capítulo 5

Capítulo 5

“Às vezes, os monstros mais temidos não vivem sob a cama, mas dentro do coração que tenta sobreviver ao abandono.” — Marjorye Sandalo

Maeve Jhosef

Por um segundo, a realidade pareceu tremer sob meus pés como placas tectônicas prestes a colidir. O mundo desacelerou, como se o tempo me quisesse torturar com a lentidão do reconhecimento. Aquele rosto diante de mim… era ele. Ou, pior, era a lembrança viva dele com todas as marcas do tempo que não tive a chance de acompanhar.

Mas não, não era. Não podia ser. Era apenas o irmão. O mesmo que havia nos negado. O mesmo que virou as costas quando mais precisávamos.

— Está tudo bem com você? — ele pergunta, ajoelhado ao meu lado, enquanto examina meu tornozelo torcido com uma delicadeza que não combina com o rancor que guardei.

Eu quero gritar. Quero mandá-lo embora. Quero dizer que sua presença é como um veneno, lento, silencioso, mas fatal.

— Estou bem — minto, tentando puxar minha perna com o mínimo de dignidade possível.

Ele me observa por mais um segundo. Os olhos dele, tão parecidos com os do irmão, têm uma intensidade que me atravessa como uma lâmina fina. Há peso em seu olhar, um cansaço que parece vir de guerras que talvez nem tenham sido travadas no campo de batalha.

— Preciso te levar ao hospital. Você pode ter fraturado algo.

— Não, eu me viro — retruco, tentando levantar sem ajuda. Mas meu corpo não coopera. A dor me obriga a ceder, e minha alma odeia cada segundo disso.

Sem pedir permissão, ele me toma nos braços com uma facilidade irritante. A proximidade dele é uma afronta à minha resistência. Seu cheiro não é o mesmo, mas há algo ali que me confunde, me desorienta. Fecho os olhos para conter o enjoo que vem não da dor física, mas da memória.

— Você mora por aqui? — ele pergunta, como se fôssemos velhos conhecidos.

— Não é da sua conta.

— Então é você... — ele sussurra, como se estivesse montando um quebra-cabeça antigo. — Maeve.

Meu nome em sua boca me parece um insulto. Sinto vontade de bater nele. De socar aquele rosto bonito e bem-cuidado como se pudesse, com isso, estilhaçar as mentiras, as ausências, os porquês que nunca chegaram.

— Você tem a audácia de pronunciar meu nome?

— Eu mereço isso — ele admite, e há uma honestidade tão desconcertante em sua voz que me desarma por um instante.

Nos minutos seguintes, caminhamos em silêncio — ou melhor, ele caminha, e eu me debato entre não cair dos seus braços e não me perder no vórtice das lembranças. Quando chegamos à portaria do condomínio, o segurança o reconhece e abre caminho como se ele ainda fosse parte de tudo isso. Como se não tivesse deixado de ser.

Ele me coloca gentilmente no sofá da sala e olha ao redor. A casa ainda tem as mesmas paredes que um dia testemunharam risos, jantares, e planos de um casamento que a vida abortou antes de acontecer.

— Está tudo igual — ele comenta, e a amargura em mim quase transborda.

— É, algumas pessoas não tiveram o privilégio de sumir por anos — sussurro, mordendo o lábio para não chorar.

Ele se ajoelha na minha frente e me encara. Seus olhos buscam os meus como se pudessem encontrar ali alguma absolvição.

— Você pode me odiar. Deve, aliás. Mas não sabe metade do que houve.

— E você não sabe o que é assistir à pessoa que você ama definhar em uma cama esperando por um milagre que estava ao alcance de uma ligação — digo entre os dentes. — E não sabe o que é amar alguém que já estava morrendo e ainda assim jurava que tudo ia ficar bem.

— Eu sei o que é perder — ele rebate, a voz baixa, quase sem vida. — Eu só não sei como voltar.

Nos encaramos por alguns segundos que pareceram longos demais para corações tão danificados. Por fim, ele se afasta e pega gelo na cozinha como se quisesse se redimir cuidando da ferida menor — a do tornozelo.

Sento em silêncio enquanto ele envolve meu pé em um pano e aplica o gelo com uma gentileza irritante. Me sinto uma criança birrenta, mas não sei ser outra coisa perto dele.

— Por que voltou? — pergunto, finalmente.

— Porque não consegui continuar fugindo.

Suspiro, cansada. De mim, dele, do mundo. Cansada de ter que ser forte quando só queria quebrar. Cansada de manter em pé as ruínas de um amor que ainda pulsa sob os escombros.

— Você acha que sua volta vai consertar alguma coisa?

— Não. Mas talvez… talvez ainda haja algo a ser reconstruído. Nem que seja uma ponte entre nós — ele se levanta, deixando o gelo sobre minha perna. — Eu sei que não posso mudar o que aconteceu. Mas posso tentar não errar de novo.

Ele caminha até a porta e, por um segundo, hesita.

— Me chamo Isaac — diz, antes de desaparecer pelo corredor.

E ali, sozinha naquela sala cheia de memórias e fantasmas, sinto uma lágrima escorrer.

Porque o nome dele era Isaac.

E eu finalmente sabia o nome do homem que poderia ser minha ruína.

Ou meu novo recomeço.

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