Está se divertindo? — Eduardo perguntou, puxando-a para a pista de dança assim que os músicos começaram uma valsa mais lenta. — Sim — ela mentiu, permitindo que ele a guiasse. Eduardo dançava com precisão. Seus passos eram calculados, impecáveis, exatamente como a vida que planejava ao lado dela. Cecília tentou se concentrar no rosto dele – nas linhas simétricas, na segurança tranquila que oferecia –, mas
A boca de Max continuava explorando a dela com um desespero contido, como se ele estivesse tentando provar um ponto – ou talvez apenas se perder nela. As mãos dele deslizavam por suas costas, pressionando-a ainda mais contra seu corpo quente e sólido, e Cecília sentiu o mundo girar ao redor deles. — Você não deveria… — Ela tentou protestar entre os beijos, mas sua própria voz soava fraca, quase um gemido. — Eu nunca faço o que deveria, bela Cecília — Max respondeu contra seus lábios, o tom rouco e carregado de desejo. Os dedos dele subiram lentamente pelo corpete delicado de seu vestido, traçando um caminho torturante pela curva de sua cintura até a linha de suas costelas. O toque era firme, possessivo – e, ainda assim, parecia que ele estava se segurando para não ir além. Cecília estava em chamas. Cada parte de seu corpo parecia viva sob o toque dele, e a forma como Max a beijava – profunda, intensa, como se não houvesse mais nada no mundo – a fazia esquecer do noivado, das ob
Max encostou-se preguiçosamente ao arco da porta, a taça de vinho pendendo entre os dedos longos. Para qualquer observador desatento, ele parecia relaxado – quase entediado com a comoção ao redor. Mas, por dentro, cada músculo do seu corpo estava tenso, como uma corda prestes a se partir. Seus olhos não deixavam Cecília. Não conseguiam. Ele ainda sentia o gosto dela nos lábios – doce, quente, proibido. Sentia a pressão delicada do corpo dela contra o seu, o tremor leve de seus dedos quando, por um instante, ela correspondeu ao beijo. E, mesmo agora, enquanto Eduardo se ajoelhava diante dela com aquele maldito anel, Max podia jurar que o desejo ainda queimava em sua pele como um pecado que não podia – não queria – esquecer. A plateia suspirava em uníssono, alguns convidados murmuravam entre si sobre como eles formavam um casal perfeito. Um casal perfeito. Max quase riu – um riso amargo que ficou preso em sua garganta. Porque ele sabia a verdade. Sabia que, minutos antes, Cecíl
Álvaro girava o copo de uísque entre os dedos, a mente vagando enquanto o som abafado da música e das risadas ecoava pelos corredores. Ele não gostava de festas como essa – formais demais, previsíveis demais – mas, em uma família como a sua, recusar um evento social era um luxo que nem mesmo ele podia se permitir. Mas ele felizmente já estava de saída. Afinal, Cecília tinha pedido. Não com palavras diretas, é claro. Sua irmã era boa demais para pedir algo tão… mesquinho. Mas Álvaro a conhecia melhor do que ninguém. Percebera a tensão em seu sorriso quando lhe perguntou, mais cedo, se poderia “manter Max muito bem entretido e longe de problemas”. Problemas. Ele quase riu. Cecília nunca usava palavras casuais por acaso. E a julgar pelo modo como Max saíra do salão – rígido, sombrio e com a expressão de um homem à beira do limite – Álvaro tinha uma boa ideia de que tipo de problema sua irmã queria evitar. Foi fácil encontrá-lo. Homens como Max não se afastavam muito quando est
A música suave dos violinos ecoava pelo salão iluminado, enquanto casais rodopiavam em vestidos de seda e casacas bem cortadas. Cecília sorria, mantendo a postura impecável que a mãe tanto cobrava, mas, por dentro, sentia o coração inquieto – uma agitação que nada tinha a ver com o pedido de casamento que havia acabado de aceitar. Desde que Eduardo colocara o anel em seu dedo, o peso daquela joia parecia maior do que deveria. Um lembrete cintilante de tudo que estava em jogo — e de quem ela deveria esquecer. Mas Max… Ele estava ali. Ela podia senti-lo. Por um instante, cedeu ao impulso de procurá-lo no salão. Seus olhos se moveram com cautela até encontrá-lo perto da varanda. A luz dourada do lustre acariciava os traços afiados de seu rosto. Ele estava inclinado para mais perto de Álvaro, que ria de algo que apenas os dois partilhavam. Mas, ao contrário do irmão de Eduardo, que parecia se divertir, Max mantinha aquele sorriso preguiçoso que, de tão insolente, fazia algo perigoso
Cecília deixou a sala de desjejum com passos controlados, mas assim que virou o corredor e se afastou dos olhares vigilantes, seu corpo relaxou ligeiramente. Ainda assim, sua mente não encontrava repouso. Cada vez que fechava os olhos, a lembrança do toque de Max voltava com força devastadora – e agora ele estava longe, na companhia do homem mais libertino que ela conhecia. Ao chegar à sala de costura, encontrou sua mãe supervisionando as criadas que organizavam rolos de tecidos e amostras de renda. Dona Constança Monteiro de Alcântara era a personificação do controle e da elegância. Seus cabelos, sempre bem arranjados em um coque elaborado, e o vestido de seda lilás reforçavam a imagem de uma mulher que sabia seu lugar – e o da filha também. — Cecília, querida, finalmente. — A voz dela tinha um tom apressado, mas carregado de expectativa. — Precisamos decidir os detalhes do vestido de noiva. Afinal, seu casamento com Eduardo será o evento do ano. Cecília se aproximou, forçando u
Enquanto a conversa na sala de costura se dispersava, Cecília afastou-se sob o pretexto de buscar um livro na biblioteca. Mas, na verdade, ela precisava respirar — e, talvez, escapar da pressão sufocante das expectativas familiares. As janelas do casarão se abriam para um cenário deslumbrante: o Vale do Paraíba, com suas colinas cobertas de plantações de café que se estendiam até onde a vista alcançava. Os Vieira de Sá e os Monteiro de Alcântara estavam entre as famílias mais influentes da região, cujas fortunas haviam sido erguidas pelo ouro negro, como muitos chamavam o café. O Brasil, naquela época, era uma terra de contrastes fascinantes. Enquanto as elites rurais viviam em casarões majestosos como o seu, o Rio de Janeiro florescia como a capital do Império — uma cidade vibrante, onde o luxo dos salões aristocráticos convivia com o burburinho dos mercados e o cheiro salgado que vinha do porto. Navios chegavam e partiam carregados de café, açúcar e outras riquezas que sustentava