capítulo 4

Capítulo 4

A faca te faz sangrar muito mais quando é retirada do local da perfuração do que quando está cravada.

— Marjorye Sandalo

Maeve Jhosef

Algumas lembranças dormem dentro de nós como serpentes em torpor — e há dias em que tudo o que podemos fazer é rezar para que não despertem. Mas, quando a tristeza b**e à porta, não há como impedir que elas se arrastem de volta, sibilando memórias que queimam como ácido.

Naquele silêncio antes da partida, respirei fundo e pedi que ela não me deixasse. Minha amiga. Minha irmã de alma. Zola me olhou como quem entende as palavras que não se dizem.

— Nem passou pela minha cabeça te deixar — respondeu, e sua voz era firme como quem segura a mão de alguém à beira do abismo.

Era hora de voltar para Washington, D.C. Ainda que meu coração quisesse permanecer enterrado na distância.

Avisei que minha estadia seria breve. Preferia continuar trabalhando na filial de Seattle. Esperava resistência, um argumento emocionado de minha mãe, talvez um olhar aflito de meu pai — mas, para minha surpresa, eles apenas assentiram. E então vi: o sorriso travesso nos lábios de Zola.

— Acho que este ano será bem interessante trabalhando ao seu lado — comentou, com aquele brilho nos olhos que precede a travessura.

Revirei os olhos, o que a fez gargalhar. Killian manteve-se em silêncio — como sempre fazia quando preferia observar do que opinar — mas Nevan, bom… Nevan nunca foi adepto do silêncio.

— Vem cá… E se ele for bonito? Já pensou? Vai que mexe com você — provocou com um sorriso malicioso. — Vai que, sei lá, o coração dá um sinalzinho...

— Nevan — cortei, firme. — Não tem chance. Eu nem me lembro do nome dele. Nunca o vi, e jamais — jamais — ele vai substituir...

Não consegui terminar. A palavra ficou presa entre os dentes e o peito. Voltei a recostar na poltrona do jatinho, sentindo o ar rarefeito da lembrança sufocar meu pulmão.

— Ei, a gente não está falando de substituir ninguém — disse Nevan, com um tom mais brando. — Às vezes, amar outra pessoa é o que nos salva. Já pensou por esse ângulo?

Não respondi. Apenas desviei o olhar enquanto um nó me trancava por dentro.

— Tudo bem — ele murmurou — não vamos mais falar disso.

O avião pousou. Meu corpo estremeceu. Como um instinto que anuncia o perigo antes mesmo do raciocínio alcançar. Papai nos esperava com aquele abraço largo, quente, que parecia tentar colar todos os cacos. Conversamos no caminho, mas o assunto — aquele assunto — permaneceu em suspensão, pairando no ar como um presságio.

Chegamos em casa. Cada um foi para seu quarto, mas, como já era tradição, Zola se recusou a ir para a casa dos tios. Minha mãe, rendida àquele encanto impossível de negar, deixou que ela ficasse comigo.

Mais tarde, ao me preparar para dormir, a encontrei olhando as estrelas pela janela. Os dedos tocavam, quase sem perceber, o colar que dividíamos desde adolescentes — dois pingentes que formavam um só.

Ela estava preocupada.

— Zola... eu vou superar — sussurrei. — Eu sou como o vento de um redemoinho: forte, caótica, mas impossível de parar.

Ela sorriu com doçura, mas seus olhos não mentiam.

— Não sei a quem você quer enganar, mas a mim... não engana — disse, séria. — O amor de vocês era puro. Genuíno. Você o culpa, mesmo sem admitir. E, no fundo, eu só tenho medo de ver você mergulhar naquela dor de novo.

Seu abraço foi mais do que carinho. Foi um pacto silencioso: eu estou com você, mesmo que o mundo desabe outra vez.

— Eu vou ser feliz, Zola. Eu prometo.

E pela primeira vez em muito tempo, dormi com uma promessa presa ao peito — e não uma perda.

---

Quando os primeiros raios de sol romperam a madrugada, me arrastei para fora da cama. Alonguei-me, fiz minha higiene, como quem prepara o corpo para uma batalha invisível. Decidi caminhar. Se o mundo queria me ver viva, eu ao menos podia tentar parecer.

O bairro nobre onde morávamos tinha árvores silenciosas e jardins que pareciam saídos de um quadro. Peguei uma garrafa de água, calcei um tênis e tentei afastar o pensamento recorrente de que seria melhor apenas continuar deitada, enterrada sob os lençóis.

Não havia chegado nem ao terceiro quarteirão e meu corpo já protestava.

— Ser saudável é uma maldição disfarçada — murmurei entre dentes, tentando não amaldiçoar o universo inteiro.

Mas então, o destino — com seu senso de humor peculiar — resolveu brincar comigo. Pisei em falso. O chão desapareceu por um segundo. O impacto veio como um soco no calcanhar.

— Isso só pode ser brincadeira — gemi, segurando o tornozelo.

Tentei me levantar. Falhei.

— Qual é, universo? Eu disse que ia tentar ser feliz. Ia começar a me cuidar. E é assim que você me retribui? — olhei para o céu, irritada.

Foi quando ouvi a risada.

Delicada. Quase irônica.

Passos se aproximaram, e os raios de sol me impediram de ver quem era de imediato. Mas, por um instante fugaz, juro que pensei ter morrido. Que aquele rosto era o prenúncio do céu.

— Não é possível que uma simples queda me matou... — murmurei, tonta.

Ele sorriu. Dentes perfeitamente alinhados. Lábios rosados. Sardas suaves sobre a pele clara. Cabelos organizados demais para alguém comum. E músculos... como se o tempo tivesse esculpido uma versão cruel do que um dia foi meu sonho.

Os olhos — meu Deus, os olhos — eram um abismo. E eu caí neles.

— Bom... esse foi o elogio mais estranho que já recebi — disse, com uma voz rouca, grave, bonita demais para o meu próprio bem. — Deixa eu te ajudar.

Quando seus dedos tocaram os meus, percebi.

Não era ele.

Mas por um segundo, quis tanto que fosse, que meu coração se rasgou por dentro. Como se uma faca esquecida finalmente fosse retirada da ferida. E sangrei. Sangrei tudo o que ainda doía e eu fingia ter curado.

Meus pelos se arrepiaram. O peito se fechou.

E o pânico, sutil como um veneno, voltou a correr pelas minhas veias.

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