Laura Martins:
— É feio encarar as pessoas comendo — falo incomodada, observando-o de soslaio. Não sei bem se ele realmente está me encarado, os olhos dele parecem vagos, mas o simples fato de estarem na minha direção já me perturba.
— Não estava te encarando — ele diz, e se ajeita na cadeira. — Coma logo, quero ir embora — resmunga, cruzando os braços.
— A porta da rua é serventia da casa — debocho, levando outra garfada de macarrão à boca, nossa! Que sabor divino, o macarrão está tão delicioso, poderia repetir o prato várias vezes.
— Está me colocando para fora, de um restaurante que nem seu é? — O ogro pergunta, uma sobrancelha arqueada.
— Você quer sair, eu apenas disse para que serve a porta, uai — retruco, achando divertidas as reações dele. — Você já pagou pelo macarrão, não precisa ficar aqui comigo, posso muito bem comer sozinha, não preciso que seja a minha babá.
— Você é muito mal agradecida, garota — contra argumenta, dou de ombros.
Foco em terminar a refeição. Mas, ao beber o refrigerante, um arroto escapa antes que eu possa evitá-lo. Que vergonha! Sinto como se todos no restaurante estivessem me olhando e segurando o riso.
— Olha só, até que não fica tão feia vermelhinha — o ogro comenta, divertido. — Calma vermelhinha, não precisa cuspir fogo em mim.
— Está me chamando de dragão!? — Indago, indignada com sua insolência. Quem esse cara acha que é para me chamar assim?
— Onde tá o burro, ele precisa acalmar à dragãozinha dele — ele provoca, com um sorriso zombeteiro. Desgraçado, ainda está dizendo que sou à dragão do filme do Shrek.
— Seu ogro babaca! — Rosno entre dentes, esse fila duma... Agr! — Chegue mais perto que eu te mostro onde o burro tá. — O desafio.
Nos encaramos, faíscas parecem voar entre nós, mesmo que ele esteja com um sorriso na boca, os seus olhos ainda estão gélidos e vazios.
— Oh, então agora você é a guia turística para o burro? — Ele retruca, com um sorriso sarcástico brincando em seus lábios.
— Está com medo de conhecê-lo?
— Apenas não quero atrapalhá-lo, tenho certeza que ele está planejando como fugir, seja lá onde você tenha o aprisionando.
— Oh, então você quer que ele consiga fugir para que você fique no lugar dele? — Pergunto, encarando.
— Você realmente acha que uma dragão de braços finos e pernas curtas como você conseguiria me prender? — Indaga me olhando intensamente.
Escorrego um pouco para fora da cadeira e acerto com força sua canela, sorrio vitoriosa.
— Filha da puta! — Ele xinga, uma expressão de dor em seu rosto enquanto começa a alisar a perna.
— Quer que eu chame a Fiona para cuidar de você? — O provocador, referindo-me à esposa do famoso ogro verde, Shrek. Saboreando minha pequena vitória. Ele me olha com ódio, o que só amplia ainda mais o meu sorriso.
— Você realmente sabe como irritar alguém, hein? — É palpável a fúria em sua voz e em seus olhos.
— E você realmente sabe como ser um ogro — respondo, sem desviar o olhar do seu.
Não consigo dizer com exatidão quanto tempo ficamos nos encarando, mas eu sou a primeira a desviar o olhar, esse ogro tem os olhos intensos demais, vazios e frios demais.
Termino de comer e limpo a boca.
— Obrigada pela refeição — falo e fico de pé. Não espero por uma resposta, apenas ando para fora na lanchonete, o vento frio b**e no meu rosto, respiro aliviada, não estava mais aguentando ficar lá dentro com ele.
Sinto o ogro passar por mim, coloco as minhas mãos no bolso da calça e começo a me afastar.
— Ei, dragão — o ouço falar, mas não olho para trás.
— Babaca idiota — murmuro ainda com raiva pelo apelido.
"Então é só você que tem direito de dar apelidos?" a minha consciência fala, reviro os olhos. "Ele merece o apelido dele, eu não." Me defendo da minha própria consciência. É só o que me faltava, esse ogro ainda está fazendo eu brigar comigo mesma.
— Vem, eu te dou uma carona — o ogro fala, dentro do carro.
— Vai embora! — Digo e acelero os meus passos, não adianta muito, ele continua no meu encalço.
— Já está tarde, as lojas já estão fechando, não me sentirei bem em deixar você sozinha, é perigoso.
Ergo minha cabeça, avisto uns homens fumando numa escada, sinto o meu coração apertar um pouco, não gosto de passar perto deles, a minha ex-melhor amiga, uma vez disse-me que foi violentada por homens drogados, desde então, fiquei ainda mais cautelosa.
— Está bem, vou aceitar a sua carona.
O ogro para o carro e por dentro mesmo abre a porta do carona para mim.
— Onde você mora? — Ele questiona ao parar num semáforo.
— Me leve para a rua Chile.
— Número da casa.
— Dezessete — respondo e viro o rosto para a janela.
Torço muito para que o abrigo tenha alguma vaga, aqui em Salvador, existem muitos moradores de rua. Depois de uns vinte minutos, o carro para. Tento abrir a porta, mas ela está trancada.
— Destranque a porta — mando, me viro para encará-lo.
— Aqui é um abrigo para sem teto — ele concluiu o óbvio, com uma mistura de surpresa e confusão.
— Esperava que uma mendiga como eu morasse onde? — A minha resposta sai com uma mistura de sarcasmo e mágoa.
— Olha, eu...
— Destrave a porta, quero sair — digo, cortando sua fala. Odeio que me olhem com pena, e -não sei porquê-, o olhar dele é ainda mais irritante que os de outras pessoas.
— Se realmente é uma mendiga, o que estava fazendo na Jewelry? — Ele pergunta, os olhos semicerrados de desconfiança.
— A minha vida pessoal não é da sua conta, agora destrave a porta! — Exclamo, minha voz mais alta e mais firme, o medo dele me prender aqui dentro aflorando.
Ele faz o que mando e eu saio às pressas do carro, respiro aliviada.
— Obrigada pela carona — bato a porta do carro dele e corro para dentro do abrigo.
Gotas de chuva fina começam a cair, mas antes que eu consiga entrar no portão, ele se fecha. O porteiro olha-me com pena; as vagas acabaram.
Merda! Esse era o abrigo mais próximo, o outro fica a mais de cinco quilômetros.
Pelo jeito, essa noite dormirei do lado de fora. Espero que não caia uma tempestade. Começo a andar para o toldo de uma loja, buscando abrigo.
"Bi-bi", ouço uma buzina. Um arrepio percorre minha espinha. Peço mentalmente a Deus que não seja alguém perigoso. Continuo a andar sem olhar para trás, mas a buzina soa novamente. Meu coração acelera. Nunca tive nenhuma relação sexual e tenho medo de ser violentada... Mesmo morando com meus pais, tinha medo, agora nas ruas, isso só aumenta.
A chuva começa a cair mais forte, e acelero meus passos, tentando encontrar um lugar seguro. De repente, ouço passos apressados atrás de mim e minha respiração fica irregular. O medo percorre cada fibra do meu corpo e minha mente imagina o pior.
Uma mão grande e forte agarra meu antebraço, me obrigando a parar. Sinto meu coração parar na boca.
Laura Martins:— Ei! — Puxa-me para trás, fecho os olhos, sinto todo o meu corpo tremer. — Por que está me ignorando? — Reconhecer a voz do agro, respiro aliviada.— Por que ainda está aqui? — Ignoro a sua pergunta.— Vem — ele começa a me arrastar, mas não deixo, puxo a minha mão para longe da dele.— O que acha que está fazendo? — Pergunto, a chuva começa a ficar mais forte.— Vou te levar para um lugar seguro, vamos, a chuva já está piorando.— Eu não vou para a sua casa! — Exclamo, só Deus sabe o que esse ogro tem na mente.— Nunca te levaria para lá — ele responde olhando-me com... nojo? — Conheço uma pousada aqui perto.— Como pode ver, não tenho dinheiro para pagar...— Eu vou pagar, não posso te deixar na chuva.Paraliso, me surpreendendo pela terceira vez com esse cara. Eu estou cansada, andei o dia todo hoje, e as sapatilhas criando calos nos meus dedos e calcanhares não ajudam muito. Só quero conseguir dormir.— Vem logo! — Ele me tira do estopim da minha mente, entramos em
7 meses depois.Laura Martins:Batidas fortes na porta me despertam de um sono agitado, desencadeando uma dor latejante na minha têmpora, lembrando-me da queda que sofri anteontem na empresa quando desmaiei e bati a cabeça na privada, acordei só no dia seguinte. A luz do sol entrando pelas frestas das da janela de madeira faz meus olhos arderem.— Já vai! — Tento gritar, mas minha voz sai fraca, um mero sussurro.As batidas continuam, mais urgentes. Respiro fundo, tentando dissipar a dor, e me levanto cambaleando. O quarto gira por um momento, mas me estabilizo, apoiando-me na parede enquanto caminho até a porta. O eco das batidas se mistura com o zumbido na minha cabeça.— Quem é? — Minha voz sai rouca, quase inaudível, enquanto destranco a porta.— Senhorita Martins? — Uma voz feminina responde.Abro a porta lentamente, revelando uma mulher jovem e elegante. Ela é alta e magra, vestindo um terno perfeitamente ajustado. Seus olhos me observam com intensidade, e um leve sorriso curva s
Fernando Duarte:No meu relógio marca 19 horas e 30 minutos, e a minha paciência diminui a cada segundo. Se essa mulher se atrasar um minuto sequer, estou fora. Eu nem queria está aqui para começo de conversar, só estou aqui porque a minha mãe ameaçou colocar fogo em sua própria casa.Impaciente, dedilho a mesa, viro o rosto para a janela e começo a observar os carros passando apressados pela frente do restaurante escolhido por minha mãe.Só mais trinta segundos...— Senhor Duarte? — Ouça a voz da recepcionista, se ela está aqui só pode significar uma coisa.Merda!Respiro fundo e controlo a raiva, só faltavam trinta segundos para que eu pudesse estar livre e usar a desculpa de que a tal mulher não apareceu me deixando no vácuo.Desvio minha atenção dos carros e olho para a moça que me chama. De baixo pra cima, observo a mulher que está ao lado da recepcionista.Dentro de um vestido tubinho de cor preta, os meus olhos percorrem o seu corpo, observando as curvas suaves e delicadas marca
Fernando Duarte:O momento presente se dissolve, e minha mente é abruptamente arrastada de volta àquela noite fatídica. o barulho ensurdecedor, repentino e violento de uma batida, seguido pelo estrondo assustador de uma explosão atrás do meu carro.O mundo ao meu redor transformou-se num caos vivo: os olhos verdes desesperados, os gritos dilacerantes por socorro perfurando a noite, misturados ao som das sirenes sendo abafadas pelo zumbido em meu ouvido. Lágrimas mesclam-se ao sangue que tingia toda a minha visão de um vermelho profundo e sombrio.O horror da imagem tingida de vermelho me dá náuseas — membros perdidos, um braço aqui, pernas ali, espalhado pelo interior do carro, o forte cheiro do sangue...Enquanto o passado me consome, uma gota de suor frio traça um caminho pela minha testa. O descompasso de meu coração martela contra meu peito, enquanto minhas vistas se embaçam com a iminência de mais um colapso emocional. Lágrimas, antes contidas, agora fluem livremente, embaçando mi
Fernando Duarte:Após deixar o restaurante, dirijo com pressa tendo o caminho iluminado pelas luzes amarelas dos portes. Seguro tão firme o volante do carro, sentindo o metal gelado contra a palma da minha mão, que sinto as falanges dos meus dedos doerem e as veias do dorso das minhas mãos saltarem.De onde a minha mãe conhece Laura? E por que diabos a minha mãe achou que seria uma boa ideia arranjar um encontro com essa pirralha irritante?A frustração e a raiva se acumulam dentro de mim. Com fúria, desfiro um golpe no volante.— Porra! Por que tinha que ser logo ela? Ela era a última pessoa que eu queria encontrar — grito exasperado dentro do carro.Os faróis dos outros carros se misturam em um borrão de luzes, espelhando meu estado de espírito tumultuado. Minha respiração está tensa, e os pensamentos sobre Laura, sobre o meu passado, giram furiosamente na minha mente.Ao estacionar em frente à casa da minha mãe, respiro fundo, saio do carro e aperto a campainha. Ana, o braço direto
Laura Martins:Pago a passagem e me sento no banco mais alto. O ônibus começa a se mover, e apoio meu cotovelo na janela, repousando o queixo na palma da mão. Observo as luzes urbanas se desdobrarem à medida que o ônibus segue para a estação. Minha mente volta ao restaurante, lembrando os olhos do senhor Duarte, antes gélidos, agora cheios de terror e desespero. O que o teria deixado assim?Para! Já tenho problemas demais para me preocupar com os dos outros.Busco refúgio nos meus fones de ouvido e seleciono a música "Dias Melhores" do Jota Quest. Deixo-me levar pela melodia enquanto olho as ruas movimentadas."🎶 Vivemos esperando dias melhores.Dias de paz, dias a mais,dias que não deixaremos para trás.Oh oh, vivemos esperando o dia que seremos melhores,melhores no amor, melhores na dor, melhores em tudo... 🎶"Cantarolo baixinho, meus olhos se enchem de lágrimas, mas pisco para afastá-las. Sou egoísta demais, pensando em tudo o que ele já fez por mim. Ninguém nunca fez o que ele
Laura Martins:"Ele sempre teve uma boca tão bonita assim?" —Me questiono internamente, mordo o meu lábio inferior. Será que são macios? Quentes? A língua... será que... de repente e bruscamente, como se tivesse uma doença altamente contagiosa, ele me solta e se afasta. Cambaleio um pouco antes de retornar ao equilíbrio. Uma pontada de vergonha toma conta de mim, me atingindo como um soco no estômago, a minha mente martela com a possibilidade de que ele percebeu que, por um breve momento, eu talvez quisesse beijá-lo. Rezo em silêncio para que ele não tenha notado as minhas intenções nesse pequeno instante que encarei a boca dele.O som de um pigarro seco escapa da minha garganta enquanto tento esconder o meu constrangimento.Sinto um calor subir pelas minhas bochechas, o conflito interno entre raiva e atração deixando-me confusa.— Eu... eu não preciso da sua ajuda — sussurro, minha voz traindo a determinação que tento manter.— Por que você sempre tem que complicar tudo? — ele questio
Laura Martins: — Laura, o que aconteceu no restaurante? O meu filho chegou aqui transtornado! — a mulher começa. Lá vamos nós, penso me preparando para receber o esporro. — O nosso acordo era para você deixá-lo feliz e não ainda mais infeliz! — A voz da mulher ressoar familiar por trás da linha. De onde a conheço... de onde... já sei! É ela! A senhora elegante e gentil de terninho. Cristiane, é esse o nome dela, por que eu não me lembrei assim que vi o ogro? Será que foi o choque por ter sido justo ele? — Está aí? — Cristiane, a mãe do ogro, chama impaciente. — Si-sim! Estou sim — respondo, tentando suar calma, mesmo com o coração disparado. — Então por que não me respondeu? — Questiona. — Eu estava tentando me lembrar de onde conhecia a sua voz — explico e mordo o lábio com vergonha da minha lerdeza. — Você não lembrava que era eu? — Consigo sentir a surpresa em sua voz. — Desculpe — peço envergonhada, provavelmente o nome dela estava no contrato, mas eu só li a parte dos bene