Capítulo 1
“Às vezes, tenho a perturbadora sensação de estar sendo observada. Outras vezes, a estranha certeza de estar sozinha. Mas, em raros momentos… sinto que sou a própria escuridão.” — Marjorye Sandalo Maeve Jhosef O suor escorre pela minha testa enquanto dou os últimos toques no quadro. Cada pincelada parece arrancar algo de dentro de mim — como se a alma se dissolvesse junto às tintas. Dessa vez, a obra era diferente. Livre. Intensa. Uma libertação silenciosa em forma de flores e asas. — Querida, essa pintura está magnífica! — elogia minha mãe, com aquele sorriso que sempre me devolve o fôlego. — Talvez seja a mais delicada que já pintei — respondo, encarando os traços suaves nas pétalas e borboletas. Deixo os pincéis de lado e sorrio ao ver o lanche que ela trouxe. Penso, por um instante, como seria minha vida sem eles… e a resposta me assusta. — Você já tem uma coleção inteira, filha. Quando vai mostrar ao mundo? — Ela insiste com ternura. Sempre insiste. Sorrio de leve, como quem agradece, mas não cede. — Mãe… você se importaria se eu nunca saísse do lado de vocês? Talvez eu não encontre ninguém digno de mim. Talvez eu morra solteira, pintando e cuidando dos negócios da família. Ela toca meu rosto, e seus olhos escurecem, sérios. — Filha, nós te criamos para ser livre. Não para envelhecer ao nosso lado. Que horror, Maeve! — ri com indignação teatral, e eu a acompanho, gargalhando. Provocar meus pais é uma das poucas alegrias que ainda me permito. Há dois anos, eles tentam me empurrar para encontros — tentativas discretas, às vezes descaradas — mas eu nunca dou espaço. Eles fingem ter desistido… mas nunca desistem de verdade. Guardo minhas tintas e limpo o canto que chamo de refúgio. O campo de rosas dança com o vento do lado de fora, e enquanto caminho de volta para casa, meu celular vibra. Zola Riel. A mensagem é direta: em dois dias, encontro com o pessoal da faculdade. Um convite disfarçado de súplica. Logo em seguida, mais duas notificações: Killian. Nevan. Os irmãos continuam determinados a me resgatar da caverna onde me escondi. Fingem que não sabem o porquê, mas todos sentimos o peso da data que se aproxima. Cada um de nós saiu marcado daquela manhã. Mas eu… Eu fui a única que nunca mais conseguiu sair da escuridão. Algo dentro de mim sussurra que este ano pode ser diferente. Que talvez, só talvez, eu sorria sem fingir. Aceito o convite. Entro em casa e sou recebida pela mesma cena: meus pais dançando entre panelas, cantando músicas antigas com vozes entrelaçadas como quem jura amor eterno todos os dias. Penso: como encontrar alguém à altura, quando cresci vendo um homem de cinquenta e cinco anos ainda trazer flores para sua esposa? Um homem rico que cozinha nos fins de tarde, surpreende com bilhetes e a olha como se ela fosse um milagre que se repete? Nunca vi meus pais brigarem. Nunca os vi desistirem um do outro. Cresci acreditando que amar era isso. E talvez seja por isso que não me permito menos. — Mãe, pai… — eles me olham, sorrindo — Vou ao encontro da faculdade. Tudo bem para vocês? Sinto as mãos gelarem. Um arrepio me percorre. Mas engulo a lágrima. Não quero tornar esse momento melancólico. — Se você estiver bem com sua escolha, filha, estamos também — diz meu pai, com firmeza doce, largando o guardanapo. — Se quiser, te deixamos e buscamos — completa minha mãe, com um sorriso que sempre parece maior do que o mundo. Aceno. Subo. Talvez eu esteja pronta. Talvez não. No quarto, encaro o espelho. Tiro a blusa devagar. Meus olhos descem até a cicatriz fina em minha barriga. E então ela volta. A lembrança. > — Tá, eu queria encontrar o amor da minha vida. Alguém que me amasse como o tio Hell ama a tia Helena. — E você acha que eu e seu pai não nos amamos assim também? — a tia Mary questiona, rindo. — Mamãe é diferente. A tia Helena nunca briga com o tio Hell. — — Então eu posso ser o amor da sua vida… nunca brigo com você. — Risos. Depois… silêncio. Aquela manhã ainda me atravessa como vidro quebrado. Toco a cicatriz e limpo as lágrimas antes que caiam. Lembranças são cruéis. Não cicatrizam como cortes. Elas nos invadem quando menos esperamos — e doem mesmo quando parecem esquecidas. Sempre haverá uma estação, uma música, uma data. E mesmo quando tudo parece calmo… Elas voltam. E com elas, a dor.Capítulo 2 A noite não é uma criança mimada sem sono; a noite é um lembrete de que mais um dia se findou sem a alegria de antes. Assim é o luto. — Marjorye Sandalo Maeve Jhosef Dois dias arrastaram-se sob o peso do silêncio, como se o tempo tivesse perdido a pressa de passar. E agora, novamente, era 04 de março — o dia em que a primavera floresce em cores intensas, como se o universo insistisse em contrapor-se à morte com sua explosão de vida. As borboletas dançavam no jardim como em todos os anos. E, como em todos os anos, uma lágrima solitária escorreu pela minha face assim que o sol tocou o horizonte. — Se um dia eu me casar, quero que seja na primavera, ao ar livre, para que possa ver as borboletas rodopiarem pelo ar enquanto eu digo um belo “sim” para a pessoa que será o amor da minha vida... — seu sorriso era uma aurora dentro de mim. Num impulso, deixei o coração falar. — Então case-se comigo... Vamos fazer como em A Princesa e o Sapo: nos casar no jardim da fazenda. Te
Capítulo 3 O desconhecido pode ser ainda mais assustador do que aquilo que mostra sua verdadeira face desde o início. — Marjorye Sandalo Maeve Jhosef A vida nunca foi um banquete gentil — e, mesmo quando se senta à mesa, nem sempre a fome é de comida. Ainda assim, surpreendi-me com o quão agradável foi reencontrar pessoas, ouvir vozes que um dia preencheram os corredores da juventude e, por instantes breves, fingir que o tempo não nos devorou. O que me surpreendeu mais, no entanto, foi ver o quanto todos haviam seguido em frente. Sorrisos leves, planos sólidos, amores novos e feridas que já não sangravam. Eu, entre eles, era a peça que ainda rangia — a estátua de sal tentando acompanhar o fluxo do mundo. Havia expectativa em seus olhos, embora ninguém ousasse dizê-lo em voz alta. Esperavam que eu amasse de novo. Que algum alguém me puxasse para fora do lodo onde me escondi por anos. Mas o fundo do poço tem camadas, e, ao que me parece, já escalei algumas delas: voltei a pintar,
Capítulo 4A faca te faz sangrar muito mais quando é retirada do local da perfuração do que quando está cravada.— Marjorye SandaloMaeve JhosefAlgumas lembranças dormem dentro de nós como serpentes em torpor — e há dias em que tudo o que podemos fazer é rezar para que não despertem. Mas, quando a tristeza bate à porta, não há como impedir que elas se arrastem de volta, sibilando memórias que queimam como ácido.Naquele silêncio antes da partida, respirei fundo e pedi que ela não me deixasse. Minha amiga. Minha irmã de alma. Zola me olhou como quem entende as palavras que não se dizem.— Nem passou pela minha cabeça te deixar — respondeu, e sua voz era firme como quem segura a mão de alguém à beira do abismo.Era hora de voltar para Washington, D.C. Ainda que meu coração quisesse permanecer enterrado na distância.Avisei que minha estadia seria breve. Preferia continuar trabalhando na filial de Seattle. Esperava resistência, um argumento emocionado de minha mãe, talvez um olhar aflit
Capítulo 5 “Às vezes, os monstros mais temidos não vivem sob a cama, mas dentro do coração que tenta sobreviver ao abandono.” — Marjorye Sandalo Maeve Jhosef Por um segundo, a realidade pareceu tremer sob meus pés como placas tectônicas prestes a colidir. O mundo desacelerou, como se o tempo me quisesse torturar com a lentidão do reconhecimento. Aquele rosto diante de mim… era ele. Ou, pior, era a lembrança viva dele com todas as marcas do tempo que não tive a chance de acompanhar. Mas não, não era. Não podia ser. Era apenas o irmão. O mesmo que havia nos negado. O mesmo que virou as costas quando mais precisávamos. — Está tudo bem com você? — ele pergunta, ajoelhado ao meu lado, enquanto examina meu tornozelo torcido com uma delicadeza que não combina com o rancor que guardei. Eu quero gritar. Quero mandá-lo embora. Quero dizer que sua presença é como um veneno, lento, silencioso, mas fatal. — Estou bem — minto, tentando puxar minha perna com o mínimo de dignidade possível. E
Capítulo 6 A ausência pode ser tão barulhenta que ensurdece até os pensamentos mais silenciosos. — Marjorye Sandalo Maeve Jhosef As palavras dele ainda ecoavam na minha mente como um tambor desafinado, reverberando nas paredes do meu peito. "Eu sou ele... ou, pelo menos, o que restou de mim depois da guerra." Como se isso fosse suficiente para justificar tudo. Como se o passado pudesse ser soterrado sob essa desculpa frágil. Eu não respondi. Não conseguia. Meus músculos estavam tensos, e o ar que entrava nos meus pulmões parecia mais denso, como se estivesse respirando fumaça. Era como se a vida estivesse pregando uma peça cruel, dessas que arrancam risos de plateias insensíveis, mas só deixam lágrimas nos olhos de quem sente. Eu voltei a andar. Queria fugir de tudo. Dele. De mim. Mas seus passos me seguiram. — Maeve, por favor... escuta — a voz dele agora era mais baixa, quase um sussurro arrependido. Continuei caminhando. Um passo. Depois outro. Como se o movimento pudes
Capítulo 7 “Às vezes, o que não é dito pesa mais do que qualquer palavra que ousaria ser pronunciada.” — Marjorye Sandalo Maeve Jhosef O céu de Washington parecia conspirar com o meu estado de espírito — um cinza opaco, abafado, carregado de silêncios. As nuvens se arrastavam preguiçosas como se soubessem do peso que eu carregava no peito. Era o tipo de manhã em que tudo doía, até respirar. Minha mãe me chamou ao escritório com a voz firme, mas doce, como sempre fazia quando precisava de mim na empresa da família, a Jhosef Industries. Não era apenas um império farmacêutico construído com suor e genialidade científica, era o legado de gerações. Um império nascido do desejo de salvar vidas, ironicamente marcado pela morte que não conseguimos evitar. Adentrei o edifício como quem entra num templo sagrado — paredes de vidro, mármore escuro, obras de arte friamente calculadas. Um lugar que grita poder, mas também sussurra segredos. Meus saltos ecoavam pelo corredor principal como uma
Capítulo 8 "O desconforto nasce quando somos obrigados a compartilhar espaço com os fantasmas que evitamos." — Marjorye Sandalo Maeve Jhosef O silêncio que pairava sobre a mesa de reunião era quase sagrado — ou talvez profano, como uma oração dita ao contrário. Eu conseguia ouvir até o leve tilintar dos botões da minha caneta contra o vidro frio da mesa. O ar estava denso, pesado como se carregasse todas as palavras não ditas, os gritos contidos e as perguntas que ninguém ousava formular. Isaac chegou com sua habitual expressão de indiferença, vestindo o luto como se fosse um terno sob medida. Seus olhos passearam pelo ambiente sem se deter nos meus. Como se não houvesse história entre nós. Como se eu não tivesse esperado por ele até o último suspiro. O escritório central da Jhosef Industries estava mergulhado em uma penumbra elegante, com paredes envidraçadas, piso de mármore e plantas estrategicamente dispostas para quebrar a frieza do ambiente. Um retrato dos meus pais sorrind
Capítulo 9 “Há quem prefira não sentir, só para não correr o risco de doer.” — Marjorye Sandalo Maeve Jhosef O silêncio entre nós era quase tão palpável quanto a tensão. A sala de reuniões cheirava a madeira polida e distância emocional. Isaac sentava-se à cabeceira da mesa, com os olhos mergulhados em documentos como se o mundo lá fora não existisse. Eu o observava de soslaio, tentando decifrar quem era aquele homem que todos pareciam respeitar, temer e evitar ao mesmo tempo. Os demais diretores haviam saído para um breve intervalo, restando apenas nós dois e o zumbido discreto do ar-condicionado. Tentei me distrair com os gráficos à minha frente, com as planilhas da expansão da filial em Seattle, mas sua presença parecia preencher todo o espaço ao meu redor — firme, incômoda, inevitável. — A campanha da filial foi aprovada pelo setor de marketing — digo, tentando soar neutra. — Se quisermos iniciar as ações ainda este trimestre, precisamos do seu aval para as peças publicitári